Badalado na Comunicação
Social, o caso das gémeas luso-brasileiras que sofrem de atrofia
muscular espinal (AME), tratadas de forma excecional (não digo ilegal nem
preferencial) no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, uma unidade de referência
do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com Zolgensma, medicamento cujo preço ronda os quatro milhões de
euros, corre processo no Ministério Público (MP), por alegadas suspeitas de ilícito
criminal da parte de alguns intervenientes, e está a ser abordado numa comissão
parlamentar de inquérito (CPI), da iniciativa do Chega, por ter, supostamente,
envolvido titulares do poder político stricto
sensu.
Esta fase é subsequente
àquela em que se equacionou, na praça pública, eventual responsabilidade da mãe
das crianças – qualquer mãe faz todo o possível e impossível pelos filhos
doentes –, do Dr. Nuno Rebelo de Sousa (NRS), filho do Presidente da República
(PR), por alegada relação de conhecimento da nora do PR por parte da mãe das
crianças, e do então secretário de Estado da Saúde, que terá urgido a marcação
da primeira consulta no referido hospital.
Falou-se da carta de
protesto de médicos a denunciar o tratamento preferencial, como se apontou a
brevidade da atribuição da nacionalidade portuguesa às meninas, havendo aí
tratamento de favor da parte do consulado português (ninguém fala do, ao tempo,
secretário de Estado das Comunidades), bem como da brevidade com que o Infarmed
autorizou a ministração do medicamento. E veio ao de cima a informação de que o
primeiro hospital a ser contactado fora o da Estefânia, que não deu a resposta
pretendida, e o Hospital dos Lusíadas (privado), havendo uma neuropediatra que
trabalhava no Hospital dos Lusíadas e no Hospital de Santa Maria.
O certo é que as gémeas
receberam o tratamento pretendido, foram para o Brasil e ainda tiveram direito
a cadeiras de rodas adaptadas à situação.
Os políticos supostamente
envolvidos, questionados sobre a sua intervenção no caso, ou não se lembravam,
nada tiveram a ver com o caso ou alijaram a responsabilidade para outrem.
O PR, confrontado com a sua
intervenção de alegado favorecimento, num primeiro momento, disse nada ter a
ver com o caso; mais tarde, analisada a linhado tempo, reconheceu ter recebido
um e-mail do filho com documentação
sobre o caso, a solicitar intervenção. Porém, o chefe de Estado terá enviado a
informação ao chefe da Casa Civil da Presidência da República, para este ver se
a assessora para os Assuntos Sociais tinha como saber do caso. O PR limitou-se
a exarar “um despacho neutro”, tendo, como disse, terminado ali a sua
intervenção.
O chefe da Casa Civil terá
dado a informação possível a NRS, mas referindo que, não sendo o caso da
competência da Casa Civil, havia que “envolver o governo” (é estranho pensar-se
que o governo interferiria num ato hospitalar). Por isso, enviou a documentação
para o gabinete do primeiro-ministro, que a remeteu para o respetivo
ministério, para que fizesse o que entendesse dever fazer. A ministra da Justiça,
ao tempo, sustentou que o processo de naturalização foi célere, porque já vinha
tudo preparado do consulado; e a ministra da Saúde facilmente se descartou.
Quem ficou, na opinião
pública, com o odioso da situação foi o então secretário de Estado da Saúde.
Começou por dizer que só falaria no lugar próprio. Depois, a pressão levou-o a
prestar declarações na Comissão de Saúde no Parlamento, referindo que não
marcou nenhuma consulta, que não era crível que a administração do hospital se
deixasse pressionar por algum agente político, que não sabia se alguém do seu
gabinete ligou para o hospital e que teve uma reunião com NRS, a pretexto de
apresentação de cumprimentos por parte do visitante, que se encontrava no país,
por ocasião da Web Summit.
Entretanto, no pico da campanha
para as eleições europeias, a casa de Marta Temido, cabeça de lista do Partido
Socialista (PS), foi objeto de buscas policiais, o que levou a candidata a
proclamar Urbi et Orbi que nada teve
a ver com as gémeas. E, na mesma ocasião, o MP constituiu arguido António
Lacerda Sales, o então secretário de Estado. Mais um grão de areia na
engrenagem do processo político, a que o MP já nos habituou, pois os políticos
é que são o corruptos!
