quarta-feira, 26 de junho de 2024

Partículas finas da aviação prejudicam a saúde da população afetada

 

Um estudo da Federação Europeia de Transportes e Ambiente, sobre efeitos da poluição por partículas finas da aviação, em 33 cidades europeias mostra que é em Lisboa que mais população terá a saúde afetada. Com efeito, quem vive num raio de cinco quilómetros de distância do Aeroporto Humberto Delgado (AHD), isto é, quase meio milhão de pessoas, tem maior risco de sofrer de doenças como hipertensão, diabetes ou demência, mercê da exposição à poluição de partículas ultrafinas emitida pelos aviões.

A queima do combustível das aeronaves liberta minúsculas partículas, incluindo partículas ultrafinas, com menos de 100 micrómetros, cerca de mil vezes mais pequenas do que um fio de cabelo, com múltiplos efeitos negativos na saúde. E mais do que a população em geral, os trabalhadores dos aeroportos, em particular os que trabalham na pista, são quem está mais exposto aos efeitos das partículas ultrafinas, pelo que há necessidade de criar medidas específicas para proteger a sua saúde.

As partículas em suspensão são constituídas pela mistura de partículas sólidas e de gotículas. Algumas são emitidas diretamente, enquanto as demais se formam quando os poluentes emitidos por diferentes fontes reagem na atmosfera. As partículas têm diferentes tamanhos, e as de menos de 10 micrómetros conseguem entrar nos nossos pulmões e causar problemas de saúde graves. 

As PM10 são partículas em suspensão com diâmetro inferior a 10 micrómetros; as PM2.5 (ou partículas finas) são partículas em suspensão com diâmetro inferior a 2,5 micrómetros. 

Tanto a União Europeia (UE) como a Organização Mundial de Saúde (OMS) consideram a massa total de PM10 e PM2.5 o indicador para a definição do seu padrão. 

As partículas em suspensão vêm associadas a doenças e a mortes causadas por doenças cardíacas ou pulmonares. A OMS recolheu provas científicas suficientes para afirmar que a exposição mais nociva a partículas em suspensão é a exposição prolongada a partículas finas (PM2.5).

Porém, este tipo de poluição não está suficientemente regulado, como salienta o estudo, que, tendo analisado a ligação entre as partículas emitidas pelos aviões e a saúde de quem vive perto dos 33 aeroportos em causa, sugere que “milhares de casos de hipertensão arterial, de diabetes e de demência”, estarão ligados a estas partículas minúsculas. Porém, Lisboa é a cidade que mais concentra pessoas a viver, a trabalhar e a estudar nas imediações do aeroporto. Em Lisboa e arredores, estão em causa cerca de 414 mil pessoas (cerca de 4% da população portuguesa).

Estima-se que as partículas ultrafinas decorrentes da atividade do AHD possam estar na origem de 15473 casos de hipertensão, 18615 casos de diabetes e 1837 casos de demência entre a população da cidade de Lisboa e arredores. Estes números representam até 9% da população que vive neste raio de cinco quilómetros do aeroporto. E os dados apontam para um risco de demência de 20%, de 12%, para a diabetes, e de 7%, para a hipertensão arterial. Esta estimativa foi feita a partir dos dados conhecidos para o aeroporto de Schiphol, em Amesterdão, nos Países Baixos, mas os valores de concentração de partículas ultrafinas medidas em torno de Schiphol situam-se entre quatro mil e 30 mil partículas/cm3, valor abaixo das 60 mil-136 mil partículas/cm3 registadas pela Zero, no verão de 2023, em zonas altamente populosas em redor do AHD.

O estudo agora divulgado complementa o estudo da Universidade Nova de Lisboa, de 2019, que demonstra que a concentração de partículas ultrafinas em algumas zonas de Lisboa sobe conforme a sua exposição à influência do aeroporto e ao movimento de aviões, diz a Zero, para quem, dada a proximidade do AHD ao centro da cidade, os efeitos se estendem por áreas significativas.

Estas partículas deixadas em suspensão no ar pelos aviões dispersam-se amplamente na atmosfera e são invisíveis. E, se inaladas, passam através dos pulmões para a corrente sanguínea e espalham-se pelo organismo, podendo originar sérios problemas de saúde a longo prazo, incluindo respiratórios, cardiovasculares, neurológicos, endócrinos e gestacionais. Assim, a exposição de longo prazo às partículas com origem na aviação, segundo a Zero, resulta num número estimado de mortes prematuras entre 14 mil e 21200, todos os anos.

Em Lisboa, é “uma situação que não encontra semelhança em mais nenhum outro aeroporto europeu […], agravando as doenças provocados pelo excesso de ruído”, alerta a associação.

No total dos aeroportos considerados, a exposição às partículas ultrafinas pode estar associada a 280 mil casos de hipertensão, a 330 mil casos de diabetes e a 18 mil casos de demência. E, até agora, não há regulamentação sobre os níveis seguros de partículas ultrafinas no ar, apesar de a OMS ter alertado, há mais de 15 anos, que se trata de um poluente preocupante.

É certo que a UE aprovou, já este ano, limites para a poluição por partículas fimas. Todavia, apesar de os limites serem agora mais estritos, são ainda mais elevados do que os recomendados pela OMS, na revisão das regras em 2021. Por exemplo, o limite anual da exposição a partículas PM 2,5, que são das que maior impacto têm na saúde humana, foi revisto de 25 para 10 microgramas por metro cúbico, na diretiva europeia. Contudo, o valor recomendado pela OMS é metade disso, cinco microgramas por metro cúbico, por ano.

Por isso, para reduzir o impacto nas partículas ultrafinas na saúde, a Zero defende a não expansão da capacidade do AHD, o seu encerramento, “para tão breve quanto possível”, e a promoção da utilização de combustíveis sustentáveis. Com efeito, o uso de combustível da aviação de melhor qualidade pode reduzir a emissão de partículas ultrafinas até 70%, pois quanto menos aromáticos e enxofre tiver, menor é a poluição que gera. Está nas mãos dos decisores exigir que as transportadoras aéreas usem combustível mais limpo, sujeito a processo de hidrotratamento, e que tem um custo que pode ser menor do que cinco cêntimos por litro. Porém, as normas para produção de combustível para a aviação não o exigem.

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Antes de se falar de partículas finas e ultrafinas, já se falava em cinzas (por exemplo, as vulcânicas da Islândia) ou das poeiras (por exemplo as do Norte de África), que impunham cautelas.  

O termo “poeiras” não possui significado científico exato, mas é definível como sólido reduzido a pó ou a partículas finas. A dimensão das partículas é tão importante como a natureza do pó, para estabelecer se a substância é perigosa. Em geral, os mais perigosos tipos de poeiras são os muito pequenos, invisíveis para a olho nu (caso dos pós muito finos), suficientemente pequenos para serem inalados, mas suficientemente grandes para permanecerem presos no tecido pulmonar e não serem exalados. No entanto, algumas substâncias (por exemplo, o amianto) produzem poeiras muito grosseiras com partículas grandes, que podem ser perigosas.

As substâncias podem produzir poeiras com partículas de dimensões distintas; e só porque apenas se veem grandes partículas de pó ou grânulos de grandes dimensões não significa que não possam estar presentes outras de pequenas dimensões.

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Há uma multiplicidade de tipos de poeiras, de que se apresentam alguns.

Muitos processos modernos utilizam nanomateriais, que são particularmente perigosos, pois podem ser absorvidos, diretamente, na corrente sanguínea, através da pele e das membranas pulmonares, por inspiração. São perigosos para a saúde, independentemente da matéria de que são feitos. O equipamento de proteção normal não proporciona proteção adequada e deve contactar-se o laboratório, antes da abertura destes produtos ou da colheita de amostras.

As poeiras tóxicas são, geralmente, produzidas, quando se trabalha com substâncias tóxicas, por exemplo produtos químicos que contêm chumbo, mercúrio, cromo ou substâncias orgânicas tóxicas, como fentanil e análogos. Se inaladas, podem danificar os pulmões ou entrar na corrente sanguínea e ser distribuídas por todo o corpo. Os fentaniles e outros opioides sintéticos podem causar depressão respiratória e sedações muito rápidas.  

As poeiras incomodativas podem ser geradas pelo manuseamento de materiais, tais como: farinha/cereais, pez, tabaco, açúcar, papel, cimento, géneros alimentícios secos, serradura, grãos de café ou de chá, negro de fumo (toner para fotocopiadora/impressora). São, regra geral, apenas irritantes, mas, em forma concentrada, podem ser perigosas para a saúde. Todavia, é cancerígeno o pó de madeira de folhosas.

Há áreas em que podem surgir poeiras de cannabis durante o trabalho (por exemplo, num entreposto oficial). Este tipo de poeiras não é considerado particularmente perigoso, pois não é facilmente absorvido pelo organismo e encontra-se, de um modo geral, numa concentração baixa.

Podem encontrar-se poeiras incomodativas em qualquer sítio. As mais comuns são: as poeiras de papel, em escritórios de triagem de correio e em papelarias; o pó de cimento, nos estaleiros de construção; poeiras várias, em portos, em depósitos aduaneiros, em vias de navegação interiores e em instalações de comerciantes; e toner, em salas de fotocopiadoras/impressoras.

