segunda-feira, 24 de junho de 2024

Em maré de inquietação e de crise, lembramo-nos de Deus

 

Nos muitos momentos que a vida nos proporciona de medo, de inquietação e de crise, em que nos sentimos a afundar, perguntamos onde está Deus e se Ele não se importa connosco.

A liturgia do 12.º domingo do Tempo Comum no Ano B garante-nos que Deus não abandona nem ignora os filhos que criou; antes, os ampara com amor fiel, vigilante e criador, caminhando ao seu lado e cuidando deles, em cada passo da peregrinação da vida.

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No Evangelho (Mc 4,35-41), Marcos oferece-nos uma catequese sobre a presença tranquilizadora de Jesus na viagem que a Igreja e os discípulos fazem pela História. Com Jesus ao comando no barco, os discípulos estão aptos a enfrentar todas tempestades, pois sabem que a meta final da viagem não pode deixar de ser o porto seguro onde os espera a Vida.

Jesus está junto do Mar da Galileia, ao lado de Cafarnaum. Apresentou à multidão o seu anúncio, em parábolas, sobre o Reino de Deus. Com o dia a terminar, decidiu passar “à outra margem”. Do ponto de vista geográfico, a “outra margem” é o território pagão da Decápole, nome da região da Palestina oriental, que se estendia de Damasco, ao Norte, até Filadélfia, ao Sul. As dez cidades (“Decápole”) do território (Damasco, Filadélfia, Rafana, Beth Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata) formavam uma confederação, constituída após a conquista da Palestina pelos Romanos, no ano 63 a.C.. Eram cidades de cultura grega que estavam sob a administração do legado romano da Síria. Os Judeus consideravam os seus habitantes como pagãos, que viviam à margem dos caminhos da salvação.

O episódio narrado no trecho em apreço passa-se durante a travessia do “Mar da Galileia” (não é mar, mas antes lago de água doce, alimentado, sobretudo, pelas águas do Jordão, com cerca de 12 quilómetros de largura e 21 de comprimento. As tempestades que nele se levantavam, causadas pelo cruzamento dos ventos do Mediterrâneo com os do deserto, apareciam subitamente e eram muito violentas. Para a mentalidade judaica, o “mar” era uma realidade assustadora, indomável, orgulhosa, desordenada, onde residiam os poderes caóticos que o homem não controlava e onde estavam os poderes maléficos que destruíam os homens. Só Deus lhe podia pôr limites, dar-lhe ordens e libertar os homens dessas forças descontroladas.

Com elementos de forte carga simbólica (mar, barco, tempestade, noite, sono), Marcos reflete sobre a comunidade dos discípulos em marcha pela História, em tempo em que a Igreja enfrenta sérias tempestades (perseguição de Nero, problemas internos com a diferença de perspetiva entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, dificuldades da comunidade em encontrar o rumo para o futuro); e apresenta aos crentes indicações sobre o modo de viverem a fé e o compromisso com Jesus.

Em primeiro lugar, Marcos situa nos no mar, ao anoitecer. Situar o barco com Jesus e os discípulos no mar é pô-los num ambiente hostil, adverso, perigoso, caótico, rodeados pelas forças que lutam contra Deus e contra a felicidade do homem. A noite, que é o tempo das trevas, da falta de luz, aparece ligada ao medo, ao desânimo, à falta de perspetivas. O mar e a noite são uma realidade de dificuldade, de hostilidade, de incompreensão, de “sombras”, que faz, tantas vezes, o “cenário” das nossas “viagens”. E o barco é, na catequese cristã, o símbolo da comunidade de Jesus, que navega pela História: Jesus está no “barco”, mas são os discípulos que se encarregam da navegação, pois é a eles que é confiada a tarefa de conduzir a comunidade pelo mar da vida.

O barco dirige-se “para a outra margem”, ao encontro dos pagãos, pois a missão da comunidade cristã é ir ao encontro das pessoas de todas as raças e culturas, para lhes levar Jesus e a libertação.

