domingo, 30 de junho de 2024

“Mandou dar de comer à menina!”

 

A leitura do trecho evangélico do 13.º domingo do Tempo comum no Ano B (Mc 5,21-43), em que Jesus, depois de ressuscitar uma menina de 12 anos, perante a estupefação e alegria dos circunstantes, mandou dar-lhe de comer, trouxe-me à memória um episódio ocorrido no meu tempo de exercício de funções paroquiais.

Fui chamado a casa de uma senhora nova que, alegadamente, estava possuída do diabo. Após ligeira conversa, pedi que lhe dessem um prato de sopa. Perante a sua recusa, insisti, não pedindo, mas ordenando. E, quando alguém lhe ia a dar a comida à boca, impus que fosse a suposta doente a comer pela sua própria mão. O caso foi comentado na sede da diocese, mas eu demonstrei que tinha razão. Com efeito, perante situação de fragilidade, o primeiro remédio, se não houver inconveniente, é o reforço alimentar e o revigoramento físico. 

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O Evangelho, que trata da cura/ressurreição da Filha de Jairo, tem ensanduichado o relato de outra cura. Com efeito, entre o primeiro pedido de socorro da parte do chefe da sinagoga, o evangelista apresenta o encontro de Jesus com a mulher que sofria de uma hemorragia incurável. A narração começa por vincar a gravidade do problema: havia 12 anos que a mulher tinha um fluxo de sangue; recorrera a diversos médicos e gastara todos os seus bens em consultas e tratamentos. Porém, ao invés de melhorar, piorava sempre mais. Segundo a Lei, enquanto durasse a hemorragia, a mulher estava em estado de impureza, que atingiria qualquer pessoa que lhe tocasse ou em quem ela tocasse e quem tocasse no leito onde ela se deitasse ou na cadeira onde se tivesse sentado. Além do incómodo físico, a mulher estava na condição de marginalização e de isolamento, impedida de ter vida familiar normal, de ir à sinagoga ou de participar em qualquer assembleia religiosa.

Cansada dessa vida, decidiu ir ao encontro de Jesus. É ela que toma a iniciativa. Confia em Jesus e acha que Ele pode libertá-la: “Se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada”. Contudo, não era fácil levar avante esse desejo. Jesus estava sempre rodeado de pessoas e era difícil chegar junto d’Ele e falar com Ele; uma mulher impura não podia tocar fosse em quem fosse. Porém, a mulher, com a ousadia da fé, estava determinada a vencer todos os óbices para tocar em Jesus. Chegada diante de Jesus, não O olhou nos olhos. Sentia-se indigna e impura. Assim, aproximou-se por detrás de Jesus e, sem ninguém notar, tocou-lhe no manto. No mesmo instante, sentiu-se curada. A sua confiança em Jesus não foi defraudada.

Jesus achou que a grandeza da fé da mulher devia ser conhecida de todos os que ali estavam. Perguntou quem Lhe tinha tocado. Quando a mulher, a tremer, confessou a verdade, Jesus não a recriminou, mas confirmou que a fé é fonte de Vida: “Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz e sê curada do teu mal”. Chamar-lhe “filha” significava que passara a integrar a família do Reino, a dos que acreditam em Jesus Salvador. Aquela mulher, que estava disposta a procurar e a acolher a salvação que Jesus oferecia, é um extraordinário modelo para os discípulos de Jesus. Com ela, eles podem aprender a procurar Jesus com fé, a “tocar-Lhe” para receberem d’Ele Vida, a começar a partir d’Ele uma vida nova.

Jairo, o chefe da sinagoga, tinha vindo ao encontro de Jesus para lhe implorar (“caiu a seus pés e suplicou-Lhe com insistência”) que fosse a sua casa impor as mãos sobre a sua filha doente, para a abençoar e curar. Jairo afirmava a certeza absoluta de que Jesus era capaz de dar Vida. E Jesus, reconhecendo a fé que animava o homem, dispôs-se a acompanhá-lo a casa. Porém, enquanto caminhavam, chegou a notícia da morte da menina, o mais rude dos golpes para o pai que tinha esperado de Jesus a cura da filha. Parecia não haver mais nada a esperar (“A tua filha morreu. Porque estás a importunar o Mestre?”). Ao invés, Jesus pediu ao pai desolado que mantivesse a confiança como antes (“Não temas; basta que tenhas fé”).

Chegaram a casa de Jairo. Os familiares e vizinhos abandonavam-se ao choro e às lamentações. A morte chegara primeiro do que Jesus. Todavia, Jesus garantiu aos presentes que a morte não teria a última palavra (“Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu; está a dormir”). A última palavra será de Jesus; e a sua palavra é palavra de salvação e de Vida.

Alguns dos presentes não acreditavam e riam-se. E Jesus entrou na casa, dirigiu-se à menina, pegou-lhe na mão e disse-lhe, em aramaico: “Talitha, kûm” (“Menina, filha, irmã, levanta-te!”). O gesto de pegar na mão da menina diz da determinação de Jesus a subtrair ao poder da morte; a palavra que dirige à menina é poderosa, resgata do poder da morte e devolve à Vida. A menina levantou-se do leito de morte e começou a andar. Também ela é “filha” e “irmã” de Jesus (como a mulher curada da hemorragia). Liberta da morte, fica a pertencer à família de Jesus e a saber que a fé em Jesus pode vencer a própria morte.

As histórias da mulher curada de uma hemorragia e da menina que Jesus libertou da morte vestem-nos o coração de esperança. Mostram o Senhor Jesus a passar pelas nossas vidas, a deixar-Se tocar pelas nossas dores, a acompanhar-nos no caminho, a entrar em nossa casa, a curar-nos de tudo o que nos faz sofrer, a levantar-nos, a oferecer-nos a Vida, a integrar-nos na sua família.

Contudo, Jesus não pactua com a estupefação e com o desleixo para com o próximo. Entre a alegria entusiasta, Jesus recomenda o cuidado básico: “Deem de comer à menina!” E tentou evitar o espetáculo e a publicidade do seu ato ainda não explicável: entrou sozinho apenas acompanhado de Pedro, Tiago e João e recomendou que não divulgassem o ocorrido.  

A Jesus e à sua oferta de salvação responde-se pela fé, que é a aceitação incondicional de que Jesus é o Salvador e traz a Vida, que vence o sofrimento e mesmo a morte.

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Na primeira leitura (Sb 1,13-15; 2,23-24), um “sábio” de Israel ensina que Deus nos criou para sermos eternos. É verdade que todas as criaturas passam pela morte biológica, mas essa morte não nos impede de chegar à Vida eterna. Só escolhas de egoísmo e de autossuficiência nos impedem de encontrar a Vida eterna, que está no plano que Deus tem para nós.

O autor do livro da Sabedoria reflete sobre a temática da origem da morte, que ensombra o horizonte da vida do homem e a mulher. Partindo da catequese tradicional de Israel, expressa nas primeiras páginas do livro do Génesis, considera que a morte não pode vir de Deus. Deus criou tudo “bom”, o que Ele fez “destina-se ao bem”. Portanto, Deus não criou os seres humanos para a morte, mas para a vida; criou-os, sem lhes inocular o veneno da morte, para serem incorruptíveis, para serem à imagem da natureza de Deus (“Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus”), que é eterna.

Todavia, a nossa experiência confirma que a morte está sempre no horizonte de todas as criaturas, inclusive dos seres humanos. O sábio diz que a morte entrou no Mundo e atingiu o homem, mercê da “inveja do diabo”. Foi o diabo que convenceu o homem a recusar as indicações do Criador e a escolher caminhos de autossuficiência, à margem de Deus. Foi o pecado que trouxe a morte.

O sábio não se refere à morte biológica, que resulta da nossa finitude, da fragilidade do barro de que somos feitos. Todos os seres criados por Deus têm o seu ciclo de vida, desgastam-se, enfraquecem e caem. Mas essa não é a verdadeira morte, pois não afasta os homens da Vida. Aliás, depois da morte física, os seres humanos encontram-se com a Vida de Deus.

A verdadeira morte é a que resulta do egoísmo e da autossuficiência e que lança o homem por sendas de violência, de injustiça, de orgulho, de corrupção, de ganância. Daí vem o mal que afoga o Mundo e que traz sofrimento e infelicidade aos seres humanos. Quem opta pela maldade, está morto, porque recusa a Vida verdadeira. Esta é a morte “dos que pertencem ao demónio”.

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Na segunda leitura (2Cor 8,7.9.13-15), Paulo de Tarso, a propósito do apoio a uma Igreja que passa por dificuldades materiais, convida-nos a encarar a vida a partir de um dinamismo de amor, que é expressão da Vida de Deus e que é gerador de Vida verdadeira.

