domingo, 9 de junho de 2024

A família de Jesus é constituída pelos que fazem a vontade de Deus

 

Jesus quer estabelecer a comunhão com os/as que se disponibilizam para O seguirem. Isso implica a negação de qualquer pacto com o demónio, espírito do mal e pai da mentira e, ao invés, postula a obediência a Deus Pai, que acolhe todos os/as que se querem sentir parte da sua família.

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A primeira leitura (Gn 3,9-15) do X domingo do Tempo Comum no Ano B apresenta-nos o diálogo poético de Deus com as figuras míticas do primeiro homem e da primeira mulher, depois da queda, em resultado da desobediência a Deus. O trecho veterotestamentário em apreço sustenta que todos somos chamados a não pactuar com o mal e a estar de sobreaviso ante as tentações do Maligno. Caso contrário, entramos numa espiral de conflito.

O tentador leva-nos ao conflito com Deus. Se comermos do fruto proibido, seremos como deuses, o que Deus não quer. Porém, a desobediência a Deus gerou o conflito do homem consigo mesmo: sentiu-se nu, cobriu-se. E continua o conflito com Deus: Deus chamou-o e o homem, como teve medo, escondeu-se. Surge, em simultâneo, o conflito com a mulher, a parceira do homem: “A mulher que me deste por companheira tentou-me.” Esta resposta envolve uma acusação conflitual do homem a Deus. Por fim, vem o conflito com a Natureza: “A serpente – diz a mulher – tentou-me e eu comi.” Atirar com a culpa para o lado é a tentativa do ser humano irresponsável.   

O facto de o homem e a mulher terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, contrariando a ordem do Senhor em Gn 2,16-17, quebra a harmonia entre o ser humano e Deus, e mesmo com a criação. Contudo, não quebra a relação de Deus com o homem e com a mulher, já que todo o texto se desenrola num diálogo, feito de perguntas de Deus e de respostas do homem e da mulher.

A primeira pergunta do Senhor é fundamental: “Onde estás?” A Bíblia não se limita a indagar sobre o lugar onde se situa o homem; assume a dimensão existencial. Pela desobediência, homem e mulher tinham perdido a sua colocação espacial original, perdendo-se na inconsistência de pretender ser como Deus. Ao interrogá-los, Deus conhece a dimensão da transgressão como o denota a pergunta: “Terias tu comido dessa árvore de que te proibira comer?” As perguntas do Senhor servem ao homem e à mulher para se encontrarem consigo mesmos, depois de se terem perdido, para refazerem o caminho que os levou a desobedecer a Deus. Já as respostas do homem e da mulher refletem a tendência humana para a desculpabilização, desresponsabilizando-se, autojustificando-se e lançando a culpa para fora de si.

Por outro lado, as respostas do homem e da mulher mostram que o mal não tem origem em Deus, que criou tudo bem e bom, nem no ser humano. Ou seja, o mal tem origem fora do ser humano. O homem e a mulher fizeram mal, mas levados pela serpente que é quem recebe a condenação mais dura (vv. 14-15), se considerarmos que Gn 2,16-19 é explicação da situação atual e real da mulher e do homem. A dura sentença contra a serpente pode espelhar a situação atual deste animal, considerado maldito: os humanos em luta contra as serpentes e a declaração de impureza das serpentes, o que a faz serem rejeitadas nas prescrições alimentares de Israel. Todavia, já no judaísmo tardio, a serpente começa a ser lida como um símbolo do diabo, que será derrotado pelo Rei-Messias (interpretação que ganhará força no Novo Testamento, concretamente na releitura de Rm 16,20 ou de Ap 12,9; 20,2). Numa releitura cristã, portanto, esta sentença divina em relação à serpente apresenta-se como profecia da luta de Jesus Cristo, descendente da mulher, contra o mal e contra o seu autor, descendente da antiga serpente simbólica deste relato.

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No Evangelho (Mc 3,20-35), Jesus mostra que, na sua atividade de libertação do poder do mal, não pode pactuar com o Demónio, mas vem para libertar os homens e as mulheres de todos os tempos. Também nisso faz a vontade de Deus e convida todos a fazer comunidade centrada na sua pessoa e decidida a construir um Mundo que se baseie na ânsia de fazer a vontade de Deus.