Pode haver poeiras tóxicas ou inflamáveis em concentrações perigosas em locais de carga, descarga ou movimentação de carga a granel, (cereais, minérios metálicos, carvão, etc.).

As poeiras inflamáveis deslocam-se pelo ar em nuvens e podem ser facilmente inflamadas, desencadeando chama súbita ou explosão. Podem ser incendiadas por faísca ou por chama viva, ou, ainda, por terem pousado sobre uma superfície quente. Quando as poeiras inflamáveis pousam e inflamam, podem apresentar chamas ou simplesmente arder em combustão lenta, muito depois de a fonte de ignição ter sido suprimida. Na sequência de uma explosão, as poeiras inflamáveis podem dispersar-se por uma área importante, agravando o risco de incêndios graves. É pouco provável que, no decurso do trabalho, se venha a deparar com poeiras inflamáveis.

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As poeiras podem causar danos nos pulmões e nas vias respiratórias, mas alguns tipos específicos podem causar cancro. As doenças mais importantes associadas à inalação de poeiras são:

- A pneumoconiose benigna. É provocada quando poeiras aparentemente inofensivas são inaladas e depositadas nos pulmões de tal forma que passam a ser visíveis através de raios X. Não causam danos no tecido pulmonar e, por conseguinte, a doença não é incapacitante. É uma perturbação mais frequentemente associada a poeiras de metais, como o ferro e o estanho.

- A pneumoconiose. É a denominação comum a um grupo de doenças pulmonares crónicas provocadas pela inalação de poeiras que contêm minerais específicos. Inclui uma série de doenças cujo nome advém das poeiras que as causaram. As mais conhecidas são a asbestose (de poeiras de amianto); a silicose (de poeiras de sílica); e a talcose (de poeiras de talco).

- A pneumonite. É a inflamação dos tecidos pulmonares ou dos bronquíolos causada pela inalação de poeiras contendo metais. Os sintomas são semelhantes à pneumonia, mas o nível de gravidade varia, consoante o metal inalado. As causas mais comuns são as poeiras de cádmio e de berílio.

- O mesotelioma da pleura. É o tumor dos pulmões, causado principalmente pela exposição ao amianto.

- O cancro do pulmão. Também pode seguir-se a qualquer exposição ao amianto.

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Para a maioria dos tipos de poeiras, incluindo as incomodativas, foram fixados limites de exposição em normas de saúde e de segurança. Porém, como é provável haver pouco controlo em relação à fonte das poeiras, são de tomar todas as precauções necessárias para reduzir os riscos: utilizar aparelho de proteção respiratória ou máscara facial; certificar-se, se possível, de que o espaço de trabalho está bem ventilado; se houver equipamento de extração de poeira, certificar-se de que está a ser utilizado; guardar limites à exposição às poeiras; fazer regulares controlos médicos; sair da área contaminada, logo que sinta quaisquer sintomas.

Enfim, só se deve permanecer numa atmosfera com poeiras durante o mínimo absoluto do tempo necessário para efetuar o trabalho, mesmo com proteção respiratória.

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As poeiras perseguem-nos em cada passo, pelo que exigem cautelas, mas o recente estudo da Federação Europeia de Transportes e Ambiente sinaliza que as poeiras finas e ultrafinas afetam gravemente a população que vive e trabalha em alargada área aeroportuária. Respeito pelas normas e vigilância médica impõem-se.   

2024.06.25 – Louro de carvalho

terça-feira, 25 de junho de 2024

Grupo de trabalho sindical para travar violação do segredo de justiça!

 

Noticiou o Diário de notícias (Dn) online, a 25 de junho, que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) criou um grupo de trabalho para avançar com propostas de alterações legislativas que travem a violação do segredo de justiça, “uma entropia” no sistema cujos autores “devem ser devidamente penalizados”.

Em comunicado, o SMMP manifesta-se “preocupado com as fugas de informação em processos judiciais” e, “no âmbito dos seus deveres estatutários, para a dignificação e credibilização do sistema judiciário”, anunciou a criação de “grupo de trabalho específico”, para “refletir e avançar, junto do poder legislativo, com propostas que travem a violação do segredo de justiça e as subsequentes divulgações na praça pública”, já que “as mesmas são uma entropia no panorama judicial e que os seus autores devem ser devidamente penalizados”.

Vincando que, apesar de os casos conhecidos de violação do segredo de justiça representarem cerca de 1% dos casos e que são de difícil investigação, o SMMP não duvida de que “este é um fenómeno que atinge o âmago da justiça e a perceção que os cidadãos têm dela”. Por isso, focado nas medidas necessárias à melhoria do sistema judiciário, promete divulgar, “oportunamente”, o resultado final do grupo de trabalho, para “contribuir, com rigor e [com] profundidade, na prevenção, combate e [na] penalização da violação do segredo de justiça, que é crime”.

A pedra de toque para a quebra do marasmo nos magistrados do Ministério Público (MP) que não se reveem nos atropelos à lei e na violação dos direitos das pessoas, foi a recente divulgação, pela CNN Portugal, do teor de escutas que envolvem António Costa, no âmbito da Operação Influencer, mas não conexas com esse processo, revelando conversas com o então ministro das Infraestruturas, em que se ouve o ex-primeiro-ministro (ex-PM) a ordenar a João Galamba a demissão da ex-CEO da TAP, por motivos políticos. Na sequência da divulgação destas escutas, o MP ordenou a abertura de um inquérito à fuga de informação.

Em reação às escutas divulgadas, os subscritores do manifesto pela reforma da Justiça, criticando a atuação do MP, nomeadamente na Operação Influencer, que levou à queda do governo de António Costa, pediram explicações do MP e da sua hierarquia, designadamente da procuradora-geral da República, pois sustentam que a divulgação das escutas é mais um ato de violação das regras básicas do Estado de Direito Democrático, com envolvimento e participação de responsáveis dos setores da Justiça e da comunicação social, “que deviam estar na primeira linha da sua defesa”. E criticam a divulgação das escutas, a sua transcrição e o facto de terem sido consideradas com “relevância criminal para um processo-crime em curso”.

O secretário-geral do Partido Socialista (PS) defendeu que a procuradora-geral da República deve prestar esclarecimentos sobre a violação da lei nas escutas, considerando insuficiente a abertura do inquérito; o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) pediu a audição de Lucília Gago no Parlamento, para “prestar contas” sobre o cumprimento das garantias constitucionais e legais de proteção do segredo de justiça; e o Presidente da República (PR) defendeu que as fugas ao segredo da justiça são “um dos pontos importantes” a ponderar numa reforma do setor, visto que há um acordo em Portugal quanto à necessidade de repensar a justiça.

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É óbvio que o SMMP e os críticos do MP têm razão nas preocupações, nos lamentos e nas críticas. Porém, não cabe ao SMMP proceder à reforma da Justiça, mas à Assembleia da República (AR) e ao governo. Em tempos, o PR incentivou os operadores da Justiça a proporem a reforma da Justiça, porque os partidos não a queriam fazer. As propostas eram interessantes, embora algumas implicassem uma revisão constitucional. E tudo ficou no papel. Recentemente, o chefe de Estado disse que a reforma compete aos partidos. Não obstante, o atual presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) veio a terreiro esclarecer que não há necessidade de uma reforma estrutural da Justiça, mas de reformas pontuais (eu diria “cirúrgicas”).     

O segredo de justiça, um imperativo constitucional (ver artigo 20.º, n.º 3 da Constituição), é um regime de reserva jurídica sobre o conteúdo dos atos processuais, que se estende à proibição de divulgação da ocorrência de atos processuais e de informações acerca da sua tramitação.

Assim, implica as seguintes limitações: proibição de assistir, proibição de tomar conhecimento e proibição de divulgação. Visa garantir o sucesso da investigação (obtenção de prova) e proteger as partes envolvidas no processo, como o arguido (que, presumido inocente, pode ver a sua honra e a sua privacidade injustificadamente atingidas) e a vítima. Embora a regra geral, no processo penal, seja a da publicidade, nos termos do artigo 86.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), o juiz de instrução, na fase de inquérito, pode sujeitar o processo a segredo de justiça. De modo análogo, o MP pode determinar a sujeição do processo a segredo de justiça. Estando o processo – criminal, disciplinar ou contraordenacional – sujeito a segredo de justiça, a sua violação corresponde à prática de crime, nos termos do artigo 371.º do Código Penal (CP), no âmbito dos crimes contra a realização da justiça.

O artigo 371.º do CP estabelece que “quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de ato de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo” (n.º1). E “o agente é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias”, se o facto descrito respeitar a processo por contraordenação, até à decisão da autoridade administrativa, ou a processo disciplinar, enquanto se mantiver legalmente o segredo” (ver n.º 2).

