segunda-feira, 21 de abril de 2025

Em dias de Páscoa, a perplexidade e a força da fé discipular

 
A liturgia do Domingo de Páscoa celebra a ressurreição de Jesus e proclama a vitória da Vida sobre a morte, da Luz sobre as trevas, pois a morte prende quem faz da vida dom de amor.
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O trecho neotestamentário relevante, neste dia, é uma perícopa do Quarto Evangelho, de grande densidade teológica.  
A seguir ao prólogo, o Quarto Evangelho – Jo 4,1-19,42 – descreve a atividade criadora e vivificadora do Messias para o Homem Novo, livre da escravidão do egoísmo, do pecado e da morte. O último passo visível dessa atividade foi a morte na cruz, onde Jesus deu a última e definitiva lição, a lição do amor total, que não guarda nada para si, mas faz da vida um dom radical ao Pai e aos irmãos. Já em Jo 20,1 – 21,25, temos o resultado da ação de Jesus no modo como a comunidade de Homens Novos, recriados e vivificados por Jesus, que com Ele aprenderam a amar com radicalidade e a quem Jesus abriu as portas da Vida definitiva, começou a desenvolver-se.
Trata-se dos homens e das mulheres que se converteram e aderiram a Jesus e que, em cada dia – mesmo ante o sepulcro dito vazio – são convidados a manifestar a fé no Filho de Deus que “ergueu a sua tenda no meio dos homens”, para lhes dar Vida em abundância.
Jesus tinha sido crucificado na manhã de sexta-feira e morrido na cruz por volta das três horas da tarde do mesmo dia. No final da tarde, o corpo morto fora descido da cruz e depositado, à pressa, num “túmulo novo”, situado num horto, perto do lugar da crucificação. Como era habitual, entre ao Judeus, uma pedra redonda fora rolada para tapar a entrada do sepulcro. Os rituais fúnebres não tinham sido observados em pormenor, pois, nesse dia, ao pôr do sol, começava o sábado e a celebração da Páscoa judaica. Os que lidaram com o sepultamento de Jesus queriam voltar a casa, porque queriam comer a Páscoa em família. Precisavam de se afastar do corpo morto para não ficarem “impuros” e não serem, ritualmente, impedidos de celebrar a Páscoa.
Passado o dia festivo da Páscoa, no “yom rishon”, o primeiro dia da semana, Maria Madalena – uma das mulheres que tinha seguido Jesus, da Galileia a Jerusalém, e que tinha estado junto da cruz de Jesus até à sua morte – dirigiu-se ao túmulo. Levaria perfumes para ungir o corpo morto de Jesus e interrogava-se como afastaria a enorme pedra que fora rolada, para tapar a entrada do sepulcro de Jesus.
O relato joânico (Jo 20,1-9) inicia-se com uma indicação cronológica, que deve ser entendida em chave teológica: “no primeiro dia da semana”. Ou seja, começa um novo ciclo – o da nova criação, o da libertação definitiva. É o “primeiro dia” do novo tempo e da nova realidade.
Neste dia, “de manhã cedo”, Maria Madalena dirige-se ao túmulo de Jesus, pois representa, no Quarto Evangelho, a comunidade nascida da ação criadora e vivificadora do Messias. Todavia, para ela, “ainda estava escuro”: a comunidade de Jesus estava ainda convicta de que a morte tinha triunfado e que Jesus era presa do sepulcro. Era uma comunidade perdida, insegura, com medo, sem esperança. “Sepulcro” era a palavra que pairava no ambiente discipular.
Ao aproximar-se, Maria vê que a pedra que fechava o sepulcro, assinalando a morte definitiva de Jesus fora retirada. Essa pedra estabelecia a separação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, pelo que a visitante não percebia porque fora retirada. Além disso, a seus olhos, o túmulo está vazio. Maria verifica estes dados, mas não percebe aonde eles conduzem. Perplexa, não põe a hipótese de a morte de Jesus não ser definitiva. O “sepulcro” (no texto latino, “monumentum” e, no texto grego, “mnêmeîon”) bloqueia-a. Apenas coloca a hipótese de alguém ter retirado do túmulo o corpo de Jesus. Neste aspeto, a dificuldade de Maria em interpretar os sinais revela a perplexidade e a confusão dos discípulos, nas primeiras horas da manhã de Páscoa, face ao túmulo dito vazio de Jesus. Não obstante, apesar de, só mais tarde, vir a fazer a experiência do encontro direto com Jesus ressuscitado e de se tornar testemunha direta do Ressuscitado, vai, logo, avisar os discípulos de que o corpo de Jesus não está no sepulcro.