Os Coríntios foram dos primeiros a interessar-se, num gesto solidário, pela comunidade cristã de Jerusalém, mas o tempo foi passando e o entusiasmo inicial arrefeceu. Agora, é preciso reavivá-lo. Os Coríntios fazem questão de sobressair em tudo: na fé, no dom da palavra, na ciência, no zelo, mas é preciso que também sobressaiam na caridade.

Para convencer os Coríntios, o apóstolo apresenta dois argumentos. O primeiro é o exemplo de Jesus, que era rico, mas que Se fez pobre, para nos enriquecer pela sua pobreza. Sendo Deus, veio ao encontro dos homens a partilhar a fragilidade dos seres humanos. Esse movimento generoso não diminuiu a riqueza divina de Jesus, mas enriqueceu-nos e promoveu-nos à dignidade de filhos de Deus. O que damos não nos empobrece. O segundo argumento refere o ideal da igualdade, que os Gregos tinham em boa conta. O que produz desigualdade cria injustiça. Não se exige dar o que se tem e ficar reduzido à miséria, mas partilhar com os outros os bens que Deus pôs à nossa disposição, para que eles nos sirvam e sejam postos ao serviço de todos. O açambarcamento não é caminho quando, ao nosso lado, há quem não tenha o mínimo para viver dignamente. Os discípulos de Jesus são chamados testemunhar a generosidade e o amor de Deus.

A partilha generosa não é algo que se pode ou não fazer, mas é algo intrínseco à experiência cristã. Por isso, Paulo a designa como “graça que Deus concede”, “serviço” em favor dos irmãos, “obra da caridade”. Quem frequentou a escola de Jesus, não pode encarar a vida senão a partir de um dinamismo de amor. A partilha de bens insere-se nesse dinamismo.

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Esta liturgia do 13.º domingo do Tempo Comum no Ano B procura responder a estas questões: Nascemos para viver, ou para morrer? Será a morte o objetivo ou a intenção última do projeto de Deus sobre o homem? Neste sentido, convida-nos a olhar para lá do nosso horizonte de criaturas finitas e a descobrir a Vida que Deus oferece a todos os seus filhos e filhas.

Evangelho mostra como Jesus cumpriu a missão que o Pai lhe confiou: dar-nos Vida. Ao curar uma mulher de hemorragia que a mantinha presa a uma vida sem horizontes, ou ao pegar pela mão uma jovem para a resgatar da morte, Jesus concretiza o plano de Deus e salva da morte os filhos e filhas que Deus tanto ama. Por isso, é bom cantar com o salmista:

“Eu Vos glorifico, Senhor, porque me salvastes
e não deixastes que de mim se regozijassem os inimigos.
Tirastes a minha alma da mansão dos mortos,
Vivificastes-me para não descer ao túmulo.

Cantai salmos ao Senhor, vós os seus fiéis,
e dai graças ao seu nome santo.
A sua ira dura apenas um momento
e a sua benevolência a vida inteira.
Ao cair da noite vêm as lágrimas
e ao amanhecer volta a alegria.

Ouvi, Senhor, e tende compaixão de mim,
Senhor, sede Vós o meu auxílio.
Vós convertestes em júbilo o meu pranto:
Senhor meu Deus, eu Vos louvarei eternamente.”

(Salmo 30)

2024.06.30 – Louro de Carvalho

O absurdo de uma crise política resultar em proveito de todos

 

Luís Marques Mendes, a 29 de junho, no seu comentário dominical na SIC, desta vez, em momento vespertino de sábado, considerou que Lucília Gago, atual procuradora-geral da República (PGR), não vai ficar na História, foi um “erro de casting”, deixou degradar o Ministério Público (MP) “até níveis nunca vistos” e “não vai deixar saudades”. E, alinhando com as demais vozes críticas, assaca-lhe a responsabilidade da crise política desencadeada a 7 de novembro de 2023, que redundou na demissão do primeiro-ministro (PM) e na dissolução da Assembleia da República (AR), com a marcação de eleições antecipadas.

É evidente que um comunicado do gabinete de imprensa da PGR a publicitar que o PM é objeto de inquérito no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o foro competente, por suspeitas de cumplicidade em prática de crime, lhe retirou condições políticas para se manter no cargo.

Todavia, a responsabilidade da dissolução da AR é, inquestionavelmente, da exclusiva competência do Presidente da República (PR), medida que tomou sem o apoio maioritário do Conselho de Estado, órgão constitucional de consulta do chefe de Estado. E o PR, na linha do que indevidamente havia prometido, recusou dar posse a novo governo, apresentado pelo partido que detinha a maioria parlamentar. Nestes termos, admitindo que a PGR tenha ocasionado o desencadeamento da crise, o PR, pelo menos, aproveitou-se dela, para fazer valer o seu entendimento do valor do ato leitoral de 2022.

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Porém, ao invés do que diz Marques Mendes, Lucília Gago vai ficar na História, como Fernando Pinto Monteiro e como José Cunha Rodrigues (que foi badalado por, alegadamente, ter sido encontrado um microfone por baixo da secretária do seu gabinete). E não sei se a atual PGR terá sido um “erro de casting”, pois, “grosso modo”, desempenhou o seu papel com geral agrado dos magistrados do MP, embora com exceções pontuais. Aliás, nunca se sentiu confortável, pois alguma direita nunca digeriu o facto de a antecessora não ter sido reconduzida. 

Quanto às explicações que, supostamente, deve dar aos Portugueses, em geral, e à AR, em especial, que também suponho que deveria já ter dado, pergunto-me qual será a vantagem delas, se não pode, como dizem, falar de casos concretos, e qual a razão do mistério do seu silêncio ou das suas parcas declarações. Na verdade, o que interessava era saber por que motivo escreveu ou mandou escrever o letal parágrafo no comunicado de 7 de novembro. Por outro lado, embora a PGR deva, como tantos afirmam, prestar contas à AR, através de relatórios periódicos sobre a atividade do MP, ou quando há factos extraordinários que o aconselhem, a verdade é que não há essa tradição na PGR.

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Contudo, onde o comentador da SIC se estendeu, do meu ponto de vista, foi na alegada vantagem da crise, sustentando que há coisas más que dão resultados bons.  

A crise política que apeou o governo maioritário de António Costa acabou por beneficiar o próprio, que foi eleito presidente do Conselho Europeu, um cargo que sempre ambicionou. Ora, se continuasse no governo, não teria hipótese de ascender a esse cargo, pois o PR declarou, aquando da tomada de posse do governo, em março de 2022, que os eleitores deram a maioria ao Partido Socialista (PS) e ao seu líder de então, pelo que, se este abandonasse o cargo a meio do mandato, seriam convocadas novas eleições. 

Não sei se António Costa já agradeceu a Marcelo Rebelo de Sousa a sua liderança da crise. 

Também tiraram vantagem desta crise: Luís Montenegro, que ascendeu a primeiro-ministro mais cedo do que previa, o que até poderia não vir a acontecer; Pedro Nuno Santos, que foi secretário-geral do PS, antes do tempo (é natural que viesse a sê-lo, mas bastante mais tarde); o Chega, que passou de 12 deputados na AR a 50; e a direita moderada, que já governa (antes do previsto), ainda que sem maioria.

E Marques Mendes não se fica por aqui, na lista de vantagens. Com a eleição de António Costa para líder do Conselho Europeu, beneficia Portugal, pois trata-se de um pequeno país que tem um dos seus concidadãos num dos mais altos cargos internacionais; beneficia a Europa, visto que dispõe de um líder com muita experiência governativa, com grande conhecimento da Europa e do Mundo, um hábil negociador, construtor de consensos, fazedor de pontes e impulsionador de diálogo (são predicados verdadeiros); e beneficia Luís Montenegro, que faz parte do Conselho Europeu (que reúne os chefes de Estado e de Governo), tendo na presidência um concidadão (que tem de ser independente, mas que não deixa de ser português).

O comentador não o disse claramente, mas deixou-o subentendido. Até o Mundo inteiro beneficiou da escolha do ex-PM de Portugal. Portugal onde está arrasa, digo eu.

Na verdade, Marques Mendes falou de cidadãos portugueses que ocuparam altos cargos internacionais e mencionou Feitas do Amaral, presidente da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) (1995-1996), Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia (2004-2014); António Vitorino, diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM) (2018-2023); e António Guterres, Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (2005-2015) e secretário-geral da ONU, de 1 de janeiro de 2017 até ao presente, cargo em que se mantém.  

Poderia ter mencionado outros nomes, pois são portugueses: o cardeal José Tolentino de Mendonça, atual Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, da Santa Sé, e que foi bibliotecário e arquivista do Vaticano; o cardeal José Saraiva Martins, que foi Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (1998-2008); o cardeal Manuel Monteiro de Castro, que foi Penitenciário-mor do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica; o arcebispo José Avelino Bettencourt, núncio apostólico nos Carmões e na Guiné Equatorial, que fora, antes, núncio apostólico na Geórgia e na Arménia, depois de ter sido chefe de protocolo da Santa Sé.