Vem a propósito recordar que um candidato a juiz do Tribunal Constitucional (TC), que os juízes eleitos não cooptaram, devido à pressão pública, porque, entre outras asserções, referiu que o segredo de justiça era violado a troco de dinheiro (embora noutras referências não tivesse razão, nesta é provável que a tivesse). Ora, o artigo 372.º do CP, no quadro dos “crimes cometidos no exercício de funções públicas”, estipula, sobre o recebimento ou oferta indevidos de vantagem:

“O funcionário que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias” (n.º 1). Quem, nas mesmas condições, der ou prometer a funcionário ou a terceiro por indicação ou conhecimento dele, “vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias” (n.º 2).

Excluem-se “as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes” (n.º 3).

O mencionado artigo 86.º do CCP, que estabelece a publicidade do processo penal, “sob pena de nulidade”, ressalvadas as exceções previstas na lei (n.º 1), estabelece que o juiz de instrução pode, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o MP, “determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais” (n.º 2).

Se o MP entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam, “pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de 72 horas” (n.º 3). Neste caso, o MP, oficiosamente ou a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, “pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito” (n.º 4). E, se o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento do segredo de justiça, mas o MP não o determinar, os autos são remetidos ao juiz de instrução para decisão, por despacho irrecorrível” (n.º 5).

O segredo de justiça “vincula todos os sujeitos e participantes processuais” e “as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes”, e implica as proibições de “assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de ato processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir” e “a divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos”, seja qual for o motivo da divulgação (n.º 8).

Já a publicidade implica os direitos de “assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos processuais na fase de julgamento; narração dos atos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social; e consulta do auto e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer partes dele” (n.º 6). Porém, não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova. E autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for o caso, a sua destruição ou a entrega à pessoa a que digam respeito (n.º 7).

Também a autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar, ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas (identificadas no processo) do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade, ou indispensável ao exercício de direitos pelos interessados (n.os 9 e 10). E pode autorizar a passagem de certidão, dando conhecimento do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se necessária a processo de natureza criminal, à instrução de processo disciplinar de natureza pública ou à dedução do pedido de indemnização civil (n.º 11).

O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa, ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública (n.º 13). E, pelos referidos esclarecimentos públicos, for confirmado que a pessoa publicamente posta em causa assume a qualidade de suspeito, tem o direito de ser ouvida no processo, a seu pedido, num prazo razoável, que não deverá ultrapassar os três meses, com salvaguarda dos interesses da investigação (n.º 14).

Omiti a referência aos acidentes de viação (n.º 12), por não relevar para o caso.

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Como se vê pelos normativos, o MP tem cometido erros de violação do segredo de justiça, de publicação de conteúdos, de sonegação de acesso aos processos e de não audição dos suspeitos, de uso de matéria sem relevância penal. E o erro não está na ausência ou de atualização da lei. O novo CP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março e já vai na 63.ª versão, a da Lei n.º 15/2024, de 19 de janeiro; e o novo CPP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro e já vai na 49.ª versão, a da Lei n.º 52/2023, de 28 de agosto.

Portanto, embora possa proceder-se a alterações cirúrgicas, como, por exemplo, o aumento das molduras penais, a solução passa pela investigação e punição dos criminosos.

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José Sócrates denunciou, recentemente, os dois pesos e duas medidas dos partidos e da opinião pública, dantes silenciosos e agora em generalizado clamor. Tem razão, mas olvida que, enquanto PM, o MP e o STJ o trataram bem: o primeiro encerrou-lhe um processo, sem haver resposta a dezenas de questões; o segundo mandou destruir as escutas, por, supostamente, não terem, relevância penal. Mais razão tem Fernanda Câncio, ao denunciar, em artigo de opinião no DN, os dois pesos dos partidos e a reiterada violação da lei e dos direitos dos cidadãos pelo MP, ao menos, desde o processo Casa Pia, e ao desmistificar o aforismo costista: “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”. Os políticos têm medo reverencial do MP, o qual, intervindo na política stricto sensu, gera ou acentua crises. Até parece um Estado policial!

2024.06.25 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Em maré de inquietação e de crise, lembramo-nos de Deus

 

Nos muitos momentos que a vida nos proporciona de medo, de inquietação e de crise, em que nos sentimos a afundar, perguntamos onde está Deus e se Ele não se importa connosco.

A liturgia do 12.º domingo do Tempo Comum no Ano B garante-nos que Deus não abandona nem ignora os filhos que criou; antes, os ampara com amor fiel, vigilante e criador, caminhando ao seu lado e cuidando deles, em cada passo da peregrinação da vida.

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No Evangelho (Mc 4,35-41), Marcos oferece-nos uma catequese sobre a presença tranquilizadora de Jesus na viagem que a Igreja e os discípulos fazem pela História. Com Jesus ao comando no barco, os discípulos estão aptos a enfrentar todas tempestades, pois sabem que a meta final da viagem não pode deixar de ser o porto seguro onde os espera a Vida.

Jesus está junto do Mar da Galileia, ao lado de Cafarnaum. Apresentou à multidão o seu anúncio, em parábolas, sobre o Reino de Deus. Com o dia a terminar, decidiu passar “à outra margem”. Do ponto de vista geográfico, a “outra margem” é o território pagão da Decápole, nome da região da Palestina oriental, que se estendia de Damasco, ao Norte, até Filadélfia, ao Sul. As dez cidades (“Decápole”) do território (Damasco, Filadélfia, Rafana, Beth Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata) formavam uma confederação, constituída após a conquista da Palestina pelos Romanos, no ano 63 a.C.. Eram cidades de cultura grega que estavam sob a administração do legado romano da Síria. Os Judeus consideravam os seus habitantes como pagãos, que viviam à margem dos caminhos da salvação.

O episódio narrado no trecho em apreço passa-se durante a travessia do “Mar da Galileia” (não é mar, mas antes lago de água doce, alimentado, sobretudo, pelas águas do Jordão, com cerca de 12 quilómetros de largura e 21 de comprimento. As tempestades que nele se levantavam, causadas pelo cruzamento dos ventos do Mediterrâneo com os do deserto, apareciam subitamente e eram muito violentas. Para a mentalidade judaica, o “mar” era uma realidade assustadora, indomável, orgulhosa, desordenada, onde residiam os poderes caóticos que o homem não controlava e onde estavam os poderes maléficos que destruíam os homens. Só Deus lhe podia pôr limites, dar-lhe ordens e libertar os homens dessas forças descontroladas.

Com elementos de forte carga simbólica (mar, barco, tempestade, noite, sono), Marcos reflete sobre a comunidade dos discípulos em marcha pela História, em tempo em que a Igreja enfrenta sérias tempestades (perseguição de Nero, problemas internos com a diferença de perspetiva entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, dificuldades da comunidade em encontrar o rumo para o futuro); e apresenta aos crentes indicações sobre o modo de viverem a fé e o compromisso com Jesus.

Em primeiro lugar, Marcos situa nos no mar, ao anoitecer. Situar o barco com Jesus e os discípulos no mar é pô-los num ambiente hostil, adverso, perigoso, caótico, rodeados pelas forças que lutam contra Deus e contra a felicidade do homem. A noite, que é o tempo das trevas, da falta de luz, aparece ligada ao medo, ao desânimo, à falta de perspetivas. O mar e a noite são uma realidade de dificuldade, de hostilidade, de incompreensão, de “sombras”, que faz, tantas vezes, o “cenário” das nossas “viagens”. E o barco é, na catequese cristã, o símbolo da comunidade de Jesus, que navega pela História: Jesus está no “barco”, mas são os discípulos que se encarregam da navegação, pois é a eles que é confiada a tarefa de conduzir a comunidade pelo mar da vida.

O barco dirige-se “para a outra margem”, ao encontro dos pagãos, pois a missão da comunidade cristã é ir ao encontro das pessoas de todas as raças e culturas, para lhes levar Jesus e a libertação.

Durante a travessia, Jesus “dorme”. O sono tranquilo de Jesus significa a paz e a serenidade que Ele pretende transmitir aos discípulos ao longo da “viagem” que faz com eles, mas também pode significar que os discípulos, ao longo da “viagem”, têm, por vezes, a sensação de que estão sós, abandonados à sua sorte e que Jesus não está com eles ou não se importa com eles. Porém, a “ausência” de Jesus nunca será realidade: Ele garantiu aos discípulos que estaria sempre com eles “até ao fim dos tempos” (cf. Mt 28,20). Será o ativismo dos discípulos que não lhes dá espaço para repararem em Jesus, que vai à popa, no lugar do comando.

A “tempestade” significa as dificuldades que o Mundo opõe à missão dos discípulos. Talvez Marcos estivesse a pensar numa tempestade concreta, como a perseguição de Nero aos cristãos de Roma, na qual foram mortos Pedro e Paulo, bem como muitos outros cristãos (anos 64-68). Porém, a tempestade refere-se também aos momentos de crise, de perseguição, de hostilidade que os discípulos terão de enfrentar ao longo do seu caminho histórico, até ao fim dos tempos.

Jesus, respondendo aos discípulos, acalma a fúria do mar e do vento, com a sua Palavra imperiosa. Aparece como o Deus que acompanha a difícil caminhada dos discípulos pelo Mundo e que cuida deles no meio das dificuldades e da hostilidade do Mundo.