Mais tarde, soube-se que o
MP do Brasil, após diligências, por carta rogatória do nosso MP, constituiu
arguido NRS, mas não de forma explícita.
***
Entretanto, a juíza de
instrução criminal (JIC) Gabriela Assunção não se conformou com o facto de o PR
não ser investigado em processo autónomo pelo MP do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), não se limitando a alegar aspetos formais ou a admitir, só em teoria,
que Marcelo Rebelo de Sousa podia ser investigado no caso das gémeas tratadas
com um medicamento que custou quatro milhões ao SNS. No despacho enviado ao STJ,
analisa todos os atos do PR no caso e conclui que o mais alto magistrado da
nação não teve comportamento “neutro”.
No documento, a magistrada argumenta que é “descrita pelo Ministério
Público a prática de atos, atribuíveis a Sua Excelência, o Senhor Presidente da
República que não são neutros, em relação aos atos imputados aos suspeitos”. Ou
seja, a JIC considera que o PR poderia ser investigado por coautoria no crime
de prevaricação, até porque o MP imputa “um crime de prevaricação ao suspeito
Nuno Rebelo de Sousa, que não tem a qualidade de ser titular de cargo político
e que nunca poderia intervir no exercício das suas funções”. O filho do chefe
de Estado é arguido por este crime, tal como Lacerda Sales, ex-secretário de
Estado da Saúde, e Luís Pinheiro, ex-diretor clínico do Hospital de Santa
Maria. Os pais das crianças são suspeitos de burla, por causa da atribuição de
nacionalidade portuguesa às filhas, para estas poderem receber o tratamento.
A juíza critica o MP por não ter “levado a cabo [...] qualquer
enquadramento jurídico, quanto à atuação de [...] Marcelo Rebelo de Sousa”, e
sustenta que, apesar de o PR “não ter a mesma competência e âmbito de atuação
[...] que teria o suspeito António Lacerda Sales [...], não se vislumbra como é
que se pode não ponderar, ainda que abstratamente, a convocação do artigo 28.º
do Código Penal também para a atuação que o Ministério Público descreve e
imputa ao Presidente da República, como fez quanto ao suspeito Nuno Rebelo de
Sousa”.
O artigo invocado refere-se à ilicitude na comparticipação em crimes.
Porém, a JIC ficou isolada nesta posição. Enviou o despacho ao STJ, porque
estavam em causa suspeitas sobre o PR, e o processo foi distribuído ao
conselheiro Celso Manata. O antigo diretor das prisões rejeitou, liminarmente,
o requerimento da juíza, com o argumento de que o MP “é o titular da ação
penal, sendo ao mesmo que cabe iniciar procedimentos criminais e promover as
diligências para o efeito pertinentes”. Além disso, acrescentou, em comunicado,
que a Assembleia da República (AR) teria de autorizar qualquer procedimento
criminal contra o PR, o que não aconteceu. E, numa resposta enviada ao STJ, o
MP reforçou não haver suspeita de que o PR tenha cometido qualquer crime e que
só os procuradores podem decidir se deve ou não ser investigado.
Ora, a JIC não se substituiu ao MP na iniciativa da investigação, nem na
direção da ação penal. Apenas se limitou a tecer uma crítica ao MP, que a
poderia ter aceitado ou não. É óbvio que uma investigação ao PR teria de ser
autorizada pela AR, mas o MP não lhe solicitou essa autorização. E dizer que o
PR não é suspeito de qualquer ilícito no caso não passa de opinião do MP.
Também há, para a Justiça do MP, políticos de primeira e políticos de
segunda.
Para sustentar a sua posição, a JIC resume os indícios recolhidos pelo MP
conexos com Marcelo. O caso começou porque NRS enviou um e-mail ao PR, seu pai, pedindo a intervenção deste no caso das
crianças ‘luso-brasileiras’ diagnosticadas com AME e cujos pais “são muito
amigos de uns amigos nossos”. “O pai pode ajudar?”, perguntava Nuno Rebelo de
Sousa.
Marcelo reencaminhou o e-mail para
o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, questionando se Maria João
Ruela, assessora para os Assuntos Sociais, “pode perceber do que se trata.” Depois
de se saber que os pais das gémeas pretendiam fazer um tratamento que custaria
dois milhões de euros por criança e de várias insistências de NRS, “foi
elaborado um ofício [...] dirigido ao chefe de gabinete do primeiro-ministro”.