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Falando de políticos, Portugal é useiro e vezeiro em descartar nomes que, depois exporta para o estrangeiro. Por exemplo, Freitas do Amaral perdeu uma eleição presidencial, mas foi útil na ONU; Guterres demitiu-se, para não deixar o país no pântano, mas serviu como ACNUR e serve como secretário-geral da ONU; Durão Barroso queimou-se com a cimeira dos Açores, mas pôde servir como presidente da Comissão Europeia; António Vitorino, não pôde continuar ministro da Defesa Nacional, por alegado incumprimento fiscal, mas serviu como comissário europeu com a pasta da Justiça; Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal (BdP), deixou ir ao charco o Banco Português de Negócios (BPN), mas serviu para vice-presidente do Banco Central Europeu; e António Costa é o político de quem tanto mal disseram e a direita não descansou enquanto não o viu apeado do executivo, mas, agora, com exceção do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) – que se sente confortável, mas não feliz –, todos, em coro, elogiam as suas qualidades. Fizeram-nos a sério, por saloiísmo, por cinismo, por hipocrisia ou por sentimento de culpa, mas fizeram-no.  

De António Costa, Marques Mendes anotou que, embora muitos (com razão ou não) considerem que teve fraco desempenho como primeiro-ministro, todos reconhecem que tem qualidades para desempenhar bem o cargo para que agora foi eleito. No dizer do comentador, trata-se de cargo não executivo, mas de coordenação, para o que tem habilidade e que aquilo que gosta de fazer.

Não sei dizer se o ex-PM teve fraco desempenho como governante e se o sucessor o terá melhor. O certo é que a ministra da Justiça, na entrevista ao Observador, a 27 de junho, vincou algumas medidas positivas provindas do governo anterior, o que Luís Montenegro também já fez. Por outro lado, alguns dos pacotes de medidas, já apresentados, retomam a maior parte das opções anteriores, embora com nova roupagem; e, mesmo no âmbito da imigração, em que o pacote governamental era assaz radical, parece que vai haver recuo em alguns aspetos.

Penso que a capacidade de António Costa para o cargo é indiscutível e que é, por certo, o beneficiário da crise política. É verdade que o PR, o PM e tantos se concertaram – oportuna e importunamente – no apoio inequívoco à candidatura do ex-PM. Todavia, esse apoio, publicamente declarado (até parecia revelar sentimento de culpa), poderia ter dificultado a escolha e o MP foi tardio e equívoco, em relação à investigação em que o candidato esteve envolvido, nomeadamente na publicitação de escutas sem relevância penal, em tempo de candidatura. Nesse campo, o eleito presidente do Conselho Europeu foi um exemplo de serenidade.   

Espero que António Costa se revista de coragem e de inteligência (que não lhe falta) para enfrentar os desafios com que se debaterá a União Europeia (UE): os resultados das eleições em França; os resultados das eleições norte-americanas; a guerra na Ucrânia; a guerra em Gaza; a política de Defesa da UE; o surto migratório; as alterações climáticas; o ambiente e a agricultura; a questão do alargamento da UE; e a relação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

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E, quanto às desvantagens da crise, que são mais do que as vantagens, é de ter em conta: Luís Montenegro e a Aliança Democrática (AD) foram empurrados para o governo, sem disporem de tempo para crescerem e para se consolidarem; Pedro Nuno Santos viu-se, de súbito, candidato a secretário-geral e a liderar uma candidatura a eleições, sem ter digerido o desgaste do seu partido e o histórico da sua demissão de ministro das Infraestruturas e da Habitação; e o país, que, embora tivesse um governo medíocre em muitos aspetos, mas atacado ao mais alto nível, passou a uma situação de ingovernabilidade. A AD ou se alia ao Chega e falta à promessa eleitoral; ou se alia ao PS e diz adeus às políticas que anunciou; ou joga aqui ou ali, conforme a conveniência.

A UE terá lucrado com a eleição de Costa, mas, mesmo para este, o país estava em primeiro lugar; e a Europa havia de encontrar outra figura de prestígio que a liderasse ao nível do Conselho Europeu, na resposta aos desafios presentes e futuros.

Quem teve real vantagem foi o Chega, que obteve 50 deputados, mais do quádruplo das eleições anteriores. Porém, tal vantagem fragilizou-se, rapidamente, com a “desvitória” nas eleições europeias, com a módica representação de dois deputados, tantos como a IL. 

Por isso, falar de tantas vantagens da crise soa a absurdo e a insensatez. Não vale a pena andarmos a autoenganar-nos e a meter a cabeça na areia.

2024.06.30 – Louro de Carvalho

sábado, 29 de junho de 2024

Os apóstolos São Pedro e São Paulo são celebrados juntos

 

A 29 de junho, a Igreja celebrou a solenidade de São Pedro e de São Paulo juntos. Entretanto, há algumas dúvidas sobre as verdadeiras razões para o martírio de ambos os apóstolos ser celebrado no mesmo dia, o que, a se seguir, se explica.

- No ano 395, num sermão, o doutor da Igreja, santo Agostinho de Hipona (354-430), considerou que Pedro e Paulo, “na realidade, eram como um só”. Na verdade, “deram o mesmo testemunho, apesar de terem sido martirizados em dias diferentes”. Pedro foi à frente e Paulo seguiu-o. Por isso, celebramos o dia festivo consagrado, para nós, pelo sangue dos dois apóstolos, e amamos “a fé, a vida, os trabalhos, os sofrimentos, os testemunhos e as pregações destes dois apóstolos”.

- Ambos foram martirizados em Roma, depois de terem sido detidos na prisão Mamertina, também chamada Tullianum, localizada no foro romano, possivelmente por ordem do imperador Nero. Pedro passara os seus últimos anos, em Roma, a liderar a Igreja durante a perseguição e até ao seu martírio, no ano 64. Foi crucificado de cabeça para baixo, a pedido próprio, por não se considerar digno de morrer como o seu Senhor. Foi enterrado na colina do Vaticano e a Basílica de São Pedro está edificada sobre o seu túmulo. Paulo foi preso e levado a Roma, onde foi decapitado no ano 67, não tendo sido crucificado, por ter invocado o título de “cidadão romano”. Está enterrado em Roma, na basílica de São Paulo Extramuros.

- São ambos fundadores da Igreja de Roma. Efetivamente, em 2012, na homilia de 2012 da solenidade de São Pedro e São Paulo, o Papa Bento XVI afirmou que “a sua ligação como irmãos na fé adquiriu um significado particular em Roma”, pois “a comunidade cristã desta Cidade viu neles uma espécie de antítese dos mitológicos Rómulo e Remo, o par de irmãos a quem se atribui a fundação de Roma”.

- São padroeiros de Roma e representantes do Evangelho. Com efeito, na mesma homilia, o referido Santo Padre chamou esses dois apóstolos de “padroeiros principais da Igreja de Roma”, já que, “desde sempre, a tradição cristã tem considerado São Pedro e São Paulo inseparáveis: na verdade, juntos, representam todo o Evangelho de Cristo”.

- São a versão contrária de Caim e de Abel, ou seja, fazem um paralelismo oposto à irmandade apresentada, no Antigo Testamento, entre Caim e Abel. “Enquanto nestes vemos o efeito do pecado pelo qual Caim mata Abel, Pedro e Paulo, apesar de humanamente bastante diferentes e não obstante os conflitos que não faltaram no seu mútuo relacionamento, realizaram um modo novo e autenticamente evangélico de serem irmãos, tornado possível, precisamente pela graça do Evangelho de Cristo que neles operava”, afirmou Bento XVI.

- Pedro é a “rocha”, como recorda esta celebração. De facto, Pedro foi escolhido por Cristo – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” – e, humildemente, aceitou a missão de ser “a rocha” da Igreja e de apascentar o rebanho de Deus, apesar das suas fragilidades humanas. Os Atos dos Apóstolos ilustram o seu papel como líder da Igreja, depois da ressurreição e da ascensão de Cristo. Pedro dirigiu os apóstolos como o primeiro Papa e assegurou que os discípulos mantivessem a verdadeira fé. Como afirmou, na sua homilia, Bento XVI, “na passagem do evangelho de são Mateus [...], Pedro faz a sua confissão de fé em Jesus, reconhecendo-O como Messias e Filho de Deus; fá-lo também em nome dos outros apóstolos”. Em resposta, “o Senhor revela-lhe a missão que pretende confiar-lhe, ou seja, a de ser a ‘pedra’, a ‘rocha’, o fundamento visível sobre o qual está construído todo o edifício espiritual da Igreja”.