Em Mc 3,6, terminou a secção das controvérsias de Jesus com diversas instituições do judaísmo. Porém, o confronto mantém-se. Na grande secção de Mc 3,7 – 8,26, a perícopa de Mc 3,7 – 6,6 em que se encontra, o trecho em referência é dominado pelo contraste entre a rejeição e a aceitação de Jesus como mestre e agente de ações miraculosas. De um lado, está o grupo dos doze apóstolos e todos os que aceitam e fazem a vontade do Pai; do outro, a família de Jesus, os escribas e os habitantes de Nazaré, que têm dificuldade em aceitar o ministério de Jesus.

Não podemos admirar-nos de os parentes de Jesus terem dificuldade em aceitar a sua mensagem e o seu estilo de vida. A família não se escolhe, não está acabada e, por vezes, deixa aninhar em si o conflito. A rutura de vida é sempre dolorosa.  

Através da “narrativa em sanduiche”, o Evangelho de Marcos encara a temática da identidade e da origem de Jesus. O início e o fim do texto apresentam-nos a atitude da família de Jesus, de ir ao seu encontro, por ter ouvido dizer que Ele “está fora de si”. A família volta à cena apenas, com a conclusão de Jesus a revelar quem é a sua família. Pelo meio, ensanduichada, encontramos uma controvérsia com os escribas sobre a origem do poder de Jesus para expulsar os demónios.

Por um lado, os escribas tentam fazer passar a ideia de uma familiaridade de Jesus com o príncipe dos demónios, Belzebu. O Mestre mostra, pela parábola do reino dividido, que não pode pertencer ao reino de Belzebu-Satanás nem ter qualquer familiaridade com ele, porque um reino dividido não pode levar a melhor contra o inimigo.

A questão de fundo é a identidade de Jesus. A controvérsia com os escribas termina com solene afirmação diante de quem diz que Ele “está possesso de um espírito impuro”: todos “os pecados e blasfémias” serão perdoados, mas “quem blasfemar contra o Espírito” não obterá perdão, pois a blasfémia contra o Espírito Santo nega a identidade divina de Jesus, associando-a aos demónios. Isto está em linha com a pregação apostólica, por exemplo de Paulo, em 1Cor 12,3: “Pela ação do Espírito Santo, ninguém pode dizer: ‘Jesus é anátema’; ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’, a não ser pela ação do Espírito Santo.”

Além disso, o texto termina com a afirmação de Jesus a mostrar quem é a sua família, refundando os laços familiares. Jesus não está irmanado por laços de sangue, mas pela atitude ante a vontade de Deus: “Eis minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe.” A atitude fundamental de Jesus é a obediência à vontade do Pai. E isso define a sua identidade. Portanto, para fazer parte da família de Jesus, é essencial ter a mesma atitude.

Assim, a identidade de Jesus define-se em duas plataformas: a total ligação a Deus e à sua vontade, a ponto de considerar sua família quem estiver nessa onda; e a total separação e diferenciação do Demónio-Satanás. Aliás a sua missão é entrar em casa do “homem forte”, o demónio, “amarrá-lo”, impedindo-o de continuar a sua ação, e “roubar-lhe os bens”.

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Na segunda leitura (2Cor 4,13 – 5,1), Paulo mostra como as tribulações não abrandam o seu ardor missionário, que se carateriza pela confiança em Deus e na vida eterna. Duas grandes atitudes qualificam o ministério do apóstolo: a esperança de estar unido com Jesus na ressurreição, tal como o está na tribulação terrena; e o desejo de estar em comunhão com os cristãos a quem anuncia o Evangelho.

O trecho em apreço, integrando a apologia de Paulo, mostra a disposição com que o apóstolo das gentes encara o seu ministério, marcado por duas grandes atitudes: a fé-confiança que lhe dá força apesar das tribulações; e a comunhão a dois níveis, ou seja, com Cristo e com os destinatários da sua pregação apostólica.

