sexta-feira, 4 de abril de 2025

Cimeira inédita fecha acordo de parceria entre a UE e a Ásia Central

 

A 4 de abril, no meio das tensões globais que se seguiram aos anúncios de Donald Trump sobre os direitos aduaneiros, União Europeia (UE), assinalando 30 anos de relações diplomáticas, anunciou uma nova parceria estratégica com os países da Ásia Central, no final de uma primeira cimeira UE-Ásia Central, na cidade uzbeque de Samarcanda.

Na verdade, líderes da UE e da Ásia Central reuniram-se, nos dias 3 e 4, em Samarcanda, no Uzbequistão, para discutirem o fortalecimento da cooperação, da estabilidade regional e dos laços económicos e políticos mais profundos, à medida que a região se volta para a Europa, à luz das novas dinâmicas geopolíticas. Após anos de reformas e de assistência europeia, os países da Ásia Central – o Cazaquistão, o Quirguizistão, o Tajiquistão, o Turquemenistão e o Uzbequistão – iniciam a viragem estratégica para a Europa, enquanto a UE procura parceiros fiáveis nas atuais e rápidas mudanças geopolíticas.

O presidente do Uzbequistão, Shavkat Mirziyoyev, anfitrião da inédita cimeira, classificou-a de “verdadeiramente histórica” e de “oportunidade histórica” para a região.

A cimeira teve lugar num clima geopolítico e económico turbulento, um dia depois de o presidente dos Estados Unidos da América (EUA) ter anunciado uma série de tarifas comerciais globais sobre vários países, incluindo aliados como a UE e o Reino Unido, abalando os mercados e atraindo críticas dos líderes mundiais.

Ao assinalar os 30 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois blocos, o presidente do Conselho Europeu sublinhou a importância da cooperação multilateral. “No contexto internacional atual, a importância de uma ordem multilateral funcional e baseada em regras não pode ser subestimada. A nossa reunião de hoje incentiva, ainda mais, a cooperação entre a União Europeia e a Ásia Central nas instâncias multilaterais, reforçando o nosso empenhamento comum, num mundo pacífico e numa ordem global próspera”, vincou António Costa, que abordou, igualmente, os desafios comuns em matéria de segurança, chamando a atenção para as múltiplas ameaças, nomeadamente, o terrorismo, o extremismo violento e o tráfico de droga, que podem alastrar à Ásia Central e à Europa.

Já a presidente da Comissão Europeia relevou os potenciais benefícios de laços mais fortes: “A vossa localização estratégica pode abrir rotas comerciais e fluxos de investimento, a nível mundial. Estes novos investimentos reforçarão a soberania. Reforçarão as vossas economias. E, mais importante ainda, criarão novas amizades”, sustentou Ursula von der Leyen.

A presidente da Comissão Europeia disse acreditar que a parceria levará a novas oportunidades em setores como a energia, o turismo, o comércio e os transportes, ao anunciar o pacote de investimento de 12 mil milhões de euros na região: “Este pacote reunirá investimentos da União Europeia e dos estados-membros e lançará uma nova série de projetos para a Ásia Central. Este é, verdadeiramente, o início de uma nova era na nossa antiga amizade”, afirmou.

O novo pacote financiará projetos no domínio dos transportes (três mil milhões de euros), das matérias-primas essenciais (2,5 mil milhões de euros), da água, da energia e do clima (6,4 mil milhões de euros), bem como da conetividade digital, alguns dos quais foram autorizados e atribuídos pelo Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD).

O acesso a energias limpas e a terras raras é fundamental para a UE, que procura alcançar a neutralidade climática, até 2050, e aumentar a sua autonomia em setores estratégicos. Contudo, parte considerável da extração, da transformação e da reciclagem, a nível mundial, de matérias-primas críticas, como o lítio, indispensáveis ao desenvolvimento de energias renováveis, artigos de uso diário e sistemas de defesa, é controlada pela China, da qual a UE quer desligar-se, devido às suas práticas comerciais e de política externa agressivas e protecionistas.

A Ásia Central possui grandes jazidas, incluindo 38,6% do minério de manganês do Mundo, 30,07% de crómio, 20% de chumbo, 12,6% de zinco e 8,7% de titânio. “Estas matérias-primas são a força vital da futura economia mundial. No entanto, são também um ponto de encontro para os atores mundiais. Alguns estão apenas interessados em explorar e [em] extrair”, considerou Ursula von der Leyen aos líderes da Ásia Central, acrescentando: “A oferta da Europa é diferente. Também queremos ser vossos parceiros no desenvolvimento das vossas indústrias locais. O valor acrescentado tem de ser local. O nosso historial fala por si.”

Entretanto, a proteção da “ordem multilateral baseada em regras” foi o tema central do discurso de António Costa. “Temos de trabalhar em conjunto, não só para defender o multilateralismo, mas também para o reformar, de forma a torná-lo mais eficaz, inclusivo e adaptado às realidades atuais”, sustentou o presidente do Conselho Europeu, sublinhando que “as ameaças à segurança são agora de natureza transnacional” e apelando a uma maior cooperação, a nível bilateral, regional e multilateral, incluindo em relação à Rússia, que está a violar a Carta das Nações Unidas e o direito internacional com a invasão em grande escala da Ucrânia.

