quarta-feira, 26 de junho de 2024

João, a ponte entre os dois Testamentos, o antigo e o novo

 

A Igreja Católica celebrou, a 24 de junho, a Solenidade do Nacimento de São João Batista, como acontecimento sagrado. Entre os nossos maiores, não há nenhum cujo nascimento seja celebrado solenemente”, disse o bispo santo Agostinho (354-430), em seus sermões, nos primeiros séculos do cristianismo, sobre a natividade João Batista. “João apareceu, pois, como ponto de encontro entre os dois Testamentos, o antigo e o novo. O próprio Senhor o chama de limite, quando diz: “A lei e os profetas até João Batista” – acrescentou o santo doutor da Igreja.

João Batista nasceu seis meses antes de Jesus Cristo. O primeiro capítulo do Evangelho de Lucas narra que Zacarias era sacerdote judeu casado com santa Isabel e não tinha filhos, porque ela era estéril. Estando já de idade muito avançada, o anjo Gabriel apareceu a Zacarias e comunicou-lhe que a esposa teria um filho que seria o precursor do Messias, a quem daria o nome João. Zacarias duvidou da notícia e Gabriel disse-lhe que ficaria mudo, até que tudo fosse cumprido.

Meses depois, quando Maria recebeu o anúncio de que seria a Mãe do Salvador, a Virgem foi ver a sua prima Isabel e permaneceu ajudando-a até ao nascimento de João.

Assim, como o nascimento do Senhor é celebrado a 25 de dezembro, perto do solstício de inverno no Hemisfério Norte (o dia mais curto do ano), o nascimento de João é em 24 de junho, próximo do solstício de verão no Hemisfério Norte (o dia mais longo). Assim, depois de Jesus, os dias aumentam e, depois de João, os dias vão diminuindo, até que se volte “a nascer o sol”.

A Igreja assinalou estas datas no século IV, para que se sobrepusessem às duas festas importantes do calendário greco-romano: o “dia do sol” (25 de dezembro) e o “dia de Diana”, no verão, cuja festa comemorava a fertilidade. Já o martírio de João Batista é comemorado a 29 de agosto.

A 24 de junho de 2012, por ocasião desta solenidade, o Papa Bento XVI afirmou que o exemplo de João Batista chama os cristãos converterem-se, a testemunharem Cristo e anunciarem-No “em todo o tempo”. Em suas palavras prévias à oração mariana do Ângelus, recordou a vida de João e indicou que, “com exceção da Virgem Maria, João Batista é o único santo do qual a liturgia festeja o nascimento […], porque ele está estreitamente relacionado com o mistério da Encarnação do Filho de Deus”.

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O Ofício de Leituras aplica, em primeria leitura, ao Batista o passo de Jeremias (Jr 1,4-10.17-19) que trata da vocação do profeta, vincando: “Antes de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações.”

A objeção do escolhido foi que não sabia falar e que era muito novo. Porém, o Senhor, não aceitando a desculpa de que o escolhido era muito novo, garantiu que falará a todos aqueles a quem o enviar, sem medo, porque o Senhor o protege. Mais: o Senhor transformou o escolhido “numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o Mundo, frente aos reis de Judá e aos seus príncipes, aos sacerdotes e ao povo da terra”. Farão guerra contra o profeta, mas não prevalecerão, porque o Senhor defende o seu escolhido e estará com ele.

Em segunda leitura, o Ofício de Leituras aplica a João um trecho de um sermão de Santo Agostinho, bispo de Hipona (século V), sublinhando a principal caraterística de João: “Voz do que clama no deserto”. E Agostinho dá a sua explicação para a celebração do nascimento do Batista: “João nasce de uma anciã estéril; Cristo nasce de uma jovem virgem. O pai de João não acredita que ele possa nascer e fica mudo; Maria acredita, e Cristo é concebido pela fé.”

João apareceu, pois, como ponto de encontro entre os dois Testamentos. O próprio Senhor o chama de limite quando diz: “A lei e os profetas até João Batista” (Lc 16,16). Ele representa o antigo e anuncia o novo. Representa o Antigo Testamento, porque nasce de pais idosos; anuncia o Novo Testamento, porque é declarado profeta, estando nas entranhas da mãe. Antes mesmo de nascer, exultou de alegria no ventre materno, à chegada de Maria. Antes de nascer, já é designado; revela-se de quem seria o precursor, antes de ser visto por Ele. Tudo isto é divino e ultrapassa a limitação humana. Por fim, ao nascer, recebe o nome e solta-se a língua do pai.