Depois de acalmar o mar e o vento, Jesus repreende os discípulos pela sua falta de fé: “Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?” Com efeito, os discípulos, depois do caminho feito com Jesus, deviam saber que Ele nunca está ausente, nem alheado deles. Não podem esquecer que Jesus vai sempre com eles no mesmo barco e que, por isso, nada têm a temer.

O trecho sublinha o “temor” dos discípulos e a pergunta que eles fazem uns aos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”. O temor define o estado de espírito do homem ante a divindade. No universo bíblico, o temor não denota pânico ou medo servil, mas encerra um misterioso poder de atração que se traduz em obediência, entrega, confiança, entusiasmo. Tal atitude positiva deriva da experiência que o crente israelita tem de Deus: Javé é um Deus presente, que guia o Povo com solicitude paternal e maternal. Por isso, o crente tem consciência da omnipotência de Deus, mas sabe que pode confiar incondicionalmente n’Ele e entregar-se nas suas mãos. A resposta à questão “Quem é este?” está dada: o temor dos discípulos significa o seu reconhecimento de que Jesus é o Deus presente no meio dos homens e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total entrega. É com esse Jesus – o Deus que está ao nosso lado em cada ponto do caminho e que nos ajuda a enfrentar todas as tempestades, todas as crises, todos os medos – que viajamos. Ele vai à popa do nosso barco. Com Ele viajamos tranquilos, ainda que o barco não pare de balouçar nas ondas da vida.

Comentando este passo evangélico, o Papa foca-se na súbita chegada da tempestade que pôs o barco em risco de se afundar. E Jesus, que dormia, “acorda, ameaça o vento e tudo volta à calma”.

Todavia, sustenta o Pontífice, de facto, Jesus “não acorda, acordam-no”. Fora Ele a dizer-lhes que entrassem no barco e atravessassem o lago, pois eram experientes, pescadores, e aquele era o seu ambiente. Porém, a tempestade pô-los em apuros. Parece que Jesus os quis pôr à prova. Porém, não os deixa sós, fica com eles, em silêncio, até a dormir. E, quando a tempestade se desencadeia, tranquiliza-os, incita-os a terem mais fé e acompanha-os para lá do perigo.

É caso para perguntamos porque se comporta assim Jesus. O escopo é reforçar a fé dos discípulos e torná-los  corajosos. Saem desta experiência conscientes do poder de Jesus e da sua presença no meio deles e, por isso, mais fortes e dispostos a enfrentar os obstáculos e as dificuldades, incluindo o medo de se aventurarem a anunciar o Evangelho. Superada esta prova com Ele, serão capazes de enfrentar muitas outras, para levarem o Evangelho a todas as nações.

No dizer de Francisco, “Jesus faz o mesmo connosco, em particular na Eucaristia: reúne-nos à sua volta, dá-nos a sua Palavra, alimenta-nos com o seu Corpo e Sangue, e depois convida-nos a fazer-nos ao largo, para transmitirmos o que ouvimos e partilharmos com todos o que recebemos, na vida de todos os dias, mesmo quando é difícil”. Não nos tirando das dificuldades, ajuda-nos a enfrentá-las com corajosos. Assim, nós, superando tudo com a sua ajuda, aprendemos a estreitar-nos com Ele, a confiar no seu poder, a superar incertezas e hesitações, fechamentos e preconceitos, com coragem e com grandeza de coração, para dizermos a todos que o Reino dos Céus está presente e que, com Jesus, podemos fazê-lo crescer juntos, para lá de todas as barreiras.

Quando vem a tempestade, não podemos deixar-nos dominar pelo tumulto, mas devemos estreitar-nos com Jesus, para encontrarmos “a calma e a paz, na oração, no silêncio, na escuta da Palavra, na adoração e na partilha fraterna da fé”.

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Na primeira leitura (Jb 38,1.8-11), Deus revela-se a Job como o Senhor que domina o mar e conhece os segredos do universo e da vida. Nada lhe é indiferente: Ele cuida de todos os seres criados com amor de pai e de mãe. Ao homem resta entregar-se nas mãos desse Deus omnipotente e cheio de amor, com humildade e com total confiança.

O Livro de Job é um clássico da literatura, pela beleza literária e pelas questões que aborda e que tocam o âmago da existência humana. Job serve de pretexto para refletir sobre os grandes desafios aos homens de todas as épocas, como o problema do sofrimento do inocente, a situação do homem ante Deus e a atitude de Deus face ao homem. É a saga do homem justo, de súbito atingido por um vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a saúde. Job interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e do papel de Deus no seu drama pessoal.

Alguns dos amigos respondem-lhe com a tese da teologia oficial: o sofrimento é o resultado do pecado do homem. Portanto, se Job sofre, pecou. Job recusa tal conclusão e demonstra a falência da doutrina oficial para explicar o seu drama. Com apurado sentido crítico, desmonta os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusa o Deus contabilista que Se limita a registar as ações boas e más do homem, para lhe pagar em conformidade. E, rejeitada a explicação tradicional para o sofrimento, Job dirige-se Àquele que lhe pode dar as respostas: Deus.

No discurso, muito crítico, cruzam-se a animosidade, a violência, a queixa, o inconformismo, a dúvida, a revolta, com a esperança, a fé e a confiança. Quando Deus enfrenta Job, recorda-lhe o seu lugar de criatura, limitada e finita; mostra-lhe como só Ele conhece as leis que regem o universo e a vida, mostra-lhe a sua preocupação e amor com cada ser criado; e convida-o a não se pôr em bicos de pés, mas a ocupar o lugar de criatura, sem pôr em causa o desígnio de Deus, já que esse desígnio ultrapassa a capacidade de compreensão de qualquer criatura. Deus tem uma lógica, um projeto que ultrapassa o que cada homem (também Job) poderá entender.

A história termina com Job a perceber o seu lugar, a transcendência de Deus e a inefabilidade do seu desígnio, a entregar-se nas mãos de Deus com humilde confiança.

O trecho em referência começa por apresentar Javé a responder a Job “do meio da tempestade”. É o quadro habitual das teofanias a emoldurar a manifestação aos homens do Deus todo-poderoso, o soberano de toda a terra. Job deve estar ciente de que Aquele que lhe fala é o Deus omnipotente, o Senhor do universo e da História. Deus manifesta-se e fala com ele, para lhe fazer perceber a insensatez das suas críticas. Depois de se apresentar como o grande arquiteto que construiu a terra, Javé descreve o que fez com o mar.

As antigas lendas mesopotâmicas da criação apresentavam as águas salgadas (representadas pela deusa Tiamat) como o monstro criador do caos; na luta para organizar o cosmos, Marduk, o deus da ordem, lutou contra o mar e, com muito esforço, pôs-lhe limites.

O Povo bíblico, influenciado pelos mitos mesopotâmicos, sempre viu no mar a realidade indomável, onde residiam os poderes caóticos que o homem não controla. Mas Deus descreve, de forma pacífica e bela, a forma como lidou com a força ameaçadora que Marduk teve tanta dificuldade em controlar: logo que o mar saiu “do seio materno” (“irrompeu do seio do abismo”), Deus tratou-o como a recém-nascido, com cuidados e carícias, vestindo-o de neblina e colocando-lhe uma faixa de nuvens; depois, para que ele, ao crescer, não se tornasse força indomável, “encerrou-o entre dois batentes” e “fixou-lhe os limites”. O mar, controlado e tratado com amor, testemunha o poder supremo de Deus sobre toda a criação.

Ao lembrar a sua ação criadora sobre o mar, Javé apresenta-Se intocável na sua transcendência e mostra que tem para a criação um plano estável, consolidado, irrevogável. E Job é convidado a aceitar que o Deus de quem depende toda a criação, que submete o mar, que cuida da criação com cuidados de mãe, sabe o que está a fazer e tem solução para os problemas e dramas do homem. O homem é que nem sempre percebe o alcance e o sentido último do projeto de Deus.

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Na segunda leitura (2Cor 5,14-17), Paulo convida-nos a olhar para a cruz e a contemplar o amor de Jesus expresso na entrega total da sua vida ao projeto do Pai em prol dos homens. Deus enviou o seu Filho para caminhar connosco e para nos ensinar a viver no amor. É isso que move Paulo no apostolado: sente que a sua missão é dar testemunho desse amor, para que todos os que escutam a Boa nova de Jesus vivam como pessoas novas, libertas do egoísmo que escraviza.

Só Deus tem todas as respostas e conhece os segredos do universo e da vida. Ao homem, finito, resta entregar-se nas mãos desse Deus omnipotente e cheio de amor, adorá-Lo e louvá-Lo, confiar na sua sabedoria, ver n’Ele a sua esperança e a sua salvação.

O apóstolo fez a experiência do amor de Cristo e deixou-se tocar por ele. Descobriu que “Cristo morreu por todos”, fazendo da sua vida dom de amor. Cristo não viveu para Si, não pôs os seus interesses acima do plano salvador que o Pai lhe tinha confiado, mas deu a vida, até às últimas consequências (a cruz), para mudar as nossas vidas e nos oferecer a salvação.