- Paulo também é coluna do edifício espiritual da Igreja, pois foi o Apóstolo dos Gentios. Antes da sua conversão, era chamado Saulo, mas depois do encontro com Cristo e da conversão, continuou seguindo para Damasco, onde foi batizado e recuperou a visão. Adotou o nome de Paulo e passou o resto da vida a pregar o Evangelho, sem descanso, às nações do Mundo mediterrâneo.

“A iconografia tradicional apresenta São Paulo com a espada, e sabemos que esta representa o instrumento do seu martírio. Mas, repassando os escritos do Apóstolo dos Gentios, descobrimos que a imagem da espada se refere a toda a sua missão de evangelizador. Por exemplo, quando já sentia aproximar-se a morte, escreveu a Timóteo: ‘Combati o bom combate’ (2Tm 4,7). Não se trata seguramente do combate de um comandante, mas do de um arauto da Palavra de Deus, fiel a Cristo e à sua Igreja, por quem se consumou totalmente. Por isso mesmo, o Senhor lhe deu a coroa de glória e o colocou, juntamente com Pedro, como coluna no edifício espiritual da Igreja”, disse Bento XVI na sua homilia.

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Este é também o Dia do Papa, sucessor de Pedro, pois esta celebração recorda que São Pedro foi eleito por Cristo: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. E ele aceitou a missão de ser “a rocha” da Igreja. De igual modo, o Papa, como sucessor de Pedro e vigário de Cristo, é o princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade, tanto dos bispos como da multidão de fiéis. É pastor de toda a Igreja e tem, nela, poder pleno, supremo e universal.

Do mesmo modo, comemora-se Paulo, o apóstolo dos gentios, que, antes de sua conversão foi, um vigoroso perseguidor dos cristãos e, depois de ser constituído apóstolo, em processo diferente do de Pedro, passou, com a sua vida, a ser um ardoroso evangelizador para todos, sem reservas no anúncio do Evangelho. Como o Papa Bento XVI disse, em 2012, “a tradição cristã tem considerado são Pedro e são Paulo inseparáveis: na verdade, juntos, representam todo o Evangelho de Cristo”.

“Apesar de serem humanamente bastante diferentes e não obstante os conflitos que não faltaram no seu mútuo relacionamento, realizaram um modo novo e autenticamente evangélico de ser irmãos, tornado possível precisamente pela graça do Evangelho de Cristo que neles operava. Só o seguimento de Cristo conduz a uma nova fraternidade”, observou o Papa Ratzinger.

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Por sua vez, o Papa Francisco, na homilia da solenidade deste ano, exorta a que fixemos o olhar no “pescador da Galileia que Jesus fez pescador de homens” e no “fariseu perseguidor da Igreja transformado pela Graça em evangelizador dos gentios”. Convém que, à luz da Palavra de Deus, nos deixemos “inspirar pelas suas histórias e pelo zelo apostólico que marcou o caminho das suas vidas”, pois, “ao encontrarem o Senhor, fizeram uma verdadeira experiência pascal: foram libertados e abriram-se, diante deles, as portas de uma vida nova”.

Nas vésperas do ano jubilar de 2025, o Santo Padre apelou a que nos detenhamos na imagem da porta, visto que “o Jubileu será um tempo de graça, no qual abriremos a Porta Santa”, para todos poderem “atravessar o limiar daquele santuário vivo que é Jesus e, n’Ele, experimentar o amor de Deus que revigora a esperança e renova a alegria”. “Também na História de Pedro e de Paulo, há portas que se abrem”, verifica o Pontífice.

Os Atos dos Apóstolos relatam o episódio da libertação de Pedro da prisão, que tem imagens evocativas da experiência da Páscoa: ocorre durante a festa dos Ázimos; Herodes recorda a figura do Faraó do Egito; a libertação tem lugar de noite, como aconteceu com os Israelitas; o anjo dá a Pedro as mesmas instruções que foram dadas a Israel: ‘Levanta-te depressa, põe o cinto, calça as sandálias’ (cf At 12,8; Ex 12,11). Portanto, é-nos narrado um novo êxodo: Deus liberta a Igreja, o seu povo acorrentado, e mostra-se como o Deus da misericórdia que sustenta o seu caminho.

Naquela noite, abrem-se milagrosamente as portas da prisão; diz-se, de Pedro e do anjo que o acompanha, que estão diante da “porta de ferro que dá para a cidade, a qual se abriu por si mesma”. E considera o Papa: “Não são eles que abrem a porta, ela abre-se por si mesma. É Deus que abre as portas, é Ele quem liberta e abre caminhos. A Pedro – como ouvimos no Evangelho – Jesus tinha confiado as chaves do Reino; mas ele experimenta que é o Senhor quem abre primeiro as portas. Ele vai sempre à nossa frente.”

Ao invés, Pedro, depois de as portas da prisão terem sido abertas pela força do Senhor, encontrará dificuldades para entrar na casa da comunidade cristã, pois quem vai à porta pensa que é um fantasma, e não abre. Tantas vezes a comunidade não aprende a sabedoria de “abrir as portas”!

Por outro lado, Francisco sustenta que o caminho de Paulo é uma experiência pascal. Primeiro, é transformado pelo Ressuscitado, no caminho de Damasco; depois, na contemplação contínua de Cristo crucificado, descobre a graça da fraqueza: quando somos fracos, é que somos realmente fortes, porque já não nos apegamos a nós mesmos, mas a Cristo (cf. 2Cor 12,10). E, apanhado pelo Senhor e crucificado com Ele, Paulo escreve: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

Não estamos, porém, considera o Papa, ante uma religiosidade intimista e consoladora, como querem alguns movimentos na Igreja, com “espiritualidade de salão”; ao invés, o encontro com o Senhor acende em Paulo o zelo da evangelização. De facto, na segunda Carta a Timóteo, no fim da sua vida, Paulo declara: “O Senhor esteve comigo e deu-me forças, para que, por meu intermédio, o anúncio fosse plenamente proclamado e todos os gentios o escutassem” (2Tm 4,17).

Para ilustrar como o Senhor lhe deu tantas oportunidades de anunciar o Evangelho, Paulo recorre à imagem das portas abertas. Da sua chegada a Antioquia com Barnabé, diz-se que, mal chegaram, “reuniram a igreja e contaram tudo o que Deus fizera com eles e como abrira aos pagãos a porta da fé” (At 14,27). E, escrevendo aos Coríntios, diz: “Abriu-se ali uma porta larga e propícia” (1Cor 16,9); e exorta os Colossenses: “Orai também por nós, para que Deus abra uma porta à nossa pregação, a fim de que eu anuncie o mistério de Cristo” (Cl 4,3).

A concluir a reflexão sobre a saga apostólica de Pedro e de Paulo, Francisco reitera que ambos fizeram a experiência da graça: “Tocaram com as mãos a obra de Deus, que lhes abriu as portas da sua prisão interior e das prisões reais onde estavam encerrados por causa do Evangelho. E abriu-lhes as portas da evangelização, para que pudessem experimentar a alegria do encontro com os irmãos e irmãs das comunidades nascentes e levar a todos a esperança do Evangelho.”

É, nestes termos que nos preparamos “para abrir a Porta Santa, neste ano”.

Por fim, recordou que os arcebispos metropolitanos nomeados no último ano receberam, neste dia, o pálio, visto que, em comunhão com Pedro e seguindo o exemplo de Cristo, porta das ovelhas, “são chamados a ser pastores zelosos, que abrem as portas do Evangelho e que, com o seu ministério, ajudam a construir uma Igreja e uma sociedade de portas abertas”. Depois, saudou a Delegação do Patriarcado Ecuménico, à qual agradeceu por ter vindo manifestar o desejo comum da plena comunhão entre as nossas Igrejas, pelo que enviou “uma sentida saudação cordial ao meu irmão, ao meu caro irmão Bartolomeu”. E fez votos por que “os Santos Pedro e Paulo nos ajudem a abrir a porta da nossa vida ao Senhor Jesus, que eles intercedam por nós, pela cidade de Roma e pelo Mundo inteiro”.

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Em suma, no Dia de São Pedro e de São Paulo – Dia do Papa –, pretende-se uma Igreja que saiba abrir portas. Já que tem o poder das chaves, que não o use para fechar, mas para abrir.

2024.06.29 – Louro de Carvalho

Não se trata de controlar o Ministério Público, mas de o remeter para a lei

 

Em entrevista ao Observador, a 27 de junho, a titular da pasta da Justiça admitiu querer que o próximo procurador-geral da República (PGR) tenha perfil de liderança, que seja comunicativo e que “ponha ordem na casa”, devendo ajudar a pôr fim a “certa descredibilização” de que enferma o Ministério Público (MP). Além disso, sublinhou que o governo quer iniciar “uma nova era”.