Segundo a catequese joânica, emerge, a seguir, a dupla atitude dos discípulos diante do mistério da morte e da ressurreição de Jesus, expressa no comportamento dos dois discípulos que, na manhã da Páscoa, alertados por Maria Madalena para o facto de o corpo de Jesus ter desaparecido, correram ao túmulo: Simão Pedro e um “outro discípulo” não identificado, que será o “discípulo amado”, apresentado no Quarto Evangelho como o modelo ideal do discípulo.
O “discípulo amado” é uma figura emblemática no Evangelho de João. Na última ceia, a da despedida, recebeu a confidência de Jesus sobre a traição de Judas; na paixão, esteve perto de Jesus no átrio do sumo-sacerdote, enquanto Pedro O trai; esteve junto de Jesus, quando os outros discípulos estavam escondidos, cheios de medo; e reconheceu Jesus ressuscitado no vulto que apareceu junto da praia no lago de Tiberíades, após noite inglória de pesca. É um discípulo muito próximo de Jesus, com ligação e empatia especiais com Jesus, e, quando aparecia lado a lado com Pedro, levava vantagem.
Também aqui, isso aconteceu: correu mais e chegou ao túmulo primeiro que Pedro. Correu mais, porque amava mais; chegou primeiro, porque sempre esteve mais próximo de Jesus. Porém, “não entrou”. Só avançou, depois de Pedro ter entrado no sepulcro: ao ceder o passo a Pedro, mostra deferência e amor, o que se esperaria de alguém com forte ligação a Jesus. Este discípulo “viu e acreditou”. Viu os sinais, soube interpretá-los e o seu amor a Jesus levou-o a perceber que o Mestre tinha vencido a morte. Em contrapartida, não se diz o mesmo sobre Pedro.
Em geral, Pedro representa, nos Evangelhos, o discípulo resoluto na ação, mas obstinado em não aceitar a morte, que significa fracasso, e recusando aceitar que a Vida nova passe pela humilhação da cruz. É, em várias situações, o discípulo com dificuldade em entender os valores que Jesus propõe, que raciocina de acordo com a lógica mundana e que não entende que a Vida eterna possa brotar da cruz. Na sua ótica, Jesus fracassou, pois insistiu – contra toda a lógica – em servir e em dar a vida. Para ele, a doação e a entrega não levam à vitória, mas à derrota. Portanto, Jesus morreu e o caso está encerrado. A ressurreição de Jesus é, para alguém que vê as coisas assim, hipótese absurda e sem consequências.
Ao invés, o “outro discípulo” – o “discípulo amado” – está sempre próximo de Jesus e identifica-se com Ele, adere incondicionalmente aos valores de Jesus e ama-O. Nessa comunhão e intimidade com Jesus, aprende e interioriza a lógica de Jesus e percebe que a doação e a entrega são caminho de Vida. Por isso, faz todo o sentido que Jesus tenha ressuscitado, pois a vitória sobre a morte é o resultado lógico do dom da vida, do amor até ao extremo. Este “outro discípulo” é, pois, a imagem do discípulo que está em sintonia total com Jesus, que percebe e aceita os valores de Jesus, que está disposto a comprometer-se com Jesus, na lógica do amor e do dom da vida, que corre ao encontro de Jesus com total empenho, que compreende os sinais da ressurreição e que descobre – porque o amor leva à descoberta – que Jesus está vivo. Este discípulo é o paradigma do Homem Novo, do homem recriado por Jesus. O verdadeiro discípulo está atento aos sinais.
