sábado, 22 de junho de 2024

Caso das gémeas tem processo no MP e é objeto de uma CPI

 

Badalado na Comunicação Social, o caso das gémeas luso-brasileiras que sofrem de atrofia muscular espinal (AME), tratadas de forma excecional (não digo ilegal nem preferencial) no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, uma unidade de referência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com Zolgensma, medicamento cujo preço ronda os quatro milhões de euros, corre processo no Ministério Público (MP), por alegadas suspeitas de ilícito criminal da parte de alguns intervenientes, e está a ser abordado numa comissão parlamentar de inquérito (CPI), da iniciativa do Chega, por ter, supostamente, envolvido titulares do poder político stricto sensu.       

Esta fase é subsequente àquela em que se equacionou, na praça pública, eventual responsabilidade da mãe das crianças – qualquer mãe faz todo o possível e impossível pelos filhos doentes –, do Dr. Nuno Rebelo de Sousa (NRS), filho do Presidente da República (PR), por alegada relação de conhecimento da nora do PR por parte da mãe das crianças, e do então secretário de Estado da Saúde, que terá urgido a marcação da primeira consulta no referido hospital.

Falou-se da carta de protesto de médicos a denunciar o tratamento preferencial, como se apontou a brevidade da atribuição da nacionalidade portuguesa às meninas, havendo aí tratamento de favor da parte do consulado português (ninguém fala do, ao tempo, secretário de Estado das Comunidades), bem como da brevidade com que o Infarmed autorizou a ministração do medicamento. E veio ao de cima a informação de que o primeiro hospital a ser contactado fora o da Estefânia, que não deu a resposta pretendida, e o Hospital dos Lusíadas (privado), havendo uma neuropediatra que trabalhava no Hospital dos Lusíadas e no Hospital de Santa Maria.

O certo é que as gémeas receberam o tratamento pretendido, foram para o Brasil e ainda tiveram direito a cadeiras de rodas adaptadas à situação.

Os políticos supostamente envolvidos, questionados sobre a sua intervenção no caso, ou não se lembravam, nada tiveram a ver com o caso ou alijaram a responsabilidade para outrem.

O PR, confrontado com a sua intervenção de alegado favorecimento, num primeiro momento, disse nada ter a ver com o caso; mais tarde, analisada a linhado tempo, reconheceu ter recebido um e-mail do filho com documentação sobre o caso, a solicitar intervenção. Porém, o chefe de Estado terá enviado a informação ao chefe da Casa Civil da Presidência da República, para este ver se a assessora para os Assuntos Sociais tinha como saber do caso. O PR limitou-se a exarar “um despacho neutro”, tendo, como disse, terminado ali a sua intervenção.

O chefe da Casa Civil terá dado a informação possível a NRS, mas referindo que, não sendo o caso da competência da Casa Civil, havia que “envolver o governo” (é estranho pensar-se que o governo interferiria num ato hospitalar). Por isso, enviou a documentação para o gabinete do primeiro-ministro, que a remeteu para o respetivo ministério, para que fizesse o que entendesse dever fazer. A ministra da Justiça, ao tempo, sustentou que o processo de naturalização foi célere, porque já vinha tudo preparado do consulado; e a ministra da Saúde facilmente se descartou.

Quem ficou, na opinião pública, com o odioso da situação foi o então secretário de Estado da Saúde. Começou por dizer que só falaria no lugar próprio. Depois, a pressão levou-o a prestar declarações na Comissão de Saúde no Parlamento, referindo que não marcou nenhuma consulta, que não era crível que a administração do hospital se deixasse pressionar por algum agente político, que não sabia se alguém do seu gabinete ligou para o hospital e que teve uma reunião com NRS, a pretexto de apresentação de cumprimentos por parte do visitante, que se encontrava no país, por ocasião da Web Summit.                  

Entretanto, no pico da campanha para as eleições europeias, a casa de Marta Temido, cabeça de lista do Partido Socialista (PS), foi objeto de buscas policiais, o que levou a candidata a proclamar Urbi et Orbi que nada teve a ver com as gémeas. E, na mesma ocasião, o MP constituiu arguido António Lacerda Sales, o então secretário de Estado. Mais um grão de areia na engrenagem do processo político, a que o MP já nos habituou, pois os políticos é que são o corruptos!  