Horas depois, na rede social X, insistiu: “O novo PGR terá de ser alguém que reúna as condições técnicas necessárias, mas sobretudo com boa capacidade de liderança, de organização, de gestão de equipas e de comunicação. Deve ser alguém que tenha a capacidade de inaugurar uma nova era na relação com os cidadãos.”

Sem se pronunciar sobre o desempenho de Lucília Gago, que não concedeu, em seis anos, qualquer entrevista a um órgão de comunicação social, escudando-se em comunicados do seu gabinete de imprensa, a governante, não deixou de apontar, ao menos subliminarmente, a forma inadequada de atuação do MP, a falta de observância da sua condição hierárquica e a forma como comunica ou não com os cidadãos envolvidos nos processos e com o púbico em geral.  

Rita Júdice também se escusou a comparar o desempenho da atual PGR com o da sua antecessora.

Nestes aspetos, a ministra da Justiça, que não conheço para ter motivos de apoio ou de crítica, revela-se sensata na forma como foi respondendo aos entrevistadores e deu corpo ao coro de críticas de “senadores”, sobretudo, do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata, bem como de políticos desses partidos no ativo, que se têm levantado contra a atuação do MP, sem que a PGR assuma qualquer responsabilidade ou dê qualquer explicação.

Têm estado em causa vários casos, mas os que dão mais nas vistas são os que levaram à demissão do primeiro-ministro (PM) e subsequente dissolução da Assembleia da República (AR) e à exoneração do presidente do governo regional da Maceira e à subsequente dissolução da sua Assembleia Regional. No primeiro caso, o PM não foi constituído arguido, ficando apenas sob suspeição, mas um dos seus mineiros foi constituído arguido; no segundo caso, o presidente do governo regional foi constituído arguido. Ambos os casos resultaram em eleições que originaram uma governação mais precária do que a anterior.

No atinente à Operação Influencer, que abrange o ex-PM, um ex-ministro e outros, o juiz de instrução criminal (JIC) não viu indícios de crime nos arguidos, muito menos no ex-chefe do governo. Porém, a PGR referia que o processo continuaria. O recurso do MP sobre a decisão do JIC foi apreciado pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que deu razão ao JIC e declarou expressamente que não havia indício de crime na atuação de António Costa. Porém, as declarações da PGR foram como dantes.         

O ex-PM não foi notificado pessoalmente, tendo conhecido a sua situação por um comunicado do gabinete de imprensa da PGR. Foi ouvido tardiamente e, pelos vistos, não sobre o teor das escutas. Quer o líder do governo da Madeira, quer o ministro em referência não foram ouvidos. João Galamba, ex-ministro das Infraestruturas, escutado durante cerca de quatro anos, pediu, por cinco vezes, para ser ouvido, tendo sido alegado que a prova ainda não estava concluída.

No pico da campanha para as eleições europeias, procedeu-se a buscas em casa da cabeça de lista do PS, foi constituído arguido um ex-secretário de Estado e foram reveladas escutas, sem relevância penal, entre António Costa e João Galamba, sobre assuntos políticos e de governação.          

O ex-líder socialista foi constituído arguido, o JIC e o TRL não veem relevância criminal na investigação da Operação Influencer e o país tem vindo a assistir à divulgação constantes de escutas telefónicas com conversas de Costa, em clara violação do segredo de Justiça. Essas escutas passaram, pelo menos, por 16 juízes e não foram destruídas. O telemóvel de João Galamba esteve a ser escutado e foram ouvidas conversas com presidentes da Assembleia da República, com ministros e com autarcas.

Não veio ajudar o manifesto, conhecido em finais de abril, de um grupo de 50 personalidades em defesa de um “sobressalto cívico” que acabe com a “preocupante inércia” dos agentes políticos, relativamente à reforma da Justiça, num apelo ao Presidente da República, ao governo e à AR.

Uma “verdadeira reforma da Justiça”, com a recondução do MP a uma estrutura hierárquica para evitar o que chamam de atual “poder sem controlo” do mesmo, um escrutínio externo e a avaliação independente a tribunais e a magistrados são algumas das ideias e conclusões do manifesto.

Desde então, quer os partidos políticos quer a sociedade civil têm alertado para a necessidade de a PGR ir dar explicações aos deputados, pela violação do segredo de Justiça com a divulgação das escutas, e explicar a falta de resultados, até agora, na investigação que teve consequências políticas relevantes para o país.

O penalista Paulo Saragoça da Matta julga óbvio que a PGR e a sua equipa “são uma liability”, para o MP e que “não deixarão saudades”. Mais refere que o óbvio “seria que, já há muito, se tivesse demitido, pois, “em rigor, o lugar está vacante, há demasiado tempo”. 

Por isso, espera que “o novo PGR seja uma personalidade carismática, com pulso firme, sem medos dos corporativismos”, já que “não é possível que a mais importante instituição de law enforcement acabe por ser governada não por quem deve mandar, mas por grupos de interesses internos”. E, no dizer do penalista, “essa personalidade, se dentro da corporação não se encontrar ninguém independente e firme, imporá que se repense o sistema de governo, para garantir que quem tem o poder e dever de mandar, efetivamente mande”.

Segundo Paulo Lona Para, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), não cabe ao sindicato dizer se a PGR se deve demitir ou não, porque quem tem poder de exonerar e nomear a PGR é o poder político, cabendo a este fazer a respetiva avaliação. O que o SMMP entende é que é necessário melhorar a comunicação interna e externa com os cidadãos e com a sociedade, para evitar mal entendidos e teorias da conspiração sobre a atuação do MP.

António Marçal, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), fala num “ataque” a “uma instituição fundamental na consolidação da democracia em Portugal”, o que é “muito grave”. O sindicalista, temendo que se esteja a contribuir para a descredibilização das instituições democráticas, atira: “Sem um Ministério Público forte, que seja respeitado e mereça a confiança dos cidadãos, nós não temos um verdadeiro Estado de Direito Democrático.”

Para Luís Menezes Leitão, ex-bastonário da Ordem dos Advogados (OA), há uma tentativa de controlo do MP por parte do poder político.

Já a ministra da Justiça sustenta que “os tempos modernos já não se compatibilizam com a ideia de que podemos estar fechados nos nossos gabinetes e não comunicarmos com os cidadãos nas sedes próprias”. E reconhece a necessidade de o sucessor de Lucília Gago, cujo processo de escolha será liderado pelo primeiro-ministro, “restituir” a confiança no MP, que tem tido “períodos muitos duros” e que “criaram algum descontentamento” na opinião pública.

Rita Júdice mostra-se disponível para uma alteração legislativa que torne clara a “magistratura hierarquizada” do MP: “Tem de existir hierarquia no Ministério Público. Não é um corpo que anda à solta”. Já o Conselho Superior Ministério Público (CSMP) deve cumprir as suas competências de escrutínio, atuando “se existir alguma suspeita de que, [em] determinada investigação, determinado procurador, foi para além do exercício dos seus direitos”.

Também o secretário-geral do PS insistiu que reformar o MP é uma matéria de regime que tem de ser acordada com o PSD. Com efeito, o ambiente de suspeita, o clima de desconfiança, face ao MP, “só favorece quem é verdadeiramente corrupto”, no dizer de Pedro Nuno Santos. “Isso pode implicar mudanças, desde logo mudanças legislativas e o PS está disponível, sempre no respeito pela independência do poder judicial. Não é isso que está em causa”, referiu o líder do PS, pedindo um “debate sério e adulto sobre o Ministério Público”.

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Entretanto, o gabinete da ministra Rita Júdice, em nota à Lusa, esclareceu: “Não existe, na afirmação em causa, como aliás se depreende do contexto geral da entrevista, qualquer referência ou até intenção de interferir com a autonomia do Ministério Público ou com a independência do poder judicial. A afirmação tem um sentido prospetivo, visando apenas o futuro.”

Está em causa o facto de o Chega ter avisado que quer ouvir a ministra da Justiça na AR, depois de esta ter dito que o novo PGR tem de “pôr ordem na casa”, pois trata-se de “uma expressão que não se coaduna com o sistema democrático em que vivemos”, nomeadamente com o sistema de separação de poderes, mas que tem um efeito mais nocivo, por ser uma expressão que talvez denote, de forma involuntária, as verdadeiras intenções do governo e do PS em matéria de justiça.

A nota do gabinete da ministra, ao dizer ‘arrumar a casa’, sinaliza que, “em breve se vai iniciar um novo ciclo que contribua para a dignificação da Justiça, eliminando o ambiente de crispação e de tensão causado pelas polémicas e controvérsias em torno das instituições judiciárias, mesmo que, por vezes, sem fundamento. Qualquer outra interpretação é uma deturpação do sentido da entrevista, cuja versão integral está publicamente disponível”.

Indicar um líder para uma instituição significa esperar uma nova era, de melhoria face ao que está mal e de ação sobre o que falta fazer. Porém, demitir a PGR perto de fim de mandato é inútil.