João viu que o sepulcro estava sem o corpo do Senhor, mas não estava completamente vazio. O termo “sepulcro”, que é referido sete vezes, nesta peregrinação ao túmulo de Jesus, significando a totalidade dos efeitos da morte, dá lugar à visão do lençol e das ligaduras tudo bem acondicionado. O corpo do Senhor não fora roubado, poi quem rouba não deixa a casa arrumada.
Eles não tinham entendido que era preciso que Ele ressuscitasse dos mortos. João começou a entender e os dois voltaram para casa.
A seguir, vem o novo episódio com Maria Madalena (Jo 20,11-18), já não no sepulcro, mas do lado de fora, no jardim, chorando. Viu dois anjos que lhe perguntaram por que chorava, ao que respondeu que levaram o seu Senhor e não sabia onde O puseram. Porém, voltando-se, viu um homem e, pensando que era o jardineiro, desafiou-o: “Se foste tu, diz-me onde O puseste e eu levá-Lo-ei!” Porém, quando Ele disse o seu nome “Maria”, reconheceu-O e chamou-O “meu Mestre”. A seguir, Maria foi instituída numa missão verdadeiramente apostólica: “Não me toques, pois ainda não subi para junto do meu Pai” – disse-lhe Jesus –, “mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: ‘Subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus’.”
E Maria veio depressa a anunciar aos discípulos (à comunidade dos irmãos) que viu o Senhor e repetiu-lhe tudo o que Ele lhe disse.
Por isso, com toda a razão, Hipólito, bispo de Roma, no século III, considerou Maria Madalena a “Apóstola dos Apóstolos”, título e prerrogativa que o Papa Francisco, acabado de falecer, recuperou e a cuja liturgia outorgou a categoria de “festa”. E Santo Agostinho, bispo de Hipona, no século V, afirmou que “os apóstolos, futuros evangelistas, receberam das mulheres o anúncio do Evangelho.
Se calhar, uma leitura aprofundada da Páscoa fundamenta o reconhecimento do tão esquecido, mas necessário, papel das mulheres na Igreja.                  
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Outra passagem neotestamentária relevante na Páscoa é um trecho dos Atos dos Apóstolos (At 10,34.37-43), em que Pedro “apresenta” Jesus a Cornélio e aos seus familiares. É um “primeiro anúncio”, que elenca as coordenadas fundamentais da vida e do caminho de Jesus.
Pedro testemunha que Jesus foi “ungido” por Deus e recebeu o Espírito Santo, quando foi batizado no rio Jordão; na sequência da unção, Jesus assumiu a missão que Deus lhe confiou e, animado pela força do Espírito, andou de lugar em lugar, “fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo Mal, porque Deus estava com Ele”. Todavia, as forças do Mal, sentindo que Ele as desafiava, decidiram calá-Lo: “mataram-No, suspendendo-O de um madeiro”. Porém, Deus não aceitou que o seu “ungido” terminasse assim o seu caminho no meio dos homens e “ressuscitou-O ao terceiro dia”. Deus, ao ressuscita-Lo, deu-Lhe razão e garantiu a veracidade do seu caminho. Finalmente, Pedro tira as conclusões acerca da dimensão salvífica de tudo isto: a vida de Jesus, as suas opções, as suas palavras, os seus gestos são fonte de Vida para todos aqueles que O conhecem e que decidem caminhar com Ele (“quem acredita n’Ele, recebe, pelo seu nome, a remissão dos pecados”). Pedro conclui pela veracidade de tudo o que acabou de proclamar sobre Jesus: “Nós somos testemunhas de que tudo isto aconteceu”, de que foi assim que Jesus viveu e de que Deus O ressuscitou e O fez vencer todos aqueles que O quiseram calar e encerrar num túmulo. Pedro e os outros discípulos garantem ao Mundo que a História de Jesus não é fábula, mas História de vida que eles conheceram, acompanharam e comprovaram.