Mais tarde, soube-se que o MP do Brasil, após diligências, por carta rogatória do nosso MP, constituiu arguido NRS, mas não de forma explícita. 

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Entretanto, a juíza de instrução criminal (JIC) Gabriela Assunção não se conformou com o facto de o PR não ser investigado em processo autónomo pelo MP do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), não se limitando a alegar aspetos formais ou a admitir, só em teoria, que Marcelo Rebelo de Sousa podia ser investigado no caso das gémeas tratadas com um medicamento que custou quatro milhões ao SNS. No despacho enviado ao STJ, analisa todos os atos do PR no caso e conclui que o mais alto magistrado da nação não teve comportamento “neutro”.

No documento, a magistrada argumenta que é “descrita pelo Ministério Público a prática de atos, atribuíveis a Sua Excelência, o Senhor Presidente da República que não são neutros, em relação aos atos imputados aos suspeitos”. Ou seja, a JIC considera que o PR poderia ser investigado por coautoria no crime de prevaricação, até porque o MP imputa “um crime de prevaricação ao suspeito Nuno Rebelo de Sousa, que não tem a qualidade de ser titular de cargo político e que nunca poderia intervir no exercício das suas funções”. O filho do chefe de Estado é arguido por este crime, tal como Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde, e Luís Pinheiro, ex-diretor clínico do Hospital de Santa Maria. Os pais das crianças são suspeitos de burla, por causa da atribuição de nacionalidade portuguesa às filhas, para estas poderem receber o tratamento.

A juíza critica o MP por não ter “levado a cabo [...] qualquer enquadramento jurídico, quanto à atuação de [...] Marcelo Rebelo de Sousa”, e sustenta que, apesar de o PR “não ter a mesma competência e âmbito de atuação [...] que teria o suspeito António Lacerda Sales [...], não se vislumbra como é que se pode não ponderar, ainda que abstratamente, a convocação do artigo 28.º do Código Penal também para a atuação que o Ministério Público descreve e imputa ao Presidente da República, como fez quanto ao suspeito Nuno Rebelo de Sousa”.

O artigo invocado refere-se à ilicitude na comparticipação em crimes.

Porém, a JIC ficou isolada nesta posição. Enviou o despacho ao STJ, porque estavam em causa suspeitas sobre o PR, e o processo foi distribuído ao conselheiro Celso Manata. O antigo diretor das prisões rejeitou, liminarmente, o requerimento da juíza, com o argumento de que o MP “é o titular da ação penal, sendo ao mesmo que cabe iniciar procedimentos criminais e promover as diligências para o efeito pertinentes”. Além disso, acrescentou, em comunicado, que a Assembleia da República (AR) teria de autorizar qualquer procedimento criminal contra o PR, o que não aconteceu. E, numa resposta enviada ao STJ, o MP reforçou não haver suspeita de que o PR tenha cometido qualquer crime e que só os procuradores podem decidir se deve ou não ser investigado.

Ora, a JIC não se substituiu ao MP na iniciativa da investigação, nem na direção da ação penal. Apenas se limitou a tecer uma crítica ao MP, que a poderia ter aceitado ou não. É óbvio que uma investigação ao PR teria de ser autorizada pela AR, mas o MP não lhe solicitou essa autorização. E dizer que o PR não é suspeito de qualquer ilícito no caso não passa de opinião do MP. Também há, para a Justiça do MP, políticos de primeira e políticos de segunda.   

Para sustentar a sua posição, a JIC resume os indícios recolhidos pelo MP conexos com Marcelo. O caso começou porque NRS enviou um e-mail ao PR, seu pai, pedindo a intervenção deste no caso das crianças ‘luso-brasileiras’ diagnosticadas com AME e cujos pais “são muito amigos de uns amigos nossos”. “O pai pode ajudar?”, perguntava Nuno Rebelo de Sousa.

Marcelo reencaminhou o e-mail para o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, questionando se Maria João Ruela, assessora para os Assuntos Sociais, “pode perceber do que se trata.” Depois de se saber que os pais das gémeas pretendiam fazer um tratamento que custaria dois milhões de euros por criança e de várias insistências de NRS, “foi elaborado um ofício [...] dirigido ao chefe de gabinete do primeiro-ministro”. E Frutuoso de Melo informou o filho do PR do ponto da situação: “Depois de termos contactado o hospital, achámos adequado envolver o governo, pois a gestão das listas de espera é da responsabilidade do Ministério da Saúde.”