Quem olha a cruz não deixa de sentir-se interpelado por este exemplo de amor; e, contemplando o exemplo de Jesus, aprende a não viver fechado em si, de forma egocêntrica, mas a viver com o coração aberto a Deus e aos irmãos. É esta boa nova que absorve Paulo e que ele sente que deve testemunhar a todos os irmãos. Paulo admite que, no passado, entendeu Cristo à maneira humana, não percebendo que a sua doação até à morte era expressão de amor ilimitado; mas, depois de se ter encontrado com Cristo ressuscitado na estrada de Damasco, passou a entendê-Lo e a ver as coisas de modo diferente. Desde então, nunca deixou de dar testemunho do amor de Jesus.

Paulo anuncia, por mandato de Cristo, que, pela adesão a Cristo, desaparece o homem velho do pecado e surge a nova criatura. O termo grego aqui utilizado (“ktísis”) pode significar “criação”, “criatura” ou “humanidade”. O cristão, que aderiu a Cristo, é nova criatura, membro de nova Humanidade. Identificado com Cristo, vive por amor e ruma à Vida plena, à salvação definitiva. Paulo conheceu o amor de Cristo e tornou-se nova criatura; e nunca deixa de testemunhar isto ante o Mundo inteiro. É este o dinamismo cristão e apostólico.

2024.06.24 – Louro de Carvalho

Lince ibérico não está em vias de extinção, mas é uma espécie vulnerável

 

Até há pouco tempo, o lince ibérico estava na lista das espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Isto, porque o número destes animais, conhecidos como gatos salvagens de tamanho médio, tem vindo a diminuir, devido à caça excessiva, à caça furtiva e à perda de habitats adequados; e porque o coelho europeu, a sua presa principal, está a tornar-se mais escassa, por causa de doenças, como a mixomatose (causada pelo vírus myxoma, originário de coelhos selvagens brasileiros, podendo provocar quebra do sistema imunitário, o que propicia o aparecimento de infeções bacterianas, causando a morte dos animais).

Há boas notícias para a vida selvagem, uma vez que um dos principais carnívoros da Europa está a recuperar da “quase extinção”. Estima-se que, atualmente, a população total de linces ibéricos seja superior a dois mil. Porém, o coordenador do projeto LIFE Lynx-Connect refere que ainda há muito trabalho a fazer.

Seja como for, a UICN alterou, na Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas, o estatuto do lince ibérico de “ameaçado” para “vulnerável”, pois a espécie continua “ recuperar da quase extinção, graças aos esforços de conservação sustentados”. “No momento em que a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas celebra o 60.º aniversário, a sua importância não pode ser subestimada como a mais completa fonte de informação sobre o estado da biodiversidade mundial”, afirmou Grethel Aguilar, diretora-geral da UICN, vincando que “é uma ferramenta essencial que mede o progresso para travar a perda de Natureza e alcançar os objetivos globais de biodiversidade para 2030”.

A população do lince ibérico aumentou, exponencialmente, de 62 indivíduos adultos, em 2001, para 648, em 2022, contabilizando-se, agora, um total de mais de dois mil, incluindo linces jovens e adultos. Os esforços de conservação desta espécie têm-se centrado no aumento do número de presas, como o coelho europeu, na proteção e recuperação do seu habitat e na redução do número de mortes causadas pela atividade humana. Também tem sido fundamental para aumentar o número de linces ibéricos a expansão da diversidade genética da espécie, através de translocações e de um programa de reprodução ex situ. Assim, desde 2010, mais de 400 linces ibéricos foram reintroduzidos em partes de Portugal e Espanha. E o lince ibérico ocupa, atualmente, pelo menos, 3320 km2, um aumento em relação aos 49 km2 de 2005.

O coordenador do projeto LIFE Lynx-Connect, que liderou a ação de conservação, frisou que esta é “a maior recuperação de uma espécie felina alguma vez conseguida através da conservação”. “Este sucesso é o resultado da colaboração empenhada entre organismos públicos, instituições científicas, ONG [organizações não-governamentais], empresas privadas e membros da comunidade, incluindo proprietários locais, agricultores, guarda-caça e caçadores, e do apoio financeiro e logístico do projeto LIFE da União Europeia”, relevou Francisco Javier Salcedo Ortiz. Porém, entende que há muito trabalho a fazer, para garantir a sobrevivência das populações de linces ibéricos e a recuperação da espécie.

O lince ibérico continua ameaçado, principalmente devido a potenciais flutuações na população de coelhos europeus, que são, muitas vezes, causadas por surtos de vírus. A caça furtiva e os atropelamentos de veículo continuam a constituir ameaças, em especial nos locais onde estradas muito movimentadas atravessam o habitat do lince. As alterações de habitat relacionadas com as alterações climáticas são também uma ameaça crescente.

A primeira avaliação do Estatuto Verde das Espécies da UICN – padrão global para medir a recuperação das espécies e avaliar o impacto da conservação – classifica o lince ibérico como largamente empobrecido. No entanto, o seu elevado legado de conservação reflete o impacto dos esforços de conservação até à data, e “subsiste um habitat adequado suficiente para que a espécie possa atingir o estatuto de totalmente recuperada dentro de 100 anos, assumindo que os esforços de conservação continuam com a máxima eficácia”, explicou a UICN.

Ainda em 2021, o lince ibérico era considerado o felino mais ameaçado do Mundo. Contudo, pela primeira vez, em duas décadas, a população de lince ibérico excedia, então, os mil exemplares. Segundo dados do governo espanhol, em toda a Península Ibérica, havia mais de 1100 destes felinos em estado selvagem, o número mais elevado desde que há monitorização.

O Homem continua a ser a principal ameaça. “A principal causa de morte, certamente no ambiente natural da vida selvagem, está relacionada com atividades humanas, mortes na estrada, caça furtiva, encontros indesejados. Assim, quanto mais longe estiver e menos contacto direto a vida selvagem tiver com os humanos, compreendemos que será melhor”, afirmava Antonio Rivas, diretor do Centro de Reprodução de Lince Ibérico de El Acebuche.

No entanto, existem outros perigos que ameaçam a sobrevivência dos Linces Ibéricos. São várias as doenças que podem afetar a saúde destes felinos inclusive a que, havia mais de um ano, ameaçava também a sobrevivência humana, a infeção pelo novo coronavírus. A veterinária no Centro de Reprodução de Lince Ibérico de El Acebuche, Yasmin El Bouyafrouri, explicava que “os felinos são, de facto, sensíveis ao SARS-CoV-2, que foi detetado em gatos e em grandes felinos, em alguns zoológicos. Não têm sintomas importantes. Os que morreram, tendo sido detetado o SARS-CoV-2, tinham outra patologia e foi essa que lhes causou a morte”.

O Centro de Cria Lince El Acebuche, no Parque Nacional de Doñana, na Andaluzia, é um dos cinco centros de reprodução de Linces Ibéricos criados, no início do século, para aumentar o número destes felinos na natureza. Quatro estão em Espanha e um em Silves, no Sul de Portugal.

Os esforços dos dois países têm dado frutos. São várias as crias de lince ibérico que estão a ser treinadas nestes centros, para serem introduzidas Na natureza.

Apesar das boas notícias, há ainda muito trabalho a fazer para recuperar uma população que ultrapassava os cem mil exemplares, no início do século XIX. O Lince Ibérico é considerado o felino mais ameaçado do Mundo e foi classificado como “criticamente em perigo” pela UICN.

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Há quatro anos, nasceu em cativeiro, foi libertado há três, no Vale do Guadiana, e andava pelos arredores de Barcelona, num turismo selvagem, com a coleira identificativa (avariada). Em maio, um coelho serviu de isco e assistiu, heroico e ileso, à captura do lince pelas autoridades. A partir de então, o Lítio, integrado num programa de conservação de animais em risco de extinção, conhece o lado selvagem da Andaluzia. Parece um gato um pouco maior, com coleira, mas um olhar atento não deixa passar os caraterísticos tufos de pelo negro em forma de pincel nas orelhas. Porém, é um lince ibérico e não responde pelo nome de Lítio, porque é um animal selvagem. Foi o nome que lhe deram, ao nascer em cativeiro. Na Catalunha não se via um lince ibérico desde o princípio do século XX, mas Lítio sabe que a Ibéria é Portugal e a Espanha. 

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Dantes considerado subespécie do lince euroasiático (Lynx lynx), o lince ibérico é classificado como espécie separada. Ambas as espécies percorriam a Europa central no período Pleistoceno, separadas só por escolhas de habitat. Crê-se que o lince ibérico (nome científico Lynx pardinus), tal como os outros linces, evoluiu a partir do Lynx issiodorensis.

A linhagem dos linces divergiu da dos outros felídeos há cerca de 7,2 milhões de anos. O género Lynx começou a diversificar-se há cerca de 3,24 milhões de anos, e o lince ibérico separou-se do lince euroasiático há cerca de 1,18 milhão de anos.

O isolamento do ancestral comum entre as espécies, no Sul da Península Ibérica, em refúgios, na Era do Gelo, culminou no surgimento do lince ibérico, resultando na diminuição do porte desta espécie. Tal diminuição é observada no registo fóssil e, provavelmente, deu-se pela especialização do felídeo em caçar coelhos.