A ressurreição de Jesus não é apresentada, neste anúncio petrino, como facto isolado, mas como o culminar de uma vida vivida na obediência ao Pai e na doação aos homens. Depois de Jesus ter passado pelo mundo “fazendo o bem e libertando todos os que eram oprimidos”, depois de ter morrido na cruz como consequência desse “caminho”, Deus ressuscitou-O. A vida nova que a ressurreição significa é o ponto de chegada de uma existência posta ao serviço do desígnio salvador e libertador de Deus. Por outro lado, esta vida vivida na entrega e no dom é uma proposta transformadora que, acolhida, liberta da escravidão do egoísmo e do pecado.
Face a tudo isto, o papel dos discípulos é aderir a Jesus e acolher a sua proposta libertadora. Assim, estão a ressuscitar com Jesus. Por conseguinte, compete-lhes serem testemunhas, ante os homens e mulheres da Terra inteira, de Jesus e da Vida nova que d’Ele receberam. É esse testemunho que Pedro dá ante Cornélio e sua família.
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Também importará saber o que nos diz Paulo, em dia de Páscoa (Cl 3,1-4).
Apresentada a centralidade de Cristo no projeto salvador de Deus, o apóstolo recorda aos cristãos de Colossos a necessidade de viver de forma coerente e verdadeira o compromisso com Cristo.
Para Paulo, o ponto de partida e a base da vida cristã é a união a Cristo Ressuscitado, que se concretiza pelo batismo. Quando somos batizados e nos unimos a Cristo, morremos para o pecado e ressuscitamos com Cristo para uma Vida nova, plena e verdadeira, que terá plena concretização no Mundo de Deus, quando saltarmos as fronteiras da vida terrena e entrarmos na glória de Deus.
Enquanto não acedemos à glória de Deus, continuamos o caminho na terra; e a Vida nova tem de manifestar-se já, aqui e agora, nos nossos gestos, nas nossas opções, nas nossas aspirações. Através de um processo de conversão, nunca terminado, temos de nos despojar do egoísmo, da autossuficiência, da arrogância, da maldade (Paulo chama a isso “despir-se do homem velho), para passarmos a viver num dinamismo de amor, de serviço simples e humilde, de bondade, de misericórdia de mansidão, de dom da vida (Paulo chama a isso “revestir-se do Homem Novo”). Ora, Cristo ressuscitado, que venceu o pecado e a morte, será sempre a nossa referência e modelo de vida. Caminhamos na terra, mas de olhos postos no céu (“afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra”). Desta opção por Cristo e desta união com Cristo ressuscitado resultam exigências práticas atinentes à integridade de alma e de corpo e da são convivência social, com notável apreço pelos mais desprotegidos, pelo acolhimento, pela inclusão e pela integração.  
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Assim, em ambiente pascal, é de cantar com o salmista:  “Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria.”
“Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, / porque é eterna a sua misericórdia. / Diga a casa de Israel: / é eterna a sua misericórdia.
“A mão do Senhor fez prodígios, / a mão do Senhor foi magnífica. / Não morrerei, mas hei de viver / para anunciar as obras do Senhor.
“A pedra que os construtores rejeitaram / tornou-se pedra angular. / Tudo isto veio do Senhor: / é admirável aos nossos olhos.”
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E também é útil  rezar a “Sequência pascal”, onde se captou o testemunho de Maria Madalena:
“À Vítima pascal / ofereçam os cristãos / sacrifícios de louvor.
“O Cordeiro resgatou as ovelhas: / Cristo, o Inocente, / reconciliou com o Pai os pecadores.
“A morte e a vida / travaram um admirável combate:
“Depois de morto, / vive e reina / o Autor da vida.
“Diz-nos, Maria: / Que viste no caminho?
“Vi o sepulcro de Cristo vivo / e a glória do Ressuscitado. / Vi as testemunhas dos Anjos, / vi o sudário e a mortalha.
“Ressuscitou Cristo, minha esperança: / precederá os seus discípulos na Galileia.
“Sabemos e acreditamos: / Cristo ressuscitou dos mortos:
“Ó Rei vitorioso, / tende piedade de nós.”
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Aleluia. Aleluia. Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado: celebremos a festa do Senhor.
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Continuação de Santa e Feliz Páscoa!

2025.04.20/21 – Louro de Carvalho


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