A escuta
telefónica é um meio de obtenção de prova
previsto e regulado nos artigos 187.º a 190.º do Código do Processo Penal (CPP)
e consiste na interceção e na gravação de conversações ou
comunicações telefónicas, nos
estritos casos tipificados no CPP, autorizadas por despacho fundamentado de um
juiz e realizadas só durante o inquérito e “se houver razões para crer que a
diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria,
de outra forma, impossível ou muito difícil de obter” (cf. artigo 187, n.º 1).
A leitura dos mencionados artigos permite concluir que as
escutas só podem ser guardadas (que não necessariamente publicadas) e
utilizadas, a título excecional, se isso for estritamente necessário para o
apuramento da verdade. Isso foi, reiterado por José Cunha Rodrigues, antigo
procurador-geral da República. A este respeito, Luís António Noronha do
Nascimento, antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), considerou
que as escutas que não tenham relevância criminal devem ser imediatamente
destruídas.
E, por mais ensarilhada que fique a leitura dos artigos supramencionados
do CPP pelo acervo de ditames de orientações do Ministério Público (MP) ou das
várias jurisprudências (obrigatórias ou não) dos tribunais superiores,
incluindo o Tribunal Constitucional (TC), nada invalida a índole excecional
deste meio de prova e a extrema cautela na sua utilização (veja-se, a este
propósito: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=199&tabela=leis).
Sendo assim, é indesculpável que o MP, em atitude reiterada,
sob o silêncio ou com a cobertura da Procuradoria-Geral da República (PGR),
divulgue, em circunstâncias de melindre político e social, conteúdos, ainda que
genéricos, de escutas, de processos de inquérito a propósito de suspeitas que,
mais tarde, se vem a descobrir terem pouca ou nenhuma consistência, mas que
funcionam bem, ao serviço do espetáculo de Justiça demolidor, provavelmente
inserido numa agenda político-partidária da parte de quem não a deveria ter.
Todos nos lembramos de como o parágrafo encavalitado em
comunicado da PGR, levou António Costa a não dispor de condições políticas
(segundo os diversos observadores) para continuar como primeiro-ministro (PM),
ficando os verdadeiros responsáveis “políticos” (MP, PGR ou outrem) pelo
colapso da maioria absoluta, resultante das eleições de 2022, a assobiar para o
lado, alegando que foi o PM que preferiu ir embora. E, como os eleitores, em
janeiro de 2022, em vez de terem votado no Partido Socialista, na interpretação
do Presidente da República (PR), votaram em António Costa, houve eleições, que
a Aliança Democrática (AD) ganhou por uma unha negra.
Em seguida, buscas espetaculares na Madeira levaram à rutura
do acordo parlamentar que segurava o governo de Miguel Albuquerque (constituído
arguido), o que não impediu que, após novas eleições regionais, viesse a
recuperar a governação, embora em condições mais precárias.
No pico da campanha para as eleições para o Parlamento
Europeu (PE), o MP procedeu a buscas na casa da cabeça de lista do PS, o azou
declarações públicas de repúdio da sua parte (frisando não ter cometido
qualquer ilegalidade e nada ter a ver com o caso das gémeas), de partidários
seus e de muitos observadores. Na mesma ocasião, o ex-secretário de Estado da
Saúde foi constituído arguido no processo das gémeas luso-brasileiras, o que
foi visto como interferência do MP no momento eleitoral. São coincidências em
excesso, a que assiste, impávida e serena, a PGR, não dando explicação. Se eu
não cresse na Justiça, pensaria que tudo vinha comandado superiormente.
Entretanto, nos últimos dias, alguém (do MP ou
das polícias de investigação criminal) passou, para alguma comunicação social,
escutas telefónicas de conversas entre António Costa e João Galamba, sobre
matérias do foro pessoal, governativo e político, mas sem relevância criminal,
o que levantou um clamor generalizado, ao nível dos princípios. Mais uma vez se
assistiu ao silêncio ensurdecedor da PGR. Por isso, os subscritores do
manifesto pela reforma da Justiça propõem um processo de escolha do
procurador-geral da República, aberto ao escrutínio público.