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O MP, apesar de autónomo (e até independente, como pretendem as instâncias europeias), tem, nos termos constitucionais, de cumprir a legislação criminal, votada na AR e proposta pelo governo, na direção da investigação e ação penal, sem nunca se furtar ao escrutínio.

Assim, é de recordar que o suspeito, nos termos da lei processual, tem o direito de ser ouvido, a seu pedido, num prazo que nunca deve ultrapassar os seis meses; e o arguido deve ser notificado (não através da comunicação social), para que possa organizar a sua defesa, e deve ser ouvido, sempre que esteja prestes uma tomada de decisão sobre o seu processo. Assim, ter um suspeito ou um arguido dependurado de um comunicado de imprensa é manifestamente ilegal e atentatório do bom nome, pois leva a opinião pública à condenação preliminar, em vez da observância da presunção de inocência.

Há vozes que estranham o atual clamor público de figuras gradas do PS, mas que se calaram, aquando das “tropelias” do MP no caso de Sócrates. Por mim, que não milito no PS nem em qualquer partido, devo dizer que sempre escrevi (desde 2014), criticando a justiça-espetáculo em torno do caso: detenção coberta pela televisão, na manga do Aeroporto, e subsequentes buscas domiciliárias, transmitidas em direto; prisão preventiva, sem haver reais suspeitas de fuga; constituição do megaprocesso; passagem à comunicação social de gravações de sessões de interrogatório na fase de inquérito; e postura do JIC, geralmente homologada pelo TRL.

Por isso, entendia que a direção do PS devia ter assumido outra atitude: sem desculpar liminarmente Sócrates, teria de criticar os excessos do MP e do JIC. Com efeito, o aforismo “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política” não está correto, pois, o que há é diferentes poderes políticos; e não funciona, porque o MP intromete-se na ação governativa e parlamentar.

Porém, há diferenças assinaláveis: nunca até agora a ação do MP tinha levado à demissão de governantes e a dissoluções parlamentares; e nunca, no caso de Sócrates, foi sustentada a falta de indícios (embora sem julgamento e, muito menos, condenação transitada em julgado), o que já aconteceu desta vez, antes chegou a haver acusação e pronúncia parcial para julgamento.  

Assim, o MP, face às escutas sem relevância penal, deveria ter procedido à sua destruição, não à sua divulgação; e, face à declaração sustentada de não existência de indícios de crime, deveria proceder ao arquivamento dos respetivos processos. Isto é lei, bom senso e defesa dos direitos fundamentais. Depois, é humano errar, mas é nobre reconhecer e emendar o erro!

2024.06.29 – Louro de Carvalho

A poetisa que “faz poesia como faz bom tempo” venceu o Prémio Camões

 

Na sua 36.ª edição, o Prémio Camões, prémio de literatura em Língua Portuguesa, que distinguiu, no ano passado, João Barrento, foi atribuído à densidade poética do quotidiano de Adélia Prado – nome incontornável na poesia contemporânea brasileira – nascida, há 88 anos, em Divinópolis, no Estado de Minas Gerais, no Brasil, onde reside até hoje.

O anúncio surgiu, em comunicado enviado às redações pelo Ministério da Cultura, liderado por Dalila Rodrigues, a 26 de junho, após a reunião do júri constituído por Clara Crabbé Rocha, Professora Catedrática aposentada da Universidade Nova de Lisboa; Isabel Cristina Mateus, da Universidade do Minho; Francisco Noa (Moçambique), Professor da Universidade Eduardo Mondlane; Cleber Ranieri Ribas de Almeida, Professor Associado da Universidade Federal do Piauí (Brasil); Deonísio da Silva, Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (Brasil); Dionísio Bahule, Professor da Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique).

Segundo o júri, “Adélia Prado é autora de uma obra muito original, que se estende ao longo de décadas, com destaque para a produção poética. Herdeira de Carlos Drummond de Andrade, o autor que a deu a conhecer e que sobre ela escreveu as conhecidas palavras ‘Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo…’, Adélia Prado é, há longos anos, uma voz inconfundível na Literatura de Língua Portuguesa”.

Católica, natural da cidade de Divinópolis, onde nasceu em 1935, formada em Filosofia, casada, mãe de família, dona de casa, ex-professora de Religião, Adélia Prado é uma das maiores poetisas – ou poetas –​ não só em Língua Portuguesa, mas deste tempo.

O Prémio Camões, o mais celebrado galardão literário de Língua Portuguesa, no valor de 100 mil euros, foi instituído por Portugal e pelo Brasil, em 1989, para prestar, anualmente, uma homenagem à literatura em português, recaindo a escolha num escritor cuja obra contribua para a projeção e para o reconhecimento da Língua Portuguesa.

Com 88 anos, Adélia Prado tem uma boa dúzia de livros, entre poesia e ficção. Tem três livros editados pela extinta Cotovia: “Bagagem” (2002), livro de estreia da autora, “Com Licença Poética” (2003) e “Solte os Cachorros” (2003). Em 2016, a Assírio & Alvim publicou a antologia “Tudo Que Existe Louvará”.

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Adélia Luzia Prado de Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, nasceu em Divinópolis, a 13 de dezembro de 1935, no Estado de Minas Gerais; é poetisa, professora, filósofa, romancista e contista, ligada ao novo Modernismo; e é considerada a maior poetisa viva do Brasil. 

Professora por formação, exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora se lhe tornou a atividade central. Em termos da Literatura Brasileira, o seu surgimento representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que incorpora os papéis de intelectual e de mãe, de esposa e de dona de casa. A sua obra retrata o quotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspeto lúdico, uma das caraterísticas do seu estilo único. Em 1973, enviou o manuscrito de “Bagagem” a Affonso Roamno de Sant’Anna, que assinava uma coluna de crítica literária no Jornal do Brasil. Admirado, o qual repassou o manuscrito a Carlos Drummond de Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago, em artigo do mesmo periódico.

Iniciou os estudos, na sua terra natal, no Grupo Escolar Padre Matias Lobato e mora na rua Ceará. Em 1950, faleceu-lhe a mãe, o que levou a autora a escrever os seus primeiros versos. Nessa época, concluiu o curso ginasial no Ginásio Nossa Senhora do Sagrado Coração.

Em 1951, iniciou o curso de Magistério na Escola Normal Mário Casassanta, que concluiu em 1953. Começou a lecionar no Ginásio Estadual Luiz de Mello Viana Sobrinho, em 1955.

Em 1958 casou, em Divinópolis, com José Assunção de Freitas, funcionário do Banco do Brasil, SA. Dessa união nasceriam cinco filhos: Eugênio (em 1959), Rubem (em 1961), Sarah (em1962), Jordano (em 1963) e Ana Beatriz (em 1966).

Antes do nascimento da última filha, a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.

Em 1972, morreu-lhe o pai e, em 1973, formou-se em Filosofia. Nessa ocasião, enviou carta com originais dos seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso de Sant’Anna, que os submeteu à apreciação de  Drummond, o qual sugeriu, em 1975, a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, a publicação do livro de Adélia, cujos poemas lhe pareciam “fenomenais”. Eram os originais de “Bagagem”.

A 9 de outubro desse ano, Drummond publica uma crónica no Jornal do Brasil a enaltecer o trabalho inédito da escritora. O livro é lançado no Rio, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso de Sant’Anna, Nélida Cuíñas Piñón e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.

O ano de 1978 marca o lançamento de O coração disparado, agraciado com o Prémio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. E, em 1979, estreia em prosa, com “Soltem os cachorros”.

Com o sucesso da sua carreira de escritora, obriga-se a deixar o magistério, após 24 anos de trabalho. Nesse período, trabalhou no Instituto Nossa Senhora do Sagrado Coração, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, na Fundação Geraldo Corrêa – Hospital São João de Deus, na Escola Estadual são Vicente e na Escola Estadual Martin Cyprien, lecionando Educação Religiosa, Moral e Cívica, Filosofia da Educação, Relações Humanas e Introdução à Filosofia. A sua peça, “O Clarão”, auto de natal escrito em parceria com Lázaro Barreto, foi encenada em Divinópolis.

Em 1980, dirige o grupo teatral amador Cara e Coragem na montagem de “O Auto da Compadecida”, de Arainao Suassuna. Em 1981, ainda sob sua direção, o grupo encenaria “A Invasão”, de Dias Gomes. Publica “Cacos para um vitral”. Lucy Ann Carter apresenta, no Departament of Comparative Literature, da Princeton University, o primeiro de uma série de estudos universitários sobre a obra de Adélia Prado.

Em 1981, lança “Terra de Santa Cruz”. De 1983 a 1988, exerce as funções de chefe da Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e da Cultura de Divinópolis, a convite do prefeito, Aristides Salgado dos Santos. Entretanto, em 1984, publica “Os componentes da banda”. 