Os cinco países da Ásia Central abstiveram-se de votar na Organização das Nações Unidas (ONU), quanto à agressão da Rússia contra o seu vizinho, optando pela neutralidade, mas beneficiaram da reexportação para a Rússia de produtos ocidentais sancionados.

A UE, que impôs 16 pacotes de sanções contra a Rússia, nomeou um enviado especial para a questão do contorno das sanções, que se deslocou à região em numerosas ocasiões, nos últimos três anos. E altos funcionários da UE afirmaram, sob anonimato, antes da cimeira, que os países da Ásia Central têm demonstrado vontade de cooperar, mas que gostariam de ver mais, sobretudo tendo em conta as conversações entre os EUA e a Rússia, das quais a Europa tem sido afastada, provocando receio de que os seus interesses não sejam protegidos. No entanto, a mesma fonte afirmou que a realização de esforços adicionais sobre o tema é “um elemento importante para fazer avançar as nossas relações”, mas não condição prévia.

António Costa referiu, veladamente, a evasão das sanções, avisando que a Europa continuará a aumentar a pressão sobre a Rússia, sempre que necessário, e que a “cooperação da Ásia Central é inestimável”. “Contamos com os vossos esforços contínuos, a este respeito”, vincou.

O presidente Shavkat Mirziyoyev afirmou que o seu país, o Uzbequistão, “partilha o compromisso da parte europeia com os princípios e normas do direito internacional”, “saúda e apoia, plenamente o processo de negociação para a resolução pacífica da situação na Ucrânia”.

Na cimeira, os líderes concordaram em realizar um Fórum de Investidores, no final do ano, para garantir mais investimentos, nomeadamente, para o Corredor de Transporte Transcaspiano, que reduzirá, drasticamente, o tempo necessário para exportar mercadorias entre as duas regiões, contornando a Rússia, bem como estabelecer um escritório local do BERD no Uzbequistão.

Apoiaram, igualmente, a ideia de realizar cimeiras semelhantes, de dois em dois anos.

***

Como esperado, diversificar as trocas comerciais, afastando-se da Rússia e da China, e reforçar as relações diplomáticas foram os principais pontos da agenda da cimeira, tendo ficado relegadas, para segundo plano, as questões dos direitos humanos, embora tenham sido abordadas, assim como o facto de a Rússia contornar as sanções que lhe foram aplicadas.

A presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu deslocaram-se a Samarcanda, na esperança de aprofundar as parcerias com a região rica em recursos naturais, no domínio da energia e das matérias-primas essenciais. Os dirigentes do bloco da Ásia Central esperam, entretanto, assegurar investimentos nas suas indústrias e infraestruturas.

A agenda incluiu a proteção do multilateralismo, os desafios de segurança comuns e regionais, a cooperação no domínio das energias limpas, o turismo, os programas interpessoais e a Ucrânia.

“O presidente Costa tem sido muito claro, desde o início do seu mandato, em como acredita que, neste mundo multipolar, a UE precisa realmente de se reconetar com os seus parceiros globais”, disse um alto funcionário da UE, sob anonimato, antes da cimeira, referindo que “a Ásia Central é um dos elementos desta abordagem”.

O motor da reunião de alto nível foi o objetivo, partilhado por ambas as partes, de se afastarem da Rússia e da China, dois países que têm sido, por razões históricas e geográficas, grandes compradores dos produtos da Ásia Central, enquanto a sua sombra paira sobre a segurança energética e tecnológica da Europa. A invasão em grande escala e não provocada da Ucrânia por parte da Rússia, juntamente com a abordagem transacional de Pequim e, agora, de Washington ao comércio e à política externa, parece ter silenciado a relutância que existe, em relação ao seu envolvimento mútuo.

Para a UE, não se trata de desafiar, seriamente, a China e a Rússia, mas de oferecer alternativas em alguns setores e de competir noutros, especialmente, no que diz respeito às matérias-primas e à conetividade. Desde o início da guerra, a UE tem vindo a libertar-se, significativamente, dos combustíveis fósseis russos, mas as importações de gás natural liquefeito (GNL) russo para os portos europeus e de petróleo por oleoduto para a Europa Central continuam a ser ponto sensível, porque ajudam a financiar a máquina de guerra de Moscovo. E esta dependência evidenciou outra: no atinente à transição ecológica, a UE está demasiado dependente da China, que controla a extração e o processamento de partes significativas de muitas terras raras, cruciais para o desenvolvimento das energias renováveis.

A Ásia Central está a desenvolver a produção de energias renováveis e possui depósitos de matérias-primas essenciais. A UE assinou dois Memorandos de Entendimento com o Cazaquistão e com o Uzbequistão, sobre este tema, e chegou, agora, a uma declaração de intenções mais alargada sobre matérias-primas essenciais. Segundo a UE, trata-se de uma situação vantajosa para ambas as partes, já que o bloco assegurará as terras raras de que necessita para impulsionar a sua transição energética e para reforçar a sua autonomia estratégica, enquanto a região obterá os investimentos necessários para desenvolver a indústria local.

