quarta-feira, 19 de junho de 2024

Utilização do serviço de vítimas de tráfico deve ser criminalizada na UE

 

Decorreu, em Bruxelas, a 17 e 18 de junho, uma reunião da Rede Europeia de Coordenadores e Relatores Nacionais, presidida pelo Coordenador da Luta Antitráfico da União Europeia (UE), cujo tema fulcral foi o tráfico de seres humanos na UE.
Ylva Johansson, comissária europeia dos Assuntos Internos, na sua intervenção, deixou o aviso muito sério de que a nova diretiva determina que “utilizar, de forma consciente, serviços de vítimas de tráfico” será considerado crime em toda a UE. A impunidade acabou. Haverá consequências. Haverá castigo. Haverá prisão”, enfatizou a oradora. “Assegurei-me de que, em breve, será crime, em toda a União Europeia, utilizar, de forma consciente, serviços de vítimas de tráfico. Anteriormente, esta prática só era criminalizada em alguns estados-Membros”, precisou.
A UE lançou uma estratégia para combater o tráfico de seres humanos, em abril de 2021, com metas para 2025. “No ano passado, os traficantes geraram mais de 200 mil milhões de dólares em todo o Mundo. Estamos, agora, a combater a cultura da impunidade com uma nova regra de recuperação de ativos. Vamos retirar os seus carros e casas de luxo, e as montanhas de dinheiro”, garantiu a comissária europeia dos Assuntos Internos.
As causas mais apontadas para o aumento e prevalência do tráfico são as desigualdades cada vez mais acentuadas e as políticas de imigração mais restritivas.
Também a guerra na Ucrânia constitui um novo cenário de preocupação. A deslocação de mulheres e crianças, em grande quantidade, criou novas oportunidades para as organizações criminosas. “As mulheres e crianças ucranianas continuam vulneráveis e a ser um alvo. Congratulo-me com o facto de a Europol ter criado, em março, uma operação contra os traficantes que visam os ucranianos”, lembrou Ylva Johansson.
Também a exploração laboral, que esteve na agenda do dia, representa 40 % do tráfico de seres humanos. E Ylva Johansson denunciou o caso holandês em que o trabalho de “limpeza de janelas” é, muitas vezes, realizado com pessoas vítimas de tráfico humano: “Na cidade holandesa de Zaanstad, a limpeza de janelas é um negócio sujo […], as empregadas de limpeza são pobres [e] de um outro estado-membro. Têm horários de trabalho de 12 a 14 horas, por oito euros à hora. Numa casa, as autoridades encontraram 78 colchões para 78 trabalhadores. O aluguer é de 800 euros, por mês, por um colchão.”
Também em Portugal foram denunciados casos semelhantes, maioritariamente, relacionados com o trabalho no setor agrícola, na pastorícia e na construção civil.
Já a reunião da Rede Europeia de Relatores Nacionais e Mecanismos Equivalentes sobre Tráfico de Seres Humanos, a 25 e 26 de abril de 2023, em Bruxelas, convocada pelo coordenador Antitráfico da UE e pela presidência sueca do Conselho da União Europeia e em que participou Manuel Albano, vice-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) e relator nacional para o Tráfico de Seres Humanos, tinha como objetivos fazer um balanço das iniciativas que abordam a dimensão internacional do tráfico de seres humanos e identificar exemplos bem-sucedidos de cooperação, bem como potenciais lacunas e desafios a abordar, conjuntamente, pela UE, pelos estados-membros, pelas organizações internacionais e pelos países de origem e de trânsito, na implementação da Estratégia de Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2021-2025.
Anualmente, a UE identifica mais de sete mil vítimas de tráfico de seres humanos; em média, 45% destas são países fora da UE. Contudo, muitas não chegam a ser sinalizadas. De acordo com os dados mais recentes da UE (para o período 2018-2021), os principais países de origem foram a Nigéria, a China, Marrocos, a Colômbia, o Paquistão, o Brasil, a Moldávia e a Ucrânia.