Também conhecido como libernelobo-cervalgato-fantasmagato-cerval e gato-lince, é uma espécie de mamífero da família Felidae e do género Lynx. Apresenta muitas das caraterísticas típicas dos linces, como orelhas peludas, pernas longas, cauda curta e colar de pelo, que se assemelha a barba. Ao invés dos parentes mais próximos, tem cor castanho-amarelada com manchas. O comprimento da cabeça e do corpo é de 85 a 110 centímetros, com a pequena cauda a acrescentar o comprimento adicional de 12 a 30 centímetros. O macho é maior do que a fêmea e podem pesar até cerca de 27 quilogramas. A longevidade máxima na Natureza é de 13 anos.

Endémicos da Península Ibérica, são especialistas na caça de coelhos, que representam a maioria da sua dieta, com grande dificuldade em se adaptarem a outra alimentação. O macho necessita de um coelho por dia; a fêmea grávida come três coelhos por dia. A queda das populações da sua principal fonte de alimento, em resultado de doenças, contribuiu para o declínio do felino, afetado pela perda de matagal, seu habitat principal, pelo desenvolvimento humano, incluindo mudanças no uso do solo (como o monocultivo de árvores) e pela construção de barragens e de estradas. O atropelamento com veículos é a principal causa de morte não natural.

O lince ibérico foi espécie em perigo crítico, até 2015, e, até 2024, espécie em perigo. Ainda assim, é a espécie de felino mais ameaçada no Mundo e o carnívoro em maior perigo na Europa. Se o lince ibérico desaparecesse, seria a primeira espécie de felino a ficar extinta desde os tempos pré-históricos. Em 2024, a população aumentou para 2021 espécimes, levando à reclassificação de espécie em perigo para espécie vulnerável.

Este felino prefere um ambiente heterogéneo de pastagem aberto, com arbustos densos como o medronheiro, a aroeira e o zimbro, ou árvores, como a azinheira e o sobreiro. Está, em grande parte, restrito a áreas montanhosas, com alguns grupos encontrados na floresta de várzea ou em densos matagais maquis.

É caçador especializado e apresenta adaptações que lhe melhoram a capacidade de capturar e de matar pequenas presas. Tem crânio encurtado, que maximiza a força da mordidela dos caninos. Os focinhos são mais estreitos e têm mandíbulas mais longas e caninos menores do que animais que se alimentam de presas maiores. Como os demais felídeos, tem pupilas verticais e visão excelente, quando há pouca visibilidade. Tem reflexos apurados: os bigodes fornecem dados táteis detalhados e as orelhas propiciam excelente audição. A maioria é silenciosa, exceto quando se sente a ameaça ou quando os juvenis se encontram em perigo.

Também caça outros mamíferos (sobretudo roedores e insetívoros), aves, répteis e anfíbios, mais ativamente no crepúsculo e à noite. Por vezes, caça jovens veados, gamos, corças, muflões e patos. Compete com a raposa vermelha, o sacarrabos (Herpestes ichneumon) e o gato-bravo. Caça sozinho: persegue a presa ou deita-se à espera por detrás de um arbusto ou de uma pedra, até a presa estar suficientemente perto, para poder atacar com poucos passos. Marca o seu território, que depende da comida disponível, com urina, com excrementos deixados pela vegetação e com marcas de arranhões nas cascas de árvores.

O cio ocorre de janeiro a julho, predominantemente em janeiro-fevereiro (a reprodução é anual). Na época de acasalamento a fêmea deixa o seu território à procura de um macho. A gestação dura cerca de dois meses; as crias nascem entre março e setembro, com o pico de nascimentos em março e abril. Uma ninhada consiste em duas ou três crias (raramente uma, quatro ou cinco). As crias pesam entre 200 e 250 gramas, tornam-se independentes dos sete aos 10 meses, mas permanecem com a mãe até aos 20 meses. Entre os oito e os 23 meses, os machos dispersam-se (as fêmeas dispersam-se mais tarde). 

No estado selvagem, machos e fêmeas atingem a maturidade sexual com um ano de idade, embora raramente se reproduzam sem que um território fique vago e tenha qualidade suficiente.

A dificuldade em encontrar parceiros leva à endogamia, de que resultam menos crias e maior taxa de morte não traumática, bem como menor qualidade de sémen e maior taxa de infertilidade entre os machos, dificultando os esforços para aumentar a aptidão da espécie.

A preservação do lince e do seu habitat impõe a sua proteção e a proibição da sua caça.

2024.06.24 – Louro de Carvalho

domingo, 23 de junho de 2024

Inadmissível a utilização e a divulgação de escutas sem relevância penal

 

escuta telefónica é um meio de obtenção de prova previsto e regulado nos artigos 187.º a 190.º do Código do Processo Penal (CPP) e consiste na interceção e na gravação de conversações ou comunicações telefónicas, nos estritos casos tipificados no CPP, autorizadas por despacho fundamentado de um juiz e realizadas só durante o inquérito e “se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter” (cf. artigo 187, n.º 1).

Exceto no caso previsto no n.º 7 do artigo 187.º, “o juiz determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo: a) que disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo anterior [suspeito ou arguido, pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido, e
vítima de crime]; b) que abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou cuja divulgação possa afetar gravemente direitos, liberdades e garantias” (cf. artigo 188.º, n.º 6).

A leitura dos mencionados artigos permite concluir que as escutas só podem ser guardadas (que não necessariamente publicadas) e utilizadas, a título excecional, se isso for estritamente necessário para o apuramento da verdade. Isso foi, reiterado por José Cunha Rodrigues, antigo procurador-geral da República. A este respeito, Luís António Noronha do Nascimento, antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), considerou que as escutas que não tenham relevância criminal devem ser imediatamente destruídas.

E, por mais ensarilhada que fique a leitura dos artigos supramencionados do CPP pelo acervo de ditames de orientações do Ministério Público (MP) ou das várias jurisprudências (obrigatórias ou não) dos tribunais superiores, incluindo o Tribunal Constitucional (TC), nada invalida a índole excecional deste meio de prova e a extrema cautela na sua utilização (veja-se, a este propósito: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=199&tabela=leis).

Sendo assim, é indesculpável que o MP, em atitude reiterada, sob o silêncio ou com a cobertura da Procuradoria-Geral da República (PGR), divulgue, em circunstâncias de melindre político e social, conteúdos, ainda que genéricos, de escutas, de processos de inquérito a propósito de suspeitas que, mais tarde, se vem a descobrir terem pouca ou nenhuma consistência, mas que funcionam bem, ao serviço do espetáculo de Justiça demolidor, provavelmente inserido numa agenda político-partidária da parte de quem não a deveria ter.     

Todos nos lembramos de como o parágrafo encavalitado em comunicado da PGR, levou António Costa a não dispor de condições políticas (segundo os diversos observadores) para continuar como primeiro-ministro (PM), ficando os verdadeiros responsáveis “políticos” (MP, PGR ou outrem) pelo colapso da maioria absoluta, resultante das eleições de 2022, a assobiar para o lado, alegando que foi o PM que preferiu ir embora. E, como os eleitores, em janeiro de 2022, em vez de terem votado no Partido Socialista, na interpretação do Presidente da República (PR), votaram em António Costa, houve eleições, que a Aliança Democrática (AD) ganhou por uma unha negra.

Em seguida, buscas espetaculares na Madeira levaram à rutura do acordo parlamentar que segurava o governo de Miguel Albuquerque (constituído arguido), o que não impediu que, após novas eleições regionais, viesse a recuperar a governação, embora em condições mais precárias.

No pico da campanha para as eleições para o Parlamento Europeu (PE), o MP procedeu a buscas na casa da cabeça de lista do PS, o azou declarações públicas de repúdio da sua parte (frisando não ter cometido qualquer ilegalidade e nada ter a ver com o caso das gémeas), de partidários seus e de muitos observadores. Na mesma ocasião, o ex-secretário de Estado da Saúde foi constituído arguido no processo das gémeas luso-brasileiras, o que foi visto como interferência do MP no momento eleitoral. São coincidências em excesso, a que assiste, impávida e serena, a PGR, não dando explicação. Se eu não cresse na Justiça, pensaria que tudo vinha comandado superiormente.                 

Entretanto, nos últimos dias, alguém (do MP ou das polícias de investigação criminal) passou, para alguma comunicação social, escutas telefónicas de conversas entre António Costa e João Galamba, sobre matérias do foro pessoal, governativo e político, mas sem relevância criminal, o que levantou um clamor generalizado, ao nível dos princípios. Mais uma vez se assistiu ao silêncio ensurdecedor da PGR. Por isso, os subscritores do manifesto pela reforma da Justiça propõem um processo de escolha do procurador-geral da República, aberto ao escrutínio público.

Por mais críticas que teçamos, com razão, ao silêncio da atual procuradora-geral da República, à sua atuação e à do MP, que superiormente lhe compete dirigir, não me parece que seja razoável a adoção de uma medida que extravase a norma constitucional, segundo a qual o procurador-geral da República é nomeado pelo Presidente da República (PR) sob proposta do governo.