A referência à atitude de fé (“o mesmo espírito de fé”) baseia-se na citação da tradução grega do Sl 115: “Acreditei, por isso falei.” Assim, o conteúdo da pregação não depende das suas ideias, mas do conteúdo da fé na ressurreição de Jesus Cristo. Além disso, trata-se da fé como atitude de confiança de quem sabe que não está só, mas unido à morte de Cristo, de quem espera a Ele estar unido também na ressurreição.

Esta apologia paulina é de conteúdo antropológico. Paulo revela como se deixa mover pela fé, ao estabelecer o contraste entre a realidade presente, que é aparente, e a realidade definitiva, que é a vida do mundo que há de vir. A progressiva ruína do homem exterior, em contraste com a renovação do homem interior; “a ligeira aflição dum momento”, em contraste com o “peso eterno de glória”, que se está a preparar; “as coisas visíveis” e “passageiras”, em contraste com “as invisíveis” e “eternas”; “esta tenda”, a “nossa morada terrestre”, passível de ser destruída, em contraste com “uma habitação eterna, que é obra de Deus” – tudo isto motiva a ação do apóstolo, acentuando que a tribulação do momento presente não é a palavra definitiva.

A segunda atitude paulina é de comunhão, a dois níveis: a união com Cristo; e a comunhão com os cristãos a quem dirige a sua pregação. Antes, Paulo já esclarecera que as suas tribulações, no ministério apostólico, eram sinal de estar visivelmente unido à morte de Jesus; agora, manifesta a esperança de se unir a Ele na glória da ressurreição: “sabendo que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há de ressuscitar com Jesus e nos levará convosco para junto d’Ele”. A união existencial com Jesus é, pois, essencial na vida do apóstolo. Porém, essa comunhão com Jesus abre-se à comunhão com os que creem em Cristo: de facto, Paulo espera estar unido a Jesus e com os destinatários da carta (“convosco”). Se Paulo sofre tribulações, fá-lo em favor dos cristãos, para suscitar “as ações de graças de um maior número de cristãos para glória de Deus”.

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O tema principal do texto evangélico desta dominga mostra que, desde o início do cristianismo, os cristãos sentiram necessidade de responder à pergunta: “Quem é Jesus?”. Também hoje, na ação pastoral da Igreja, é importante que os cristãos conheçam a identidade de Jesus, até para poderem estabelecer com ele uma relação personalizada em comunidade.

Fazer parte da família de Jesus é a vocação fundamental dos cristãos de todos os tempos. Por isso, são chamados a formar comunidade, não autorreferencial, mas centrada na pessoa de Jesus e que tem como única missão fazer a vontade de Deus em todas as circunstâncias da vida. De facto, pertence à verdadeira família de Jesus quem faz a vontade de Deus e toma lugar com Jesus.

O método para estabelecer a relação de familiaridade com Jesus passa por seguir o seu exemplo: é Ele o primeiro a fazer a vontade de Deus. O cristão continua, no Mundo, a missão de Jesus e tem como único horizonte fazer a vontade de Deus. Esta é uma das petições do Pai Nosso, a oração que Jesus ensina a rezar: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu.

Quando o cristão decide seguir Jesus, compromete-se a renunciar ao mal e ao demónio. Tal como Jesus estabelece a separação entre o seu serviço e o poder de Satanás, desde o primeiro momento da vida cristã, os cristãos são chamados a renunciar a Satanás e a fazer a sua profissão de fé em Deus, postula a abstenção de algumas práticas de bruxaria, de feitiçaria e de cartomancia, que aprisionam. Jesus vem libertar-nos do aprisionamento de Satanás e é necessário deixarmo-nos libertar. E não há margem para atitudes dúbias. Ou se é por Cristo ou se é contra Ele. Mais: ou se está em comunidade ou não se está com Cristo. Mas o protagonista não é a comunidade sem Cristo, mas Cristo, que se assume com a comunidade, para que a comunhão com o Pai, pelo Espírito Santo, seja inclusiva, total e perfeita.

2024.06.09 – Louro de Carvalho

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