A relação entre tráfico de seres humanos e a migração é suportada por uma complexa forma de trabalhar. Estas redes atuam junto de pessoas vulneráveis e originárias de países também eles vulneráveis, oferecendo-lhes propostas de emprego aparentemente legítimas. Porém, ao chegarem à UE, caem nas mãos de traficantes. Estas pessoas também podem ser traficadas em fluxos migratórios mistos, quer para a UE, quer para outras rotas. A complexidade deste fenómeno criminoso e as graves consequências que têm para as pessoas que caem nestas redes exigem uma abordagem multissetorial.
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A rota de migração mais mortal no Mundo e onde ocorreu o maior número de desaparecimentos é o Mediterrâneo Central. Até novembro de 2023, morreram ou desapareceram, nas suas águas, pelo menos, 2480 migrantes, número que já excedia as estimativas de 2022, de acordo com estatísticas atualizadas da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
O Projeto Migrantes Desaparecidos desta agência da Organização das Nações Unidas (ONU), que faz um acompanhamento atualizado dos acidentes nas rotas migratórias em todo o Mundo, indica que os números de 2022 mortos2411 – já tinham sido ultrapassados e que 2023 é confirmado como o ano mais mortal para a migração nas rotas do Mediterrâneo, desde 2018.
Desde que a OIM lançou o sistema de monitoramento em 2014, o ano com mais mortes e desaparecidos confirmados foi 2016, com 5136 vítimas.
A 17 de junho deste ano de 2024, confirmou-se que a travessia do Mediterrâneo continua a ser letal para muitos migrantes. Efetivamente, segundo as agências da ONU, dois naufrágios ao largo da costa sul de Itália causaram a morte a, pelo menos, 11 migrantes e deixaram dezenas de desaparecidos. Um barco que transportava migrantes incendiou-se e virou-se, a cerca de 200 quilómetros da costa da Calábria. Os sobreviventes disseram que a embarcação estava no mar há oito dias. E um comunicado da guarda costeira italiana informou que a operação de salvamento se iniciou, após o alerta dado por um barco francês que se encontrava nas proximidades.
Cerca de 12 sobreviventes foram resgatados e levados para o porto de Roccella Jonica, para receberem tratamento médico, tendo um deles morrido pouco depois de chegar; e 64 pessoas foram dadas como desaparecidas, a maioria do Irão, da Síria e do Iraque, de acordo com as agências da ONU, citadas pela AP.
Já perto da ilha de Lampedusa, nos dias subsequentes, foi detetado também um barco de madeira, que parecia ter naufragado e que transportava 61 pessoas. A tripulação do navio humanitário alemão Nadir retirou 51 pessoas da embarcação, incluindo duas que estavam inconscientes.
Foram ainda encontrados dez corpos de migrantes presos ao convés do barco que transportava migrantes vindos sobretudo do Bangladesh, Paquistão, Egito e Síria. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) têm estado a prestar assistência psicológica e primeiros socorros aos sobreviventes.
De acordo com a OIM, mais de 3150 migrantes morreram ou desapareceram no Mediterrâneo, no ano passado, o que faz desta a rota migratória mais mortífera do Mundo.
Todavia, nem só o Mediterrâneo é campo de morte para migrantes. A 7 de dezembro de 2023, uma reportagem da Euronews Sérvia, mostrava o drama dos migrantes desconhecidos que morrem na travessia da rota dos Balcãs. Muitos migrantes nessa rota perdem a vida nos rios. O Drina, entre a Sérvia e a Bósnia-Herzegovina, é rápido e é mortal. Perto da cidade de Loznica, no lado sérvio da fronteira, rodeado por densa floresta, o Drina é um obstáculo para os migrantes que tentam atravessar em busca de uma vida melhor.
Milica Švabić, advogada da KlikAktiv, uma organização não-governamental (ONG), conta: “O problema é que não sabemos quem está a ser enterrado. Todas as campas estão marcadas como pessoas desconhecidas e apenas é indicado o ano da morte. Por isso, muitas vezes, não sabemos quem está ali enterrado.”
Não se sabe quantos migrantes se afogaram no Drina, tal como não se sabe quantos morreram na Sérvia ou em todos os Balcãs. As instituições não mantêm registos oficiais. No cemitério de Loznica, há 12 campas idênticas. A única fonte de informação é a base de dados online 4D, gerida por ativistas. “Consigo imaginar quantas pessoas morrem e ninguém sabe delas”, diz Vojin Ivkov, realizador de documentários. “Refiro-me àqueles invernos em que caminham e atravessam estes rios poderosos. Alguém adormece e os outros continuam a andar. O corpo fica lá. Vamos encontrar esses corpos nas florestas à volta das fronteiras daqui a dez anos”, explanou.