Porém, entendo que, perante abusos do MP e fundada suspeita de intromissão do MP na vida privada dos cidadãos, mesmo dos titulares de cargos públicos ou políticos, tanto o PR, como o governo se devem pronunciar publicamente. E o procurador-geral da República deve ser instado a ir à Assembleia da República (AR) dar explicações, como, periodicamente, lhe deve dar contas da sua atividade, obviamente sem descer ao conteúdo de casos concretos.

É de recordar que as ditas escutas sem relevância criminal, postas na praça pública nos últimos dias funcionam como areia na engrenagem da escolha dos líderes europeus, sendo sério candidato o ex-PM de Portugal. Se a publicação fosse comandada superiormente, seria caso para concluir (longe de mim pensar tal coisa), que as reiteradas asserções do PR sobre a competência de António Costa para presidir ao Conselho Europeu ou as solenes declarações do PM na noite eleitoral do passado dia 9 de junho, não passavam de puro ato de cinismo político.

Aliás, Paulo Rangel, que tem larga experiência na Europa, advertiu que a escolha dos líderes europeus é complexa e que falar demasiado sobre isso poderia surtir o efeito não desejado.                  

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Pensava que a reforma da Justiça, no atinente ao MP, pudesse ter de passar pela revisão do CPP, mas um artigo de António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, publicado no Diário de Notícias (DN) online, a 23 de junho, sustenta que o modelo do MP, como foi concebido na Constituição (CRP), na primeira Lei Orgânica e no mais recente Estatuto do Ministério Público (EMP), não é aceite “pelas elites políticas e forenses que, alternadamente, atuam no poder e se empenham profissionalmente na jurisdição criminal”. À mesma recusa juntam-se os muitos “lesados do MP”, “com variadas e mais ou menos reais ou inventadas razões de queixa”.

Para tal, contribuíram alguns dos seus membros que agem “nas margens incertas e arriscadas das interpretações doutrinárias e jurisprudenciais mais ousadas e menos no respeito seguro pelos pouco flexíveis direitos fundamentais, que lhes cumpre, especialmente, defender”. Também, “pela espetacularidade das suas intervenções”, que não filtraram, refletem a imagem mediática do MP. “Sendo uma minoria, cujos procedimentos, de inspiração mais policial do que judicial, grande parte de procuradores não partilha”, é ela que faz a imagem mediática do MP.

Segundo Cluny, após o que se passou, com a divulgação de importantes documentos processuais – assumida como da responsabilidade do MP – pouco resta da indispensável legitimidade comunitária, para que esta magistratura continue, indiferente ao sucedido, a exercer as funções que a CRP e a lei lhe cometem. Assim, terão perdido oportunidade algumas sugestões de reforma do sistema feitas por um advogado que tem acompanhado o manifesto dos 50.

Retomando ideias ensaiadas, com êxito, noutros lugares e divulgadas em textos de procuradores mais velhos e informados – sem os citar, para não comprometer a bondade e legitimidade de tais propostas, pela revelação da origem –, propunha-se salvar e reformar o que deve ser corrigido.

Os últimos acontecimentos, sendo ou não da autoria do MP – vinca António Cluny – desgastaram gravemente a autoridade social e moral que permite a esta magistratura continuar a exercer as funções que a CRP, o EMP e o Direito Europeu lhe atribuíram.

Confirmado o desvanecimento da legitimidade institucional e popular, que nenhum órgão do poder quis sustentar, cabe aos deputados encontrar, na AR, outra solução e, se possível, outro titular mais fiável, para assegurar a direção e o exercício da ação penal. Porém, deve respeitar a independência funcional que a CRP e o Direito europeu exigem do MP e exigirão, no futuro, de quem passar a exercer tais funções. Contudo, a CRP prevê a “Instrução” atribuída aos juízes. Portanto, só pode ser essa a solução político-constitucional do problema. E ver-se-á o que mudará e como se comportarão os que hoje se indignam pela “conspiração” do MP. Com efeito, a decisão sobre as medidas mais graves e limitativas das liberdades é da competência do juiz, não do MP.

Porém, uma é a responsabilidade do MP pela crise; outra é a de quem tudo mistura para, como um todo, “desautorizar publicamente tal órgão constitucional”, acusando os procuradores, ora de insubordinados, por não respeitarem a hierarquia, ora de agirem em conjunto e com fins perversos.

É, pois, na capacidade dos deputados da AR para encontrarem soluções novas e capazes de resguardar os valores que a CRP e o atual Direito penal europeu quiseram salvaguardar que reside a esperança de um povo que “não consentirá, de novo, uma tutela política, explícita ou implícita, sobre o exercício da ação penal” (a do Estado Novo), que deve ser regida pelo princípio da legalidade, para garantir, de verdade, a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Para Cluny, a responsabilidade negativa dos que não acautelaram os direitos à sua guarda e a dos que se aproveitaram politicamente de tais erros conduziu a esta hecatombe institucional. E “os procuradores que, consciente ou inconscientemente, para isto contribuíram, com indesculpável ligeireza de ânimo ou, pior ainda, com a pura inconsciência das crianças travessas, não podem, pois, rejubilar-se com os resultados obtidos”.

E o magistrado jubilado adverte que “o Mundo é muito mais complicado e perigoso do que se deixa ver nos jogos de computador e nos filmes americanos de ação policial e espionagem”, pelo que nada pior do que, “desleixadamente, dotar os arrivistas, de qualquer ordem e origem, de uma doutrina, de um dogma e de um pau”.

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Também o constitucionalista Vital Moreira anota que, novamente, o MP cedeu à imprensa amiga escutas colhidas de processo em segredo de justiça, agora, de conversas sem relevância penal – entre o ex-PM e o ex-ministro das Infraestruturas, sobre questões de governo – que nem deveriam ter sido guardadas. É mais um caso de instrumentalização da investigação para efeitos políticos, em que o MP “se tornou useiro e vezeiro”. E, sem qualquer explicação da PGR, foi noticiada a abertura de inquérito interno à “fuga” de informação.

Porém, segundo Vital Moreira, ainda que o inquérito viesse a dar em algo – improvável, dados os antecedentes –, está, de novo, consumada a interferência do MP na ação política, sem que alguém assuma a responsabilidade institucional.

Um dos crimes que o MP imputa aos políticos é o de prevaricação, a qual, nos termos da lei penal, consiste na conduta de titular de cargo político, à margem do direito, para favorecer ou prejudicar alguém. Ora, é o MP que preenche este tipo de crime, ao instrumentalizar a investigação penal, desprezando a presunção de inocência e os princípios da necessidade e da proporcionalidade nas escutas, nas buscas domiciliárias e noutras medidas lesivas da privacidade, e violando o segredo de justiça) para perseguição política, envolvendo-se a magistratura constitucionalmente chamada a exercer a ação penal na atividade delituosa que, tantas vezes, imputa, infundadamente, às vítimas do seu abuso de poder. Assim se degrada, por dentro, o Estado de direito, pilar básico da democracia constitucional. 

Não sei se é preciso alterar o quadro legislativo ou se é de apostar na moralização do MP, elogiando as boas práticas e penalizando quem prevarica. Em democracia, há sempre solução.

 2024.06.23 – Louro de Carvalho

Ex-núncio apostólico nos EUA responde em processo por cisma

 

Foi publicada, em alguns órgãos de comunicação social, cópia de um decreto do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), da Santa Sé, a convocar o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos da América (EUA) para comparecer às 15h30 do dia 20 de junho (ou, em alternativa, se fazer representar), no Palácio do Santo Ofício, para ser ouvido num processo penal extrajudicial por suspeita de cisma.

De acordo com a conta social do convocado no X, que reproduz uma cópia de um decreto atribuído ao DDF, remoto sucessor do Santo Ofício, Viganò, que serviu como núncio apostólico em Washington, D.C., de 2011 a 2016, deveria comparecer (ou nomear um defensor) para “tomar conhecimento das acusações e das provas relativas ao crime de cisma do que é acusado”, materializado, nomeadamente em declarações públicas que evidenciam a negação dos elementos necessários para manter a comunhão com a Igreja Católica, como a negação da legitimidade do Papa Francisco, a rutura da comunhão com ele e a rejeição do Concílio Vaticano II. O documento publicado no X afirma que, se o dignitário eclesiástico não comparecer ou não apresentar defesa por escrito, até 28 de junho, “será julgado em sua ausência”.

Como é de recordar, Viganò, em setembro de 2018, foi o protagonista da clamorosa carta em que pedia a renúncia do Papa, devido ao suposto conhecimento, pelo Papa, do caso do cardeal norte-americano Theodore McCarrick, que terá abusado de seminaristas e de outros adolescentes. Esse caso, que foi totalmente esclarecido pela Santa Sé, com a publicação de um meticuloso relatório, em novembro de 2020, que desmente o ex-núncio em todos os aspetos, não é o objeto do documento publicado na conta X. Em vez disso, Viganò seria acusado, de acordo com a sua conta, de não reconhecer a legitimidade do Pontífice, nem a do último Concílio. O DDF não comentou, de nenhum modo, o anúncio publicado na comunicação social.