Participa, em 1985, em Portugal, num programa de intercâmbio cultural entre autores brasileiros e portugueses, e em Havana, em Cuba, do II Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América. E Fernanda Montenegro estreia, no Teatro Delfim, no Rio de Janeiro, em 1987, o espetáculo “Dona Doida”: interlúdio, baseado em textos de livros da autora. A montagem, sob a direção de Naum Alves de Souza, fez grande sucesso, tendo sido apresentada em diversos estados brasileiros, nos Estados Unidos da América (EUA), em Itália e em Portugal.

Apresenta-se, em 1988, em Nova Iorque, na Semana Brasileira de Poesia, evento promovido pelo Comité Internacional pela Poesia. Publica “A faca no peito”. E participa, em Berlim, Alemanha, no Línea Colorada, um encontro de escritores latino-americanos e alemães.

Em 1991 é publicada “Poesia Reunida”. Volta, em 1993, à Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis, integrando a equipa de orientação pedagógica na gestão da secretária Teresinha Costa Rabelo. E, em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum verso, ressurge com o livro “O homem da mão seca”. Conta a autora que o livro foi iniciado em 1987, mas, após concluir o primeiro capítulo, foi acometida de uma crise de depressão, que a bloquearia literariamente por longo tempo. Vê “a aridez como uma experiência necessária” e “essa temporada no deserto” fez-lhe bem.

Estreia, em 1996, no Teatro Sesi Minas, em Belo Horizonte, a peça Duas horas da tarde no Brasil, adaptada da obra da autora por Kalluh Araújo e pela filha de Adélia, Ana Beatriz Prado.

Em 1999, são lançados “Manuscritos de Felipa”, “Oráculos de maio” e a sua Prosa reunida. Participa, em maio, na série “O escritor por ele mesmo”, no ISM-São Paulo. Em Belo Horizonte, é apresentado, sob a direção de Rui Moreira, “O sempre amor”, espetáculo de dança de Teresa Ricco baseado em poemas da escritora.

Em 2010 recebeu o Prémio Literário da Fundação Biblioteca Nacional e o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Recentemente, recebeu o Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. E, em 2024, tornou-se a terceira escritora brasileira – e a primeira escritora mineira – a vencer o Prémio Camões em 36 anos.

Para Adélia, o quotidiano é a própria condição da literatura. Morando na pequena Divinópolis, cidade com aproximadamente 200 mil habitantes, tem, na prosa e na poesia, temas recorrentes da vida de província, como a moça que arruma a cozinha, a missa, um certo cheiro do mato, vizinhos, a gente de lá. A sua obra poética está entre as mais relevantes do século XXI no Brasil, ladeada por nomes como Augusto Branco e Bruna Lombardi, conforme estudo que levou em consideração a propagação da sua obra para o público em geral e em sites especializados em literatura, trabalhos académicos, bem como a referência aos seus textos em obras literárias de outros autores.

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Não podia ter nascido em outro lugar. Divinópolis ("cidade de Deus”). Nem ter outro nome, Adélia Prado. Considerada a maior poeta viva do Brasil, a mulher que ousou juntar a fé com a emoção mais sensorial em poesias contundentes, publicou o primeiro livro, tinha já 40 anos. Em 1976, com o título de “Bagagem”, onde se encontram poemas antológicos como a desconstrução de Carlos Drummond de Andrade. Em “Com licença poética, marca o terreno da sua linguagem, que vale a pena recordar:

“Quando nasci, um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda envergonhada. / Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. / Não tão feia que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e / ora sim, ora não, creio / em parto sem dor. / Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. / Inauguro linhagens, fundo reinos / – dor não é amargura. / Minha tristeza não tem pedigree, / já a minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô. / Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.”

O Prémio Camões foi já atribuído, por ordem cronológica, a Miguel Torga (Portugal), João Cabral de Mello Neto (Brasil), José Craveirinha (Moçambique), Vergílio Ferreira (Portugal), Rachel de Queiroz (Brasil), Jorge Amado (Brasil), José Saramago (Portugal), Eduardo Lourenço (Portugal), Pepetela (Angola), António Cândido (Brasil), Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal), Autran Dourado (Brasil), Eugénio de Andrade (Portugal), Maria Velho da Costa (Portugal), Rubem Fonseca (Brasil), Agustina Bessa-Luís (Portugal), Lygia Fagundes Telles (Brasil), Luandino Vieira – recusado (Angola), António Lobo Antunes (Portugal), João Ubaldo Ribeiro (Brasil), Arménio Vieira (Cabo Verde), Ferreira Gullar (Brasil), Manuel António Pina (Portugal), Dalton Trevisan (Brasil), Mia Couto (Moçambique), Alberto da Costa e Silva (Brasil), Hélia Correia (Portugal), Radouan Nassar (Brasil), Manuel Alegre (Portugal), Germano Almeida (Cabo Verde), Chico Buarque (Brasil), Vítor de Aguiar e Silva (Portugal), Paulina Chiziane (Moçambique), Silviano Santiago (Brasil), João Barrento (Portugal) e Adélia Prado (Brasil).

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“Uma razão de festa para todos os leitores de poesia”, segundo o cardeal Tolentino de Mendonça que diz de Adélia Prado: “Ela é uma das criadoras mais irreverentes, mais originais da literatura contemporânea e estabelece uma ponte entre religião e poesia, que a modernidade havia declarado impossível.”

2024.06.28 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Antigo presbítero anglicano foi ordenado bispo católico

 