Zacarias emudece e perde a voz, até ao nascimento de João, o precursor do Senhor; só então recupera a voz. O silêncio de Zacarias significa o sentido da profecia que, antes da pregação de Cristo, estava, de certo modo, oculto. Porém, com a vinda daquele a quem ela se referia, tudo se abre e se torna claro. O facto de Zacarias recuperar a voz no nascimento de João tem o mesmo significado que rasgar-se o véu do templo, quando Cristo morre na cruz. Se João se anunciasse a si mesmo, Zacarias não abriria a boca. Solta-se-lhe a língua, porque nasce aquele que é a voz. Quando João já anunciava o Senhor, perguntaram-lhe: “Quem és tu?” E ele respondeu: “Eu sou a voz do que clama no deserto.” João é a voz; o Senhor, porém, no princípio, era a Palavra. João é a voz no tempo; Cristo é, desde o princípio, a Palavra eterna.

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A missa da solenidade releva a figura profética de João Batista. Escolhido por Deus para ser profeta, ainda antes de nascer, ele é “dom de Deus” ao seu Povo. Marcando a importância de João na História da Salvação, a liturgia não deixa, contudo, de mostrar que João não é “a salvação”; ele veio dirigir o olhar dos homens para Cristo e preparar o coração dos homens para acolher “a salvação” que estava para chegar.

A primeira leitura (Is 49,1-6), replicando a primeira leitura do Ofício de Leituras, apresenta-nos uma misteriosa figura profética, eleita por Deus desde o seio materno, para ser a “luz das nações” e levar a Palavra ao coração e à vida de todos os homens. Impressiona a centralidade que Deus assume na vida do profeta: toda a missão profética brota de Deus e sustenta-se de Deus.

O trecho em apreço apresenta-nos o relato da vocação do “servo de Javé”. Como noutros relatos de vocação, o servo manifesta a convicção de que foi chamado por Deus desde “o seio materno”, o que sugere que a vocação profética só pode ser entendida à luz da iniciativa divina que, desde o início da existência, “agarra” o homem e o destina a uma missão no Mundo. A missão profética não é iniciativa do homem ou resultado dos méritos do homem, mas tem origem em Deus e só se entende e faz sentido à luz de Deus.

A missão a que o profeta é chamado por Deus tem a ver com a Palavra. O profeta é o homem que Deus elegeu, para que a Palavra chegue aos outros homens. Através dele, Deus revela-nos o seu desígnio e propõe-nos um caminho que nos leva a viver em relação com Deus. A Palavra que sai da boca do profeta não é palavra humana, mas Palavra de Deus. É por isso que o profeta diz que Deus lhe tornou a boca “uma espada afiada” ou uma “uma seta penetrante”. Estas imagens aludem à força da Palavra de Deus, que penetra nos corações e que não pode ser detida.

Na concretização da missão, o profeta experimenta a perseguição, a incompreensão, o fracasso (“foi em vão que me fatiguei, inutilmente gastei as minhas forças”). Porém, isso não significa que o profeta andou a perder tempo e lamenta o seu empenhamento, mas que está consciente de que não perdeu nada, porque Deus não deixou de o proteger e de lhe dar a paga merecida (“o meu direito está nas mãos do Senhor, a minha recompensa está depositada no meu Deus”).

O decisivo para o profeta é ter cumprido, com fidelidade, a missão que Deus lhe confiou e a consciência de que Deus não o abandonou.

A missão confiada ao profeta foi reconduzir Jacob a Javé, reunir Israel a Deus. No entanto, a missão alarga-se e universaliza-se, agora que Israel se movimenta num cenário internacional (nesta fase, o Povo de Deus está exilado em terra estrangeira). O que Deus vai realizar em favor de Israel será acontecimento universal, visível para todas as nações. Da ação salvadora de Deus, brotará uma luz que iluminará todos os povos, que os fará descobrir Deus e aderir a Javé.