Por mais críticas que teçamos, com razão, ao
silêncio da atual procuradora-geral da República, à sua atuação e à do MP, que
superiormente lhe compete dirigir, não me parece que seja razoável a adoção de
uma medida que extravase a norma constitucional, segundo a qual o procurador-geral
da República é nomeado pelo Presidente da República (PR) sob proposta do
governo.
Porém, entendo que, perante abusos do MP e
fundada suspeita de intromissão do MP na vida privada dos cidadãos, mesmo dos
titulares de cargos públicos ou políticos, tanto o PR, como o governo se devem
pronunciar publicamente. E o procurador-geral da República deve ser instado a
ir à Assembleia da República (AR) dar explicações, como, periodicamente, lhe
deve dar contas da sua atividade, obviamente sem descer ao conteúdo de casos
concretos.
É de recordar que as ditas escutas sem relevância
criminal, postas na praça pública nos últimos dias funcionam como areia na
engrenagem da escolha dos líderes europeus, sendo sério candidato o ex-PM de
Portugal. Se a publicação fosse comandada superiormente, seria caso para concluir
(longe de mim pensar tal coisa), que as reiteradas asserções do PR sobre a
competência de António Costa para presidir ao Conselho Europeu ou as solenes
declarações do PM na noite eleitoral do passado dia 9 de junho, não passavam de
puro ato de cinismo político.
Aliás, Paulo Rangel, que tem larga experiência na
Europa, advertiu que a escolha dos líderes europeus é complexa e que falar
demasiado sobre isso poderia surtir o efeito não desejado.
***
Pensava que a reforma da Justiça, no atinente ao MP, pudesse ter de
passar pela revisão do CPP, mas um artigo de António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, publicado no Diário de Notícias (DN) online, a 23 de junho, sustenta que o modelo do MP, como foi concebido na Constituição
(CRP), na primeira Lei Orgânica e no mais recente Estatuto do Ministério
Público (EMP), não é aceite “pelas elites políticas e forenses que,
alternadamente, atuam no poder e se empenham profissionalmente na jurisdição
criminal”. À mesma recusa juntam-se os muitos “lesados do MP”, “com variadas e
mais ou menos reais ou inventadas razões de queixa”.
Para tal, contribuíram
alguns dos seus membros que agem “nas margens incertas e arriscadas das
interpretações doutrinárias e jurisprudenciais mais ousadas e menos no respeito
seguro pelos pouco flexíveis direitos fundamentais, que lhes cumpre,
especialmente, defender”. Também, “pela espetacularidade das suas intervenções”,
que não filtraram, refletem a imagem mediática do MP. “Sendo uma minoria, cujos
procedimentos, de inspiração mais policial do que judicial, grande parte de
procuradores não partilha”, é ela que faz a imagem mediática do MP.
Segundo Cluny, após o que se
passou, com a divulgação de importantes documentos processuais – assumida como
da responsabilidade do MP – pouco resta da indispensável legitimidade
comunitária, para que esta magistratura continue, indiferente ao sucedido, a exercer
as funções que a CRP e a lei lhe cometem. Assim, terão perdido oportunidade
algumas sugestões de reforma do sistema feitas por um advogado que tem
acompanhado o manifesto dos 50.
Retomando
ideias ensaiadas, com êxito, noutros lugares e divulgadas em textos de
procuradores mais velhos e informados – sem os citar, para não comprometer a
bondade e legitimidade de tais propostas, pela revelação da origem –,
propunha-se salvar e reformar o que deve ser corrigido.
Os últimos
acontecimentos, sendo ou não da autoria do MP – vinca António Cluny –
desgastaram gravemente a autoridade social e moral que permite a esta
magistratura continuar a exercer as funções que a CRP, o EMP e o Direito
Europeu lhe atribuíram.