Segundo a descrição do MP destacada pela JIC, NRS, sabendo das diligências da Casa Civil e que a comunicação fora enviada para o Ministério da Saúde, aproveitando-se do facto de ser filho do PR contactou o secretário de Estado da Saúde, para agendar uma reunião. As consultas foram marcadas por ordem do governante, o que é contra a lei. Para a JIC, o PR teve papel relevante no caso, porque foi o seu chefe da Casa Civil que fez o contacto decisivo para que as gémeas conseguissem a consulta e foi ele quem reencaminhou o e-mail do filho, que originou tudo.

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O filho do PR foi constituído arguido, mas sustenta que não cometeu qualquer ilícito. E o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa investiga a alegada prática dos crimes de abuso de poder, de prevaricação, de burla qualificada e de tráfico de influência. Contudo e ao invés do ex-secretário de Estado e do ex-diretor clínico do Hospital de Santa Maria, não se confirmaram os crimes que o DIAP de Lisboa imputa a NRS. O seu estatuto processual de arguido é assumido, de forma subliminar, na missiva enviada pelos advogados à CPI, a propósito da tentativa de convocatória para que o seu cliente deponha na CPI.

Os advogados informam que o inquérito aberto no DIAP visa o cliente e que este prestou e poderá prestar mais “esclarecimentos” nos “termos que o seu estatuto processual” lhe confere. Tais esclarecimentos foram prestados por “carta rogatória” expedida pelo MP para o Brasil, tendo o cliente fornecido morada para ser notificado para diligências e apresentou um “memorial” ao DIAP de Lisboa a expor a sua visão sobre os factos que estão sob investigação.

NRS trabalha em São Paulo, no Brasil, e invocou esse facto, além de não ter previsto deslocação a Portugal, num futuro próximo, para recusar vir à CPI nas datas que lhe foram propostas. Contudo, mais tarde, mostrou-se disponível para depor na CPI, mas com a reserva de usar do silêncio que lhe confere a condição de arguido, aliás como fez Lacerda Sales.

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Na CPI, Lacerda Sales invocou a condição de arguido para se remeter ao silêncio, sempre que as respostas supusessem qualquer forma de autoincriminação. Todavia, negou que alguma vez tenha falado sobre a matéria, com o PR, com NRS ou com a ministra da Saúde. E porfiou que nunca interveio em qualquer diligência junto do hospital.

Questionado se foi alguém do seu gabinete que marcou a consulta, disse não o saber. Com efeito, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) referiu que a consulta foi marcada a instâncias da Secretaria de Estado da Saúde. A este respeito, sustentou que a IGAS chegara a conclusões ditadas pela pressão. Em todo o caso, informou que foram tratadas 36 crianças, que ninguém foi ultrapassado e que não havia lista de espera. E declarou-se indisponível para ser o bode expiatório de quem quer que seja ou do quer que seja, sem especificar a quem ou a que se referia.

Também ouvida na CPI, a mãe das meninas alegou a condição de mãe, enfatizou que, por vaidade, se gabara de conhecer a nora e o filho do PR (do que pede desculpa), mas que só conhecera a nora do PR. Mais disse que pediu a intervenção de muita gente no Brasil e fora do Brasil, mas não a NRS nem ao PR. E confrontada com e-mails que enviou, que a contrariam, garantiu que não os enviou. O que terá sucedido é alguém os ter emitido em seu nome, pois dera o acesso à sua conta eletrónica a muitos amigos. Como mãe, merece compaixão, como depoente, merece repulsa!

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Todos deveriam ter assumido que o caso, de legalidade duvidosa, fora ditado por uma razão humanitária e pedir desculpas (seria suficiente). Não obstante, em nome da decência, Lacerda Sales, que está, à séria e sozinho, na berlinda, deveria revelar tudo o que se passou e o grau de implicação de todos e de cada um dos intervenientes. Só lucrava a Democracia, a Justiça e a Verdade. Ninguém está acima da lei e é preciso não ter medo!

2024.06.22 – Louro de Carvalho

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