Durante a travessia, Jesus “dorme”. O sono tranquilo de Jesus significa a paz e a serenidade que Ele pretende transmitir aos discípulos ao longo da “viagem” que faz com eles, mas também pode significar que os discípulos, ao longo da “viagem”, têm, por vezes, a sensação de que estão sós, abandonados à sua sorte e que Jesus não está com eles ou não se importa com eles. Porém, a “ausência” de Jesus nunca será realidade: Ele garantiu aos discípulos que estaria sempre com eles “até ao fim dos tempos” (cf. Mt 28,20). Será o ativismo dos discípulos que não lhes dá espaço para repararem em Jesus, que vai à popa, no lugar do comando.

A “tempestade” significa as dificuldades que o Mundo opõe à missão dos discípulos. Talvez Marcos estivesse a pensar numa tempestade concreta, como a perseguição de Nero aos cristãos de Roma, na qual foram mortos Pedro e Paulo, bem como muitos outros cristãos (anos 64-68). Porém, a tempestade refere-se também aos momentos de crise, de perseguição, de hostilidade que os discípulos terão de enfrentar ao longo do seu caminho histórico, até ao fim dos tempos.

Jesus, respondendo aos discípulos, acalma a fúria do mar e do vento, com a sua Palavra imperiosa. Aparece como o Deus que acompanha a difícil caminhada dos discípulos pelo Mundo e que cuida deles no meio das dificuldades e da hostilidade do Mundo.

Depois de acalmar o mar e o vento, Jesus repreende os discípulos pela sua falta de fé: “Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?” Com efeito, os discípulos, depois do caminho feito com Jesus, deviam saber que Ele nunca está ausente, nem alheado deles. Não podem esquecer que Jesus vai sempre com eles no mesmo barco e que, por isso, nada têm a temer.

O trecho sublinha o “temor” dos discípulos e a pergunta que eles fazem uns aos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”. O temor define o estado de espírito do homem ante a divindade. No universo bíblico, o temor não denota pânico ou medo servil, mas encerra um misterioso poder de atração que se traduz em obediência, entrega, confiança, entusiasmo. Tal atitude positiva deriva da experiência que o crente israelita tem de Deus: Javé é um Deus presente, que guia o Povo com solicitude paternal e maternal. Por isso, o crente tem consciência da omnipotência de Deus, mas sabe que pode confiar incondicionalmente n’Ele e entregar-se nas suas mãos. A resposta à questão “Quem é este?” está dada: o temor dos discípulos significa o seu reconhecimento de que Jesus é o Deus presente no meio dos homens e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total entrega. É com esse Jesus – o Deus que está ao nosso lado em cada ponto do caminho e que nos ajuda a enfrentar todas as tempestades, todas as crises, todos os medos – que viajamos. Ele vai à popa do nosso barco. Com Ele viajamos tranquilos, ainda que o barco não pare de balouçar nas ondas da vida.

Comentando este passo evangélico, o Papa foca-se na súbita chegada da tempestade que pôs o barco em risco de se afundar. E Jesus, que dormia, “acorda, ameaça o vento e tudo volta à calma”.

Todavia, sustenta o Pontífice, de facto, Jesus “não acorda, acordam-no”. Fora Ele a dizer-lhes que entrassem no barco e atravessassem o lago, pois eram experientes, pescadores, e aquele era o seu ambiente. Porém, a tempestade pô-los em apuros. Parece que Jesus os quis pôr à prova. Porém, não os deixa sós, fica com eles, em silêncio, até a dormir. E, quando a tempestade se desencadeia, tranquiliza-os, incita-os a terem mais fé e acompanha-os para lá do perigo.

É caso para perguntamos porque se comporta assim Jesus. O escopo é reforçar a fé dos discípulos e torná-los  corajosos. Saem desta experiência conscientes do poder de Jesus e da sua presença no meio deles e, por isso, mais fortes e dispostos a enfrentar os obstáculos e as dificuldades, incluindo o medo de se aventurarem a anunciar o Evangelho. Superada esta prova com Ele, serão capazes de enfrentar muitas outras, para levarem o Evangelho a todas as nações.

