quarta-feira, 5 de junho de 2024

Exportação de lixo é negócio que se evitará com a economia circular

 

Por dia, cada pessoa gera 0,74 quilogramas de resíduos e prevê-se que, nos próximos anos, este dado aumente. O paradigma “produzir, usar e deitar fora” inunda o Mundo de lixo. Por isso, a reutilização, a reciclagem e a valorização energética são soluções mais relevantes do que nunca.

No Terceiro Mundo, onde o lixo gera mais danos, os resíduos eletrónicos converteram-se num grande negócio. Aí, o lixo acumula-se, por não haver sistemas de gestão de resíduos.

A nível mundial, cada pessoa gera 0,74 quilos de resíduos por dia e são gerados 2,01 milhares de milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, por ano, 33% dos quais não são geridos de forma ecologicamente segura. Estima-se que, em 2050, a cifra chegue a 3,4 mil milhões de toneladas. Estes são apenas alguns dados do estudo What a waste 2.0: A Global Snapshot of Solid Waste Management to 2050, o último relatório do Banco Mundial sobre esse problema.

Há também correlação direta entre a geração de resíduos e o nível de rendimento. Embora só representem 16% da população mundial, os países de alto rendimento geram cerca de 34% dos resíduos mundiais (683 milhões de toneladas). Os países com rendimentos médios-altos e médios-baixos geram 32% e 29%, respetivamente. Já os países com baixos rendimentos, que representam 9% da população, só são responsáveis por 5% dos resíduos mundiais.

Embora os países do Terceiro Mundo sejam os países que geram menos resíduos, a falta de desenvolvimento e a instabilidade política obstaculizaram a implantação de modernos sistemas de gestão do lixo. Segundo o Banco Mundial, enquanto os países com rendimentos altos e médios-altos proporcionam serviços universais de recolha de resíduos, os países com rendimentos baixos, em 2016, só recolheram 48% dos resíduos gerados nas cidades e 26% fora delas. Tal situação cria condições de vida insalubre, favorece a transmissão de doenças e faz com que algumas pessoas percam as casas ou até a vida, em avalanches de lixo.

A proliferação de lixo resulta do paradigma da economia linear: “produzir, usar e deitar fora”. Hoje, a economia circular, que dita “reduzir, reutilizar e reciclar” (novo paradigma), é a  solução que permite viver em ambientes sustentáveis, saudáveis e inclusivos. Porém, ainda há muito caminho a percorrer. A nível mundial, só são recuperados 13,5% dos resíduos, através da reciclagem e 5,5%, através da compostagem. Os países mais ricos são os que recuperam mais lixo – 29%, pela reciclagem, e 6%, pela compostagem – e os países mais pobres são os que tratam menos lixo: apenas são capazes de recuperar 4%, entre a reciclagem e a compostagem.

O Terceiro Mundo é caso único, pois, embora a sua falta de desenvolvimento leve a que os seus países sejam os que geram menos lixo, esse fator converte alguns desses países em grandes importadores de lixo. O Gana é um claro exemplo. Com efeito, embora a Convenção de Basileia proíba a exportação de resíduos perigosos para o Terceiro Mundo, o Gana importa, há décadas, boa parte do lixo eletrónico dos países desenvolvidos, para reutilizar peças e componentes. Os computadores e os telemóveis contêm ouro, prata e cobre. O resultado são macroaterros onde se trabalha em condições inseguras, insalubres e prejudiciais para o ambiente. Um estudo da ONU (2016) certificou que, em Agbogbloshie, a concentração de chumbo no solo chega a ultrapassar mil vezes o nível máximo de tolerância, e outro estudo concluiu que, numa escola próxima de um aterro, a contaminação por chumbo, por cádmio e por outros poluentes superava em 50 vezes os níveis livres de risco.

Outras fontes classificam as denúncias sobre tal situação como catastrofistas e destacam nas vantagens da importação. Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) concluiu que, em 2009, o Gana importou 215 mil toneladas de lixo eletrónico. Uma parte (15%) que não podia ser consertada, foi para aterros; e a parte restante (85%) foi para oficinas e para lojas de revenda, permitindo que uma parte da população acedesse à tecnologia informática, impulsionando assim a economia circular.