Alguma comunicação social noticiou, a 27 de junho, que, pela primeira vez, um ex-padre anglicano foi consagrado bispo no Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham, na Grã-Bretanha, um ordinariato criado para dar aos anglicanos um caminho para entrarem em plena comunhão com a Igreja Católica.
Quando se noticia um facto que surgiu pela primeira vez, fico de pé atrás, porque já deparei, na vida, com factos havidos como o primeiro do género, como vi eventos com X edições, quando eram, de facto, mais ou instituições havidas como criadas e com início de atividade mais tarde do que realmente aconteceu. No caso vertente, é a primeira vez que um presbítero anglicano (não há ex-padres, nem ex-presbíteros: o que há é sacerdotes que deixaram o exercício das ordens; e, embora se duvide da sucessão apostólica no anglicanismo, é insultuoso chamar ex-padres a tais criaturas). Porém, não é a primeira vez que um padre anglicano é ordenado sacerdote católico e até criado cardeal.
Efetivamente, muitos padres anglicanos convertidos ao catolicismo, mesmo casados, puderam e podem ser ordenados de presbíteros católicos (mantendo o estado de casados), obviamente depois de receberem a ordenação diaconal. E já, pelo menos, 12 bispos anglicanos que se converteram ao catolicismo foram ordenados de presbíteros católicos. Porém, não ascenderam ao episcopado por serem casados. Assim, é inédito que um presbítero anglicano, convertido ao catolicismo e que recebeu a ordenação presbiteral católica foi ordenado bispo no Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham, no Reino Unido.
Este ordinariato equivale a uma diocese, congrega os anglicanos que entraram em plena comunhão com a Igreja Católica e possui paróquias em toda a Inglaterra, na Escócia e no País de Gales. E David Waller, 63 anos, é o seu primeiro bispo e a ordenação episcopal foi presidida pelo cardeal Victor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), da Santa Sé, coadjuvado pelo cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster, e pelos bispos Stephen Lopes e Anthony Randazzo, chefes dos ordinariatos anglicano-católicos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália. A celebração aconteceu na catedral de Westminster, a 22 de junho, dia da festa dos santos ingleses John Fisher e Thomas More, e foi vista como “um sinal de apoio e confiança de Roma”, depois de terem corrido rumores de que a Santa Sé iria acabar com este ordinariato, como assinala a Catholic News Agency (CNA).
Juntamente com os ordinariatos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália, o ordinariato de Walsingham foi estabelecido, em 2011, pelo Papa Bento XVI, e foi, até agora, liderado por Keith Newton, ex-anglicano que foi ordenado padre na Igreja Católica, mas não foi ordenado bispo por ser casado. Newton, atualmente de 72 anos, vai reformar-se.
Na homilia, o cardeal Fernández referiu-se à “rica herança inglesa” (começando com São Pedro e os outros apóstolos e continuando até hoje) dos anglicanos convertidos ao catolicismo e disse que “o ordinariato é convidado a ver os aspetos positivos da tradição anglicana preservados nele como ‘um dom precioso […] e um tesouro a ser partilhado”. E vincou: “O que recebi da Igreja, agora passo para vós.”
Após a ordenação, o Ordinariato de Walsingham declarou, em comunicado, que “é uma grande honra que o Papa Francisco tenha nomeado um dos nossos próprios sacerdotes para ser o segundo ordinário e mostre o seu compromisso com os ordinariatos estabelecidos sob [a constituição apostólica] Anglicanorum Coetibus pelo seu antecessor”.
Waller ingressou no sacerdócio anglicano em 1992, converteu-se à Igreja Católica em 2011 e tornou-se padre católico (presbítero ou sacerdote) no mesmo ano. Antes de ser nomeado para liderar o Ordinariato de Walsingham, tinha o cargo de vigário-geral. Depois de receber três recomendações do conselho governante do ordinariato, o Papa Francisco anunciou que nomearia Waller como o novo chefe do ordinariato em 29 de abril.
O Ordinariato de Walsingham foi o primeiro dos três, no Mundo, a ter influência na escolha do seu líder. Em abril, Newton havia dito ao National Catholic Register, parceiro de notícias irmão da CNA, que acreditava que permitir esta intervenção ao conselho, que, geralmente, é exclusiva do núncio apostólico, “demonstra a confiança da Santa Sé no Ordinariato no Reino Unido”.
Os membros do Ordinariato celebram as liturgias segundo uma tradição litúrgica enraizada no património anglicano, embora ainda esteja em total união com o papa e a Igreja Católica.
Juntamente com os seus ordinariatos irmãos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália, o Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham foi estabelecido pelo Papa Bento XVI em 2011, pela constituição apostólica Anglicanorum Coetibus. Embora aberto a católicos de todas as origens, o ordinariado existe, principalmente, como forma de os ex-anglicanos serem recebidos na Igreja Católica, mantendo muitas das tradições e práticas inglesas.
Embora os ordinariados nos EUA e na Austrália tenham os seus próprios bispos, nenhum dos quais era ex-anglicano, Waller é o primeiro bispo a liderar o ordinariato no Reino Unido.
A decisão do Vaticano de tornar bispo o chefe do ordinariato na Grã-Bretanha tem sido amplamente vista como um sinal de apoio e confiança de Roma. Numa entrevista à OSV News, Waller disse que, embora houvesse rumores de que “Roma iria pôr fim ao nosso ordinariato”, “esta nunca foi a atitude da Santa Sé, que sempre foi solidária e atenciosa.”
O Padre Mark Elliott Smith, reitor da igreja central do ordinariato, Nossa Senhora da Assunção e São Gregório, em Warwick Street, em Londres, declarou à CNA que acredita que a ordenação do novo bispo é “uma notícia imensamente boa para o ordinariato aqui no Reino Unido”.
“Dom David não é apenas o nosso primeiro bispo ordinário, mas também um sacerdote originalmente incardinado no ordinariato, ordenado em 2011 ao lado de todos aqueles que primeiro aceitaram com gratidão o convite da Anglicanorum Coetibus”, explicou. “Na minha opinião, demonstra que Roma tem confiança na forma como o Ordinariato progrediu, nos 13 anos, desde que foi estabelecido e confia na sua capacidade de discernir como deve ser liderado e de identificar as qualidades necessárias no seu líder”.
Smith disse que a elevação de Waller “é também um sinal claro de que [o Vaticano] acredita que a herança litúrgica distintiva do ordinariato tem o poder e a beleza para atrair pessoas a Cristo e à Igreja” dando energia renovada e propósito para o Ordinariato, ao iniciar a nova fase da sua vida.
Num comunicado, logo após o seu anúncio, Waller disse que foi “tanto uma humildade como uma grande honra” ter sido nomeado e acrescentou que “os últimos 13 anos foram um tempo de graça e bênção, na medida que comunidades pequenas e vulneráveis ​​cresceram em confiança, regozijando-se por ser uma parte plena, mas distinta, da Igreja Católica”
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Antes de David Waller, houve, pelo menos, um sacerdote anglicano convertido ao catolicismo que foi criado cardeal, mas que declinou a ordenação episcopal, contrariando o costume.
John Henry Newman nasceu em Londres, a 21 de fevereiro de 1801, e faleceu em Edgbaston, a 11 de agosto de 1890. Foi sacerdote católico inglês convertido do anglicanismo ao catolicismo, posteriormente nomeado cardeal pelo Papa Leão XIII, em 1879. Foi declarado venerável, em 1991, pelo Papa S. João Paulo II, beatificado, em Birmingham, no Reino Unido, a 19 de setembro de 2010, pelo Papa Bento XVI, e canonizado pelo Papa Francisco, em Roma, a 13 de outubro de 2019. Na cerimónia da canonização, o escultor Tim Tolkien (bisneto de John Ronald Reuel Tolkien, conhecido por J.R.R. Tolkien, também convertido catolicismo) apresentou uma estátua de Newman, que foi benzida pelo Papa.
Newman estudou no Trinity College de Oxford (1816) e no Oriel College (1822) e foi ordenado presbítero da Igreja Anglicana. Tornou-se, mais tarde, um dos líderes do “Movimento de Oxford”, pois considerava o anglicanismo do seu tempo excessivamente protestante e laicizado e o catolicismo corrompido, em relação às origens do cristianismo. Buscou uma “via média” entre os dois; e, pesquisando sobre os primórdios da Igreja Católica e do cristianismo em geral, acabou por se converter ao catolicismo. Depois da conversão ao catolicismo (1845), foi ordenado sacerdote da Igreja Católica em Roma (1847), abriu e dirigiu, em Birmingham, um oratório de S. Filipe de Néri e foi, ainda, reitor da Universidade Católica da Irlanda (1854-1858).
Nas duas décadas seguintes, viu-se envolto em controvérsias e desconfianças por parte da própria Igreja, a que respondeu com uma demonstração magna de sinceridade e entrega: escreveu a “Apologia pro vita sua” (1865), que anulou as críticas e restabeleceu a sua reputação, tanto entre católicos como entre anglicanos. Foi convidado a participar no Concílio Vaticano I como consultor teológico, mas declinou o convite, em virtude de ter de publicar, na mesma época, o seu “Essay in Aid of a Grammar of assent”, uma profunda investigação sobre como a pessoa humana atinge as suas convicções.
O seu pensamento é representativo da filosofia da ação e da filosofia da vida e o seu apostolado no campo da inteligência foi intenso. As suas obras completas atingem 37 tomos, sobre os mais variados assuntos – Teologia, Filosofia, Literatura, História, Espiritualidade – e os arquivos do Oratório conservam as 70 mil cartas que escreveu. As obras que publicou sobre a Universidade de Dublin tornaram-se clássicas para a Literatura Católica. Os Sermões espelham sólida piedade e grande amor pelas almas.
Uma contribuição muito importante do seu pensamento teológico foi o desenvolvimento da Doutrina Católica, que foi considerado por Bento XVI como “contributo decisivo para a renovação da Teologia”, introduzido no livro Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, de 1845, onde expôs a ideia do desenvolvimento da doutrina para defender a doutrina católica de ataques e de críticas de alguns anglicanos e protestantes, que achavam que alguns elementos do catolicismo eram corrupções ou inovações contrárias aos ensinamentos de Jesus Cristo. Também argumentou que várias doutrinas católicas rejeitadas pelos protestantes (como a hiperdulia ou o purgatório) tinham um histórico de desenvolvimento análogo às doutrinas que foram aceites pelos protestantes (como a Trindade ou a união hipostática de Cristo). Este desenvolvimento foi consequência natural e benéfica do estudo e reflexão da razão humana sobre a Revelação divina, que é imutável. Porém, este estudo teológico levaria a Igreja Católica a perceber, progressivamente, certas realidades reveladas que, antes, não tinha compreendido explícita e totalmente.
O cardeal Newman defendeu que “a infalibilidade da Igreja é como uma medida adotada pela misericórdia do Criador para preservar a [verdadeira] religião no Mundo e para refrear a liberdade de pensamento que, evidentemente, em si mesma, é um dos nossos maiores dons naturais, mas que urge salvar dos seus próprios excessos suicidas”. E defendeu que a primazia papal, cuja força provém da Revelação divina, “completa a consciência natural iluminada de maneira apenas incompleta”, e “a sua razão de ser é o facto de ser o campeão da lei moral e da consciência”. Logo, para Newman, a liberdade de consciência, que implica o cumprimento obrigatório dos deveres divinos ditados pela própria consciência, é compatível com a primazia e com a infalibilidade papais.
A sabedoria e a ortodoxia doutrinária de Newman foram louvadas por Leão XIII, Pio X, e Pio XII. No século XX, já depois da morte do cardeal Newman, o Papa Pio XII chegou mesmo a afirmar que Newman é a “Glória da Inglaterra e de toda a Igreja”. A canonização de John Henry Newman, um grande defensor da consciência (que não dispensa da observância dos princípios éticos e do cumprimento da lei moral), ofereceu o ensejo para considerar, novamente, as profundezas teológicas do retorno do Papa Francisco à tradição católica negligenciada.

2024.06.27 – Louro de Carvalho