No dizer de Francisco, “Jesus faz o mesmo connosco, em particular na Eucaristia: reúne-nos à sua volta, dá-nos a sua Palavra, alimenta-nos com o seu Corpo e Sangue, e depois convida-nos a fazer-nos ao largo, para transmitirmos o que ouvimos e partilharmos com todos o que recebemos, na vida de todos os dias, mesmo quando é difícil”. Não nos tirando das dificuldades, ajuda-nos a enfrentá-las com corajosos. Assim, nós, superando tudo com a sua ajuda, aprendemos a estreitar-nos com Ele, a confiar no seu poder, a superar incertezas e hesitações, fechamentos e preconceitos, com coragem e com grandeza de coração, para dizermos a todos que o Reino dos Céus está presente e que, com Jesus, podemos fazê-lo crescer juntos, para lá de todas as barreiras.

Quando vem a tempestade, não podemos deixar-nos dominar pelo tumulto, mas devemos estreitar-nos com Jesus, para encontrarmos “a calma e a paz, na oração, no silêncio, na escuta da Palavra, na adoração e na partilha fraterna da fé”.

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Na primeira leitura (Jb 38,1.8-11), Deus revela-se a Job como o Senhor que domina o mar e conhece os segredos do universo e da vida. Nada lhe é indiferente: Ele cuida de todos os seres criados com amor de pai e de mãe. Ao homem resta entregar-se nas mãos desse Deus omnipotente e cheio de amor, com humildade e com total confiança.

O Livro de Job é um clássico da literatura, pela beleza literária e pelas questões que aborda e que tocam o âmago da existência humana. Job serve de pretexto para refletir sobre os grandes desafios aos homens de todas as épocas, como o problema do sofrimento do inocente, a situação do homem ante Deus e a atitude de Deus face ao homem. É a saga do homem justo, de súbito atingido por um vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a saúde. Job interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e do papel de Deus no seu drama pessoal.

Alguns dos amigos respondem-lhe com a tese da teologia oficial: o sofrimento é o resultado do pecado do homem. Portanto, se Job sofre, pecou. Job recusa tal conclusão e demonstra a falência da doutrina oficial para explicar o seu drama. Com apurado sentido crítico, desmonta os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusa o Deus contabilista que Se limita a registar as ações boas e más do homem, para lhe pagar em conformidade. E, rejeitada a explicação tradicional para o sofrimento, Job dirige-se Àquele que lhe pode dar as respostas: Deus.

No discurso, muito crítico, cruzam-se a animosidade, a violência, a queixa, o inconformismo, a dúvida, a revolta, com a esperança, a fé e a confiança. Quando Deus enfrenta Job, recorda-lhe o seu lugar de criatura, limitada e finita; mostra-lhe como só Ele conhece as leis que regem o universo e a vida, mostra-lhe a sua preocupação e amor com cada ser criado; e convida-o a não se pôr em bicos de pés, mas a ocupar o lugar de criatura, sem pôr em causa o desígnio de Deus, já que esse desígnio ultrapassa a capacidade de compreensão de qualquer criatura. Deus tem uma lógica, um projeto que ultrapassa o que cada homem (também Job) poderá entender.

A história termina com Job a perceber o seu lugar, a transcendência de Deus e a inefabilidade do seu desígnio, a entregar-se nas mãos de Deus com humilde confiança.

O trecho em referência começa por apresentar Javé a responder a Job “do meio da tempestade”. É o quadro habitual das teofanias a emoldurar a manifestação aos homens do Deus todo-poderoso, o soberano de toda a terra. Job deve estar ciente de que Aquele que lhe fala é o Deus omnipotente, o Senhor do universo e da História. Deus manifesta-se e fala com ele, para lhe fazer perceber a insensatez das suas críticas. Depois de se apresentar como o grande arquiteto que construiu a terra, Javé descreve o que fez com o mar.