A China é um exemplo semelhante. Há três décadas, começou a importar lixo ocidental. Só em 2016, recebeu 7,35 milhões de toneladas de resíduos e de lixo plástico, aproximadamente 56% do total mundial. Porém, ao prolongar a vida útil dos aparelhos eletrónicos, pela reciclagem, ajuda a reduzir as emissões de dióxido carbónico (CO2) geradas na sua fabricação, assim como a demanda de cobalto e de outros materiais cuja extração é prejudicial à saúde humana e ao ambiente. Não obstante, o gigante asiático não hesitou em aprovar uma lei que restringe, de forma significativa, a importação de lixo.

A valorização energética consiste em submeter os resíduos a um processo de combustão, para lhes reduzir o volume e aproveitar a energia gerada nesse processo, em forma de vapor de água, de eletricidade ou de água quente.

A taxa de valorização energética, na Espanha, situa-se em 14%, número bastante inferior à média europeia (27%), portanto insuficiente para cumprir a gestão hierarquizada proposta pela União Europeia (UE), onde a valorização energética, como regista o pacote europeu de economia circular, se deve situar à frente do aterro, a opção menos desejável. A situação é diferente no Norte da Europa, onde cinco países (a Suécia, a Bélgica, a Dinamarca, os Países Baixos Holanda e a Alemanha) têm taxa de descarga de 1% e outros dois (a Áustria e a Finlândia) de 3%, o que é possível, graças às altas taxas de reciclagem e de compostagem – de 42%, na Finlândia, a 66%, na Alemanha – e à valorização energética, e 32%, na Alemanha, a 55%, na Finlândia.

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Estima-se que um terço das exportações de lixo proveniente de países europeus seja ilegal e sabe-se que as organizações criminosas ganham milhares de milhões de euros.

Em 2020, cerca de 300 contentores cheios de resíduos chegaram, ilegalmente, ao porto de Sousse, na Tunísia. Graças à mobilização da sociedade civil, grande parte dos resíduos foi devolvida à Europa, na sequência de um processo judicial. “Foi uma pequena vitória para a Tunísia, para África e para todos os ambientalistas. Estamos a falar de uma rede da chamada ecomáfia, que envolveu empresas e políticos. Estou certo de que é a árvore que esconde a floresta”, declarou à Euronews Houssem Hamdi, ativista ambiental e fundador da Associação Tunisie Verte, que lutou para que os resíduos ilegais fossem devolvidos a Itália. Neste ano, as alfândegas italianas apreenderam mais 82 toneladas de resíduos rumo Tunísia.

“A Convenção de Basileia determina o tipo de resíduos que podem ou não ser importados. Mas alguns relatórios indicam que certos portos, como o porto de Bizerte, se tornaram centros de importação de resíduos e também de exportação para outros continentes e outros países africanos”, afirmou Majdi Karbai, ex-deputado tunisino.

A Tunísia lançou um grande plano de modernização do tratamento de lixo. Porém, na prática, os resíduos são enterrados, sem triagem, em mega-aterros sanitários, uns controlados, outros não.

“Vemos a água estagnada a ficar poluída. Está a poluir o lençol freático. O problema é que isto é uma zona húmida, onde não podemos pôr entulho porque isso impede a circulação da água. E acima de tudo, não devemos colocar aqui lixo doméstico, porque liberta os chamados lixiviados, que até são perigosos”, frisou o ativista ambiental tunisino Heikel Khomsi.

Entretanto, acaba de entrar em vigor o Novo Regulamento Europeu, sobre exportação de resíduos, que prevê a limitação da exportação de resíduos de plástico para fora da UE e que inclui novos instrumentos para combater as ecomáfias. Assim, os países não membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), como a Tunísia, têm de provar que têm capacidade para tratar os resíduos de forma sustentável, para poderem receber o lixo.

Todos os anos, mais de um milhão de contentores passa por Génova, o principal porto marítimo do Mediterrâneo. Alguns resíduos são exportados com falsas declarações aduaneiras. Os agentes apreenderam um contentor cheio de borracha queimada, que ia para a Tailândia. “Estes materiais foram processados incorretamente e, ainda por cima, estão a ser enviados para um país que não tem infraestruturas capazes de os processar e reciclar corretamente”, relatou Andrea Biggi, responsável pelo Gabinete Antifraude de Génova 2 da Agência Aduaneira Italiana.