As mortes de migrantes na rota dos Balcãs são registadas naquela base de dados. Foram registadas 400 mortes, desde 2015.
O número de fatalidades nas Américas é, até agora, estimado em 1078. Nas últimas duas décadas, a passagem da fronteira entre o México e os Estados Unidos da América (EUA) tornou-se palco de uma grave crise de direitos humanos. As principais causas diretas de morte identificadas nesta área são afogamentos – principalmente no Rio Grande/Rio Bravo e canais adjacentes – e mortes causadas por condições ambientais adversas e falta de abrigo, comida e água.
Ao mesmo tempo, sabemos do drama dos migrantes que tentavam passar de França para o Reino Unido, via Canal da Mancha ou ligação ferroviária da Mancha.
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Em 7 de abril deste ano de 2024, a situação migratória agravou-se ainda mais, com a crise de refugiados por causa da guerra no Leste da Europa. As redes de traficantes estão ativas na Ucrânia e em países vizinhos, gerando preocupação crescente. Na verdade, a guerra na Ucrânia provocou um fluxo de refugiados sem precedentes e representa uma oportunidade para traficantes de seres humanos, que se aproveitam das circunstâncias. Muitas mulheres ucranianas, acompanhadas de crianças, viram-se obrigadas a abandonar, pelo próprio pé, o país, mas, na procura por um porto seguro, correm o risco de cair nas malhas da exploração sexual. Em Beregsurány, uma vila húngara junto à fronteira com a Ucrânia, é conhecida a história de Olga, que deixou Dontesk rumo a Berlim, numa altura em que a UE cerra fileiras ao contrabando de pessoas.
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Não é sem razão, antes bem premente, a proposta de uma Aliança Global contra o Tráfico de Migrantes, com governação comum e objetivos partilhados”, preconizada por Ursula von der Leyen, a 28 de novembro de 2023, em Bruxelas, durante uma conferência internacional, promovida pela Comissão Europeia.
A chefe do executivo europeu, que esteve, em setembro, em Lampedusa, não tem dúvidas: “Gestão de crises é importante, mas não é suficiente.”
Resolver o problema na origem e deixar de apenas reagir é o objetivo de uma Aliança Global contra o Tráfico de Migrantes: “Precisamos também de uma Aliança Global, com uma governação comum e objetivos partilhados. Deve ser global, não só no sentido geográfico, mas também no seu âmbito. Centrando-se na prevenção, na resposta e nas alternativas legais às rotas de contrabando mortais. Foi este o espírito que nos levou a organizar esta conferência.”
Esta conferência ocorreu dias depois de a junta militar, que passou a ocupar no poder no Níger, ter revertido legislação apoiada pela UE, que criminalizava o tráfico de migrantes no país.
O chefe da junta militar alegava que essa lei de 2015 “não tinha em consideração os interesses do Níger e dos respetivos cidadãos” e por isso tinha de ser “apagada”.
A decisão da junta foi também vista como uma resposta à oposição europeia à mudança de poder e aos pedidos para a reposição do presidente deposto em julho de 2023.
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É verdade que os grandes problemas, como a migração coletiva, comportam emergências a que é preciso dar resposta forte e imediata. Porém, eles só ficarão resolvidos, se forem atacados na raiz e em regime de aliança solidária dos países envolvidos – quer os de acolhimento, quer os de origem. E essa aliança terá de ser abrangente. Não sendo assim, andaremos, todos os dias, a ter notícias de naufrágios (com salvamentos, detenções, julgamentos, condenações ou absolvições), de mortes, de desaparecimentos, de tráfico de pessoas, de exploração sexual e laboral, de guerra, de desastre. Não foi para isso que nasceram as pessoas, não foi para isso que se criaram os estados. A dignidade humana e o bem comum deviam prevalecer.

2024.06.19 – Louro de Carvalho

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