As antigas lendas mesopotâmicas da criação apresentavam as águas salgadas (representadas pela deusa Tiamat) como o monstro criador do caos; na luta para organizar o cosmos, Marduk, o deus da ordem, lutou contra o mar e, com muito esforço, pôs-lhe limites.

O Povo bíblico, influenciado pelos mitos mesopotâmicos, sempre viu no mar a realidade indomável, onde residiam os poderes caóticos que o homem não controla. Mas Deus descreve, de forma pacífica e bela, a forma como lidou com a força ameaçadora que Marduk teve tanta dificuldade em controlar: logo que o mar saiu “do seio materno” (“irrompeu do seio do abismo”), Deus tratou-o como a recém-nascido, com cuidados e carícias, vestindo-o de neblina e colocando-lhe uma faixa de nuvens; depois, para que ele, ao crescer, não se tornasse força indomável, “encerrou-o entre dois batentes” e “fixou-lhe os limites”. O mar, controlado e tratado com amor, testemunha o poder supremo de Deus sobre toda a criação.

Ao lembrar a sua ação criadora sobre o mar, Javé apresenta-Se intocável na sua transcendência e mostra que tem para a criação um plano estável, consolidado, irrevogável. E Job é convidado a aceitar que o Deus de quem depende toda a criação, que submete o mar, que cuida da criação com cuidados de mãe, sabe o que está a fazer e tem solução para os problemas e dramas do homem. O homem é que nem sempre percebe o alcance e o sentido último do projeto de Deus.

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Na segunda leitura (2Cor 5,14-17), Paulo convida-nos a olhar para a cruz e a contemplar o amor de Jesus expresso na entrega total da sua vida ao projeto do Pai em prol dos homens. Deus enviou o seu Filho para caminhar connosco e para nos ensinar a viver no amor. É isso que move Paulo no apostolado: sente que a sua missão é dar testemunho desse amor, para que todos os que escutam a Boa nova de Jesus vivam como pessoas novas, libertas do egoísmo que escraviza.

Só Deus tem todas as respostas e conhece os segredos do universo e da vida. Ao homem, finito, resta entregar-se nas mãos desse Deus omnipotente e cheio de amor, adorá-Lo e louvá-Lo, confiar na sua sabedoria, ver n’Ele a sua esperança e a sua salvação.

O apóstolo fez a experiência do amor de Cristo e deixou-se tocar por ele. Descobriu que “Cristo morreu por todos”, fazendo da sua vida dom de amor. Cristo não viveu para Si, não pôs os seus interesses acima do plano salvador que o Pai lhe tinha confiado, mas deu a vida, até às últimas consequências (a cruz), para mudar as nossas vidas e nos oferecer a salvação.

Quem olha a cruz não deixa de sentir-se interpelado por este exemplo de amor; e, contemplando o exemplo de Jesus, aprende a não viver fechado em si, de forma egocêntrica, mas a viver com o coração aberto a Deus e aos irmãos. É esta boa nova que absorve Paulo e que ele sente que deve testemunhar a todos os irmãos. Paulo admite que, no passado, entendeu Cristo à maneira humana, não percebendo que a sua doação até à morte era expressão de amor ilimitado; mas, depois de se ter encontrado com Cristo ressuscitado na estrada de Damasco, passou a entendê-Lo e a ver as coisas de modo diferente. Desde então, nunca deixou de dar testemunho do amor de Jesus.

Paulo anuncia, por mandato de Cristo, que, pela adesão a Cristo, desaparece o homem velho do pecado e surge a nova criatura. O termo grego aqui utilizado (“ktísis”) pode significar “criação”, “criatura” ou “humanidade”. O cristão, que aderiu a Cristo, é nova criatura, membro de nova Humanidade. Identificado com Cristo, vive por amor e ruma à Vida plena, à salvação definitiva. Paulo conheceu o amor de Cristo e tornou-se nova criatura; e nunca deixa de testemunhar isto ante o Mundo inteiro. É este o dinamismo cristão e apostólico.

2024.06.24 – Louro de Carvalho

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