Confirmado o
desvanecimento da legitimidade institucional e popular, que nenhum órgão do
poder quis sustentar, cabe aos deputados encontrar, na AR, outra solução e, se
possível, outro titular mais fiável, para assegurar a direção e o exercício da
ação penal. Porém, deve respeitar a independência funcional que a CRP e o Direito
europeu exigem do MP e exigirão, no futuro, de quem passar a exercer tais
funções. Contudo, a CRP prevê a “Instrução” atribuída aos juízes. Portanto, só
pode ser essa a solução político-constitucional do problema. E ver-se-á o que
mudará e como se comportarão os que hoje se indignam pela “conspiração” do MP.
Com efeito, a decisão sobre as medidas mais graves e limitativas das liberdades
é da competência do juiz, não do MP.
Porém, uma é
a responsabilidade do MP pela crise; outra é a de quem tudo mistura para, como
um todo, “desautorizar publicamente tal órgão constitucional”, acusando os
procuradores, ora de insubordinados, por não respeitarem a hierarquia, ora de
agirem em conjunto e com fins perversos.
É, pois, na
capacidade dos deputados da AR para encontrarem soluções novas e capazes de
resguardar os valores que a CRP e o atual Direito penal europeu quiseram
salvaguardar que reside a esperança de um povo que “não consentirá, de novo,
uma tutela política, explícita ou implícita, sobre o exercício da ação penal” (a
do Estado Novo), que deve ser regida pelo princípio da legalidade, para
garantir, de verdade, a igualdade dos cidadãos perante a lei.
Para Cluny, a
responsabilidade negativa dos que não acautelaram os direitos à sua guarda e a
dos que se aproveitaram politicamente de tais erros conduziu a esta hecatombe
institucional. E “os procuradores que, consciente ou inconscientemente, para
isto contribuíram, com indesculpável ligeireza de ânimo ou, pior ainda, com a
pura inconsciência das crianças travessas, não podem, pois, rejubilar-se com os
resultados obtidos”.
E o
magistrado jubilado adverte que “o Mundo é muito mais complicado e perigoso do
que se deixa ver nos jogos de computador e nos filmes americanos de ação
policial e espionagem”, pelo que nada pior do que, “desleixadamente, dotar os
arrivistas, de qualquer ordem e origem, de uma doutrina, de um dogma e de um
pau”.
***
Também o constitucionalista Vital Moreira anota que, novamente, o MP cedeu à imprensa
amiga escutas colhidas de processo em segredo de justiça, agora, de conversas sem
relevância penal – entre o ex-PM e o ex-ministro das Infraestruturas, sobre
questões de governo – que nem deveriam ter sido guardadas. É mais um caso de instrumentalização
da investigação para efeitos políticos, em que o MP “se tornou useiro e vezeiro”.
E, sem qualquer explicação da PGR, foi noticiada a abertura de inquérito
interno à “fuga” de informação.
Porém,
segundo Vital Moreira, ainda que o inquérito viesse a dar em algo – improvável,
dados os antecedentes –, está, de novo, consumada a interferência do MP na
ação política, sem que alguém assuma a responsabilidade institucional.
Um dos crimes
que o MP imputa aos políticos é o de prevaricação, a qual, nos termos da lei penal, consiste na
conduta de titular de cargo político, à margem do direito, para favorecer ou
prejudicar alguém. Ora, é o MP que preenche este tipo de crime, ao
instrumentalizar a investigação penal, desprezando a presunção de inocência e os
princípios da necessidade e da proporcionalidade nas escutas, nas buscas domiciliárias
e noutras medidas lesivas da privacidade, e violando o segredo de justiça) para
perseguição política, envolvendo-se a
magistratura constitucionalmente chamada a exercer a ação penal na atividade
delituosa que, tantas vezes, imputa, infundadamente, às vítimas do seu abuso de
poder. Assim se degrada, por dentro,
o Estado de direito, pilar básico da democracia constitucional.
Não sei se é preciso alterar o quadro legislativo ou se é de apostar na moralização
do MP, elogiando as boas práticas e penalizando quem prevarica. Em democracia,
há sempre solução.
2024.06.23 – Louro de Carvalho
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