A Europa produz muitos resíduos que podiam ser reutilizados e reciclados, e as empresas são pagas para fazê-lo, mas algumas não o fazem. Por isso, as organizações criminosas lucram com o dinheiro investido na reciclagem destes materiais. E a solução estará em ter, a par de objetivos de reciclagem ambiciosos, incentivos para os fabricantes consumirem materiais reciclados.

Para travar a exportação ilegal de lixo, as alfândegas italianas participam no novo sistema europeu de alerta rápido, a acionar em caso de cargas suspeitas. O material é analisado e inspecionado rapidamente. Os agentes do porto de Génova verificaram um contentor que transportava equipamento novo para a Malásia, pois a presença de descodificadores de televisão antigos chamou a atenção dos funcionários aduaneiros. Na realidade, o contentor transportava resíduos eletrónicos. No país de destino, esses produtos são esmagados para recuperar os metais preciosos. O que resta pode acabar em aterros ilegais.

A UE reforçou a legislação sobre crimes ambientais, com penas mais duras e uma lista alargada de infrações. E o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) desempenha papel fundamental na coordenação das investigações. Um dos seus objetivos é a política antifraude eficaz.

“Para os casos ambientais, é essencial reunir não só as autoridades aduaneiras, que são os nossos homólogos naturais, mas também as autoridades ambientais. Por isso, tentamos construir uma ponte entre a UE e o país de destino e investigar no país de exportação. Se houver uma rede por detrás, tentamos desmantelar essa rede”, explicou  Luigi Garruto, investigador do OLAF.

Uma empresa francesa de reciclagem de cabos eletrónicos é capaz de tratar 20 mil toneladas de minérios por ano, o equivalente a duas Torres Eiffel. “No final da linha, obtemos cobre, que é vendido, principalmente na Bélgica e na Alemanha”, referiu Gaston Desclozeaux, diretor de operações da Derichebourg Environnement.

O cobre foi considerado pela UE material crítico, para fazer face à eletrificação das economias. A empresa recebeu fundos do plano de recuperação e resiliência francês. “Antes, exportávamos os cabos para a Ásia porque não havia consumo suficiente de cobre na Europa. A reciclagem permite-nos abastecer as refinarias de cobre europeias e evitar o envio de metais estratégicos para a Ásia”, explicou Gaston Desclozeaux.

A economia circular é uma prioridade do Pacto Ecológico Europeu. Contudo, menos de 12% dos materiais consumidos na UE provêm da reciclagem. “Precisamos de uma política de incentivos forte, na Europa. Tal como temos objetivos de reciclagem ambiciosos, também precisamos de incentivos para que os fabricantes consumam materiais reciclados, o que atualmente ainda é muito insuficiente. Precisamos de desenvolver a incorporação de materiais reciclados nos novos produtos que consumimos no continente europeu”, defende Tess Pozzi, diretora de Assuntos Públicos, da Derichebourg Environnement.

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A cooperação entre forças policiais nacionais e europeias é essencial para travar o tráfico ilícito de resíduos. “Bloqueámos um contentor por suspeita de tráfico de resíduos. O mais importante não é apenas bloquear o contentor, mas investigar e descobrir a organização por detrás dele. Para isso, precisamos da cooperação de todas as forças policiais, não só nacionais, não só não europeias, mas sobretudo europeias. É a união das polícias europeias que nos permitirá travar este tipo de tráfico e, neste sentido, o OLAF  pode dar um enorme contributo”, sustenta Andrea Biggi.

Luigi Garruto, investigador do OLAF, há dois objetivos principais: investigar a rede e impedir as exportações. Para o ambiente, este é ponto-chave pois, se os danos estão feitos, é difícil recuperar tudo. É essencial criar uma consciência geral, harmonizar o nível dos controlos, a nível da UE, e coordenar o controlo com os países de destino. Se isso se conseguir, atinge-se o objetivo.

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Tudo no Mundo (até o lixo) pode ser fonte de problemas ou oportunidade de recriação, conforme impere o desleixo ou a ambição ou impere a ciência, o bom senso e a cooperação.

2024.06.05 – Louro de Carvalho

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