“Fui convocado para o Palácio do Santo Ofício no dia 20 de junho, pessoalmente ou representado por um canonista”, escreveu o arcebispo no X. “Presumo que a sentença já esteja preparada, visto que se trata de um processo extrajudicial”.

“Acredito que a própria redação das acusações confirma as teses que tenho repetidamente enunciado nas minhas intervenções. Não é por contingência que a arguição contra mim diz reverência ao questionamento da legitimidade de Jorge Mario Bergoglio e ao repúdio do Vaticano II”, explica o prelado no X, ao comunicar a decisão do velho e relho Santo Ofício.

O arcebispo não tem qualquer intenção de se submeter a “uma farsa” na qual aqueles que deveriam julgá-lo, de forma imparcial, para defender a ortodoxia católica são os que ele acusa de heresia, de traição e de abuso de poder.   

Ao publicar o decreto, o perfil social com o nome de Viganò atribui estas palavras ao ex-núncio: “Considero uma honra as acusações contra mim”. A seguir, define o Concílio Vaticano II um “cancro ideológico, teológico, moral e litúrgico”, e a Igreja Sinodal “uma metástase”.

O secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, comentou o caso: “O arcebispo Viganò tomou algumas atitudes e alguns gestos pelos quais deve responder”, disse o purpurado, no âmbito de uma conferência na Pontifícia Universidade Urbaniana, explicando que ao ex-núncio foi dada a possibilidade de se defender.

No âmbito pessoal, recordando, a pedido dos jornalistas, os tempos em que compartilharam o trabalho, o cardeal declarou: “Sinto muito, porque sempre o apreciei como um grande trabalhador, muito fiel à Santa Sé, que, em certo sentido, também era um exemplo. Quando foi núncio apostólico, trabalhou bem.” O que aconteceu”, concluiu o secretário de Estado, “eu não sei”.

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Viganò ganhou as manchetes em 2018 com a alegação, seguida de várias cartas, de que importantes bispos tinham sido cúmplices no encobrimento de supostos abusos sexuais cometidos pelo ex-cardeal Theodore McCarrick. E pediu ao Papa Francisco que renunciasse.

Em artigo publicado por Settimna News, a 15 de janeiro de 2024, Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, desenvolve o tema.

Carlo Maria Viganò, ex-secretário do governo da Cidade-Estado do Vaticano, ex-núncio em Washington e ex-moralizador, na sua busca pela extrema intransigência, excede um tríplice limite.

Acusa o Papa de ter aceitado a posição apenas exteriormente, escondendo a intenção de prejudicar a Igreja, o que pode ser entendido “pelo comportamento de Bergoglio, ostensivamente anticatólico e heterogéneo, face à essência do papado, não havendo nenhuma ação deste homem que não pareça, claramente, uma rutura com a prática e o magistério da Igreja.

A segunda rutura é aceitar ser reordenado bispo por Richard Williamson, o bispo mais radical (e decrépito) consagrado por Lucien Lefebre, expulso da Fraternidade São Pio X.

A terceira rutura é fundar, em Viterbo, o Collegium Traditionis, seminário e albergue para padres e religiosos tradicionalistas, alegando: “Na Igreja, há centenas, milhares de clérigos, sacerdotes, religiosos e leigos a quem é negado, por uma autoridade tirânica e corrupta, o direito sacrossanto de serem fiéis a Nosso Senhor, como o têm sido os nossos irmãos na fé há dois mil anos.”

Sites e publicações de tradicionalistas católicos como Corrispondenza Romana e La comsola falam diária e extensivamente sobre estas coisas.

Multiplicam-se as acusações contra o Papa e torna-se mais clara a posição de Viganò. Não é um “sedevacantista” (embora diga que já não existe um papa legítimo), não nega a validade da renúncia de Bento XVI e aceita a eleição de Francisco como legítima. Porém, nega o sentido positivo do seu ministério, contaminado desde o início pela intenção de prejudicar a Igreja. É um verdadeiro papa, mas como, “com coerência e premeditação (realiza) o oposto do que se espera do vigário de Cristo e sucessor do príncipe dos apóstolos, por “defeito de consenso”, invalida toda a sua ação pastoral e distorce o seu sinal.

Como salienta R. de Mattei, não se trata de tese nova. Já o padre Guérand de Lauriers (1898-1988), primeiro, seguidor de Lefebvre e, depois, fundador de outro ramo intransigente, o instituto Mater Boni Consilii, considerou São Paulo VI e os seus sucessores como tal, em contradição com a tarefa do papado – tese que, para ser verdadeira, deveria demonstrar que todas as decisões individuais do Papa estão em conflito com o Evangelho e com o bem da Igreja.

A bússola diária concentra-se na reordenação, a 12 de janeiro. A informação circulou, há alguns meses, e o interessado não a negou. A reconsagração episcopal de Carlo Maria Viganòsub condicione, significa que o antigo núncio apostólico nos EUA estava convencido da tese (primeiro, apoiada e, depois, rejeitada por Lefebvre) de que são de validade ‘duvidosa’ todos os sacramentos ministrados após a reforma litúrgica subsequente ao Concílio Vaticano II, ou de que a sua validade não seria certa, devido aos desvios doutrinários cometidos pelo próprio concílio.

A reconsagração desencadeia a excomunhão latae sententiae (quer dizer que não é punição que a autoridade decide imputar ao fiel, mas é a própria autoexclusão do delinquente do seio da comunidade através do seu ato). É uma operação que reforça a paranoia de Viganò pela conspiração global de um estado profundo e de uma “Igreja profunda” paralela, que perseguem o plano obscuro para tirar a liberdade dos povos, homens e instituições.

Os únicos resistentes seriam Donald Trump e Vladimir Putin. Com efeito, o ex-núncio nos EUA é próximo dos círculos mais conservadores do catolicismo no exterior. Além de criticar o Papa, chegando ao ponto de pedir a sua exoneração, apoia, de forma persuasiva, posições antivacinas, anticientistas, antimigrantes antigay. E comentou: “Nenhum católico digno desse nome pode estar em confraria com ele Igreja bergogliana porque atua em evidente descontinuidade e rutura com todos os papas da História e com a Igreja de Cristo” sublinhou Viganò, convidando-nos a rezar por “aqueles que são perseguidos por culpa da sua fé”.

Em virtude da sua reconsagração episcopal, é natural que Viganò seja, com razão, acusado de ordenação ilícita de alguns sacerdotes e avolumam-se os rumores “sobre uma consagração episcopal que já ocorreu”.

O Collegium Traditionalis será inaugurado na ermida de Palanzana, em Viterbo. Apoiado pela fundação Exsurge Domine, fundada pelo próprio Viganò, pretende criar um presbitério próprio, para garantir o futuro dos seus cargos eclesiais. Já são quatro clérigos da Familia Christi, fraternidade sacerdotal fundada, à época, por Luigi Negri e fechada por autoridade do seu sucessor em Ferrara, Gian Carlo Perego, por deficiências graves. E as religiosas de Pienza que se opuseram à visita canónica do Dicastério para a Vida Consagrada também deveriam mudar-se para lá. “São loucos furiosos”, confidenciou um funcionário do departamento.

Os personalismos cismáticos contrastam a Fraternidade São Pio X. Porém, um certo espaço é encontrado por todos, aberto pelo impulso conservador que também percorre o corpo eclesial. As ordenações episcopais são registadas para todos, exceto para a Fraternidade São Pio X.

O frenesim das fações intransigentes e a multiplicação das ordenações episcopais turvam as águas dos que invocam o punho duro da autoridade, sem sequer saberem respeitar a sua própria.

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“A Igreja de Bergoglio não é a Igreja Católica”, sustenta o ex-núncio apostólico em Washington, que acusou Francisco de ser um “usurpador” e um “servo de Satanás”, por causa da permissão para bênçãos a casais homoafetivos. Em contrapartida, o arcebispo já foi repreendido pelo Vaticano por espalhar notícias falsas sobre a pandemia de covid-19.    Apelidado de “exterminador de papas”, trabalhou, durante mais de 10 anos, na Cúria Romana e foi afastado da secretaria do Governatorato da Cidade-Estado do Vaticano, em 2011, após cultivar desavenças na Igreja. Também é um dos pivôs do escândalo “Vatileaks”, que vazou documentos sigilosos do pontificado de Bento XVI, que viria a culminar na renúncia de Joseph Ratzinger, em 2013.   

Em 2016, o arcebispo italiano foi removido por Francisco da Nunciatura Apostólica em Washington e forçado a aposentar-se.   

Em seus anos nos EUA, Viganò estreitou laços com o clero ultraconservador americano, que, no entanto, se calou sobre a acusação de cisma. Por outro lado, o ator Jim Caviezel, que interpretou Jesus no filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson, pediu “orações” por Viganò, um “cruzado em defesa da verdade”.

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As orações são necessárias e bem-vindas, mas as acusações ao Papado e à Igreja, bem como as atitudes cismáticas, com ideias e comportamentos de hereges são de repudiar.  

2024.06.23 – Louro de Carvalho