E Frutuoso de Melo informou o filho do PR do ponto da situação: “Depois de
termos contactado o hospital, achámos adequado envolver o governo, pois a
gestão das listas de espera é da responsabilidade do Ministério da Saúde.”
Segundo a descrição do MP destacada pela JIC, NRS, sabendo das diligências da
Casa Civil e que a comunicação fora enviada para o Ministério da Saúde,
aproveitando-se do facto de ser filho do PR contactou o secretário de Estado da
Saúde, para agendar uma reunião. As consultas foram marcadas por ordem do
governante, o que é contra a lei. Para a JIC, o PR teve papel relevante no caso,
porque foi o seu chefe da Casa Civil que fez o contacto decisivo para que as
gémeas conseguissem a consulta e foi ele quem reencaminhou o e-mail do filho, que originou tudo.
***
O filho do
PR foi constituído arguido, mas sustenta que não cometeu qualquer ilícito. E o Departamento
de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa investiga a alegada prática dos
crimes de abuso de poder, de prevaricação, de burla qualificada e de tráfico de
influência. Contudo e ao invés do ex-secretário de Estado e do ex-diretor
clínico do Hospital de Santa Maria, não se confirmaram os crimes que o DIAP de
Lisboa imputa a NRS. O seu estatuto processual de arguido é assumido, de forma
subliminar, na missiva enviada pelos advogados à CPI, a propósito da tentativa
de convocatória para que o seu cliente deponha na CPI.
Os advogados
informam que o inquérito aberto no DIAP visa o cliente e que este prestou e
poderá prestar mais “esclarecimentos” nos “termos que o seu estatuto
processual” lhe confere. Tais esclarecimentos foram prestados por “carta
rogatória” expedida pelo MP para o Brasil, tendo o cliente fornecido morada
para ser notificado para diligências e apresentou um “memorial” ao DIAP de
Lisboa a expor a sua visão sobre os factos que estão sob investigação.
NRS trabalha
em São Paulo, no Brasil, e invocou esse facto, além de não ter previsto deslocação
a Portugal, num futuro próximo, para recusar vir à CPI nas datas que lhe foram
propostas. Contudo, mais tarde, mostrou-se disponível para depor na CPI, mas
com a reserva de usar do silêncio que lhe confere a condição de arguido, aliás como
fez Lacerda Sales.
***
Na CPI,
Lacerda Sales invocou a condição de arguido para se remeter ao silêncio, sempre
que as respostas supusessem qualquer forma de autoincriminação. Todavia, negou
que alguma vez tenha falado sobre a matéria, com o PR, com NRS ou com a
ministra da Saúde. E porfiou que nunca interveio em qualquer diligência junto
do hospital.
Questionado
se foi alguém do seu gabinete que marcou a consulta, disse não o saber. Com
efeito, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) referiu que a consulta
foi marcada a instâncias da Secretaria de Estado da Saúde. A este respeito,
sustentou que a IGAS chegara a conclusões ditadas pela pressão. Em todo o caso,
informou que foram tratadas 36 crianças, que ninguém foi ultrapassado e que não
havia lista de espera. E declarou-se indisponível para ser o bode expiatório de
quem quer que seja ou do quer que seja, sem especificar a quem ou a que se
referia.
Também
ouvida na CPI, a mãe das meninas alegou a condição de mãe, enfatizou que, por
vaidade, se gabara de conhecer a nora e o filho do PR (do que pede desculpa),
mas que só conhecera a nora do PR. Mais disse que pediu a intervenção de muita
gente no Brasil e fora do Brasil, mas não a NRS nem ao PR. E confrontada com e-mails que enviou, que a contrariam,
garantiu que não os enviou. O que terá sucedido é alguém os ter emitido em seu
nome, pois dera o acesso à sua conta eletrónica a muitos amigos. Como mãe,
merece compaixão, como depoente, merece repulsa!
***
Todos
deveriam ter assumido que o caso, de legalidade duvidosa, fora ditado por uma
razão humanitária e pedir desculpas (seria suficiente). Não obstante, em nome
da decência, Lacerda Sales, que está, à séria e sozinho, na berlinda, deveria
revelar tudo o que se passou e o grau de implicação de todos e de cada um dos
intervenientes. Só lucrava a Democracia, a Justiça e a Verdade. Ninguém está
acima da lei e é preciso não ter medo!
2024.06.22 – Louro de Carvalho
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