É a tetralogia presente no Evangelho do 2.º domingo de Páscoa, tradicionalmente designado por “Domingo in Albis” (por ser o dia em que os neófitos da Vigília Pascal depunham as vestes brancas batismais) e, após decisão do Papa São João II, Domingo da Misericórdia, no que foi acompanhado pelo Papa Francisco, recentemente falecido e que pode ser denominado de Pontífice da Misericórdia.
De facto, a liturgia deste domingo prossegue a celebrar a Boa Nova da vitória de Jesus sobre a morte e a instar a que olhemos para a comunidade nascida de Jesus. Ele está no meio dela, caminha com ela, dando-lhe a força para vencer as crises e os desafios que lhe dificultam o caminho. É a partir dela que Jesus oferece ao Mundo, em cada etapa da História, a salvação libertadora.
O Evangelho (Jo 20,19-31) apresenta a comunidade da Nova Aliança, nascida da atividade criadora e vivificadora de Jesus e que se reúne à volta do Ressuscitado, recebendo d’Ele