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Na segunda leitura (At 13,22-26), Paulo fala de João aos Judeus de Antioquia. Na perspetiva do apóstolo, a missão de João consistiu em convidar os homens à mudança de vida e de mentalidade, para acolher o “Reino” que Jesus veio proclamar. Paulo deixa claro que João não é o Messias libertador, mas aquele que vem preparar o coração dos homens para acolher o Messias.

O discurso posto por Lucas na boca de Paulo consta de reflexões sobre o Antigo Testamento, em rápida síntese da “História da Salvação”, indicando alguns dos seus fios condutores, para mostrar que tudo converge para Jesus e que tudo culmina em Jesus.

Neste contexto, surge a referência a João, aquele que veio preparar a vinda de Jesus, propondo um batismo de conversão a todo o povo de Israel. A expressão grega “baptísma metanoías” alude à transformação radical das mentalidades, para que o “Reino” anunciado por Jesus encontre acolhimento no coração e na vida de todos os homens. O Batista não é o Messias esperado, mas o profeta que anuncia aquele que virá a seguir e ao qual João não se sente sequer digno de “desatar as sandálias”. Esta expressão denuncia a consciência que o profeta tem de ser um simples e frágil instrumento de Deus. Com efeito, João esforça-se por não apontar para si mesmo, mas para Cristo. A missão do profeta não é dirigir o olhar do Mundo na sua própria direção, mas orientar o coração dos homens para o essencial, para Deus.

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O Evangelho (Lc 1,57-66.80) relata o nascimento de João. Na ótica lucana, os acontecimentos ligados ao seu nascimento mostram como o profeta João é “dom de Deus”. Começa, nessa altura, a tornar-se claro, para todos, que Deus está por detrás da existência de João e que a sua missão é ser sinal de Deus no meio dos homens.

O relato começa por descrever o quadro de alegria que acolheu o nascimento do filho de Zacarias e de Isabel. A alegria – elemento caraterístico da teologia lucana – significa que chegaram os tempos novos, do cumprimento das promessas de Deus, da misericórdia de Deus.

Por alturas da circuncisão (no oitavo dia após o nascimento, data legal da circuncisão, põe-se a questão do nome a dar ao menino (no Antigo Testamento, o nome é dado à nascença, mas aqui aparece o costume helenista, assumido pelo judaísmo recente). Os vizinhos e parentes dão como adquirido que o menino se chamará como o pai. Porém, Isabel e Zacarias escolhem o nome “João”, indicado pelo anjo, aquando do anúncio do nascimento. O nome significa literalmente “o Senhor concede graça”: o menino é “dom de Deus” e o primeiro sinal da graça que Deus vai derramar sobre os homens, através do Messias que está para chegar. Por outro lado, o acordo da mãe e do pai sobre o nome, que não era familiar, aparece como divinamente inspirado.

Diante do nascimento de João, Lucas nota o espanto e o temor de todos os presentes. O espanto é a reação das multidões diante dos milagres e de outras teofanias; o “temor” define a atitude normal do homem ante o mistério, o transcendente, o divino. Lucas fará referência ao “temor” ante as revelações, os milagres e outras intervenções divinas.

O quadro completa-se com a indicação de que, “de facto, a mão do Senhor estava com ele”. A expressão inspira-se no Antigo Testamento, onde serve para exprimir a proteção de Deus sobre os seus fiéis e a sua ação sobre os profetas. Aqui, significa que João tem a proteção de Deus e que Deus age nele. Tudo isto define um quadro de presença e de intervenção de Deus, mostrando que toda a existência de João se compreende à luz da iniciativa divina.

No final, surge uma fórmula-resumo da infância de certas figuras que tiveram papéis de grande relevo na História do Povo de Deus (“O menino ia crescendo e o seu espírito fortalecia-se”). E há referência à ida de João para o deserto. O deserto é o lugar onde Israel fez a experiência do encontro com Deus libertador, sentiu, de forma especial, o amor de Deus e a Aliança e o seu compromisso: é essa experiência que João fará, para a apresentar ao Povo. Além disso, a referência ao deserto prepara a aparição de João no Evangelho, cerca de 30 anos depois.

No relato, transparece a centralidade de Deus em todo o processo. João é um dom de Deus, vem com uma missão de Deus e é sinal da presença de Deus no meio do Povo.

2024.06.26 – Louro de Carvalho

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