A UE não está apenas a promover a extração e a exportação de matérias-primas, mas quer promover a indústria local na região, ajudando o desenvolvimento de tecnologias limpas, e investir, em conjunto com os países da Ásia Central, em toda a cadeia de valor.

Do seu lado, os países da Ásia Central querem mais parcerias industriais, para desenvolver as suas bases de produção e o seu “know how”, o que lhes permitirá aumentar as suas exportações e, por conseguinte, a sua base de clientes. Para isso, precisam de poder enviar, efetivamente, os seus produtos para a UE, pois o Tajiquistão é um dos maiores produtores de alumínio do Mundo, mas é quase impossível exportá-lo para a UE, por causa da logística. Por isso têm-no vendido à China e à Rússia, o que lhes é muito mais fácil.

O Corredor de Transporte Transcaspiano foi um dos principais temas abordados pelos líderes europeus. A UE anunciou, em 2024, que iria afetar 10 mil milhões de euros ao Corredor do Meio, através da Iniciativa Global Gateway, um montante considerado insignificante por alguns, pela extensão do percurso e pelo desafio que representa o terreno montanhoso. De facto, a Iniciativa Global Gateway é muito lenta a produzir efeitos na vida real, o que é fonte de frustração para vários países parceiros, incluindo os países da Ásia Central, especialmente, desde que a Rússia atacou a Ucrânia, levando a UE a impor sanções abrangentes contra o país.

O BERD estimou, em 2023, que seriam necessários 18,5 mil milhões de euros de investimento para concluir os projetos de infraestruturas necessários para a rota, apenas na Ásia Central. Porém, as infraestruturas são apenas a ponta do icebergue. Com efeito, os desafios da conetividade, como a limitada harmonização regulamentar, a ineficiência nas fronteiras e a necessidade de maior digitalização dos documentos de transporte, continuam a dificultar a eficiência do trânsito.

Por isso, vontade política, confiança e coordenação mais forte das partes interessadas serão fundamentais para enfrentar os desafios da conetividade suave.

Na cimeira, ambas as partes tiveram de respeitar uma linha ténue. Para a Ásia Central, trata-se de se aproximar mais do Ocidente, sem incomodar Moscovo ou Pequim. Os países da Ásia Central tentam seguir a política externa multivetorial, mostrando-se preparados para cooperar com diferentes atores, sem alienar nenhum deles, isto é, gostariam de beneficiar de todas as partes. Assim, não querem ir demasiado longe, especialmente, com o Ocidente, com a UE, pois não querem tornar-se demasiado pró-Ocidente, por diferentes razões. Entretanto, Bruxelas pretende fazer acordos com certos regimes acusados de serem autoritários na vizinhança da Rússia, mas apelando à pressão política e económica sobre Moscovo.

Altos funcionários da UE insistiram que a questão da evasão às sanções russas seria levantada na cimeira, dado que alguns dos países da região beneficiaram com a venda à Rússia de artigos fabricados na Europa, que estão proibidos de entrar no país. Por exemplo, as exportações alemãs de automóveis e peças de automóvel, para o Quirguizistão, aumentaram 5500%, em 2023, enquanto, para o Cazaquistão, aumentaram 720%, de acordo com um relatório de Robin Brooks, economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais.

A UE está disposta a cooperar. Gostaria, obviamente, de ver mais, e esta é uma altura em que as sanções da UE são extremamente importantes, já que pretende manter a pressão sobre a Rússia. Por isso, considera que “este é um processo contínuo”.

Manter a sua credibilidade em matéria de direitos humanos poderá ser igualmente difícil para a UE. Na revisão anual dos direitos humanos em todo o Mundo, a Human Rights Watch (HRW) afirmou que a UE precisa de “chamar a atenção” dos governos da Ásia Central para o facto de terem reprimido a dissidência e reforçado o controlo da liberdade de expressão, nomeadamente através da detenção de críticos do governo, ativistas e jornalistas.

Ora, estas relações estão a desenvolver-se e, à medida que se desenvolvem e crescem, podem ter mais impacto. “Não vamos lá para dar lições. Vamos dar a conhecer as nossas preocupações, trabalhar com eles, manter um diálogo. Quanto mais dialogarmos, nos empenharmos e interagirmos, mais acreditamos que podemos mudar e melhorar todos os aspetos que nos preocupam”, considerou um alto funcionário da UE, frisando que esta “não tem muita influência sobre estes países” e não está a criá-la, nesta matéria.

A UE daria mais dinheiro à sociedade civil, mas está a adotar uma abordagem mais pragmática, tendência específica de Ursula von der Leyen, bem pragmática em questões de direitos humanos e muito mais orientada para os interesses.

***

A abordagem dos direitos humanos, que se invocam, se isso interessa, continua a ser o busílis nas relações internacionais – um tabu nalguns países, grandes ou pequenos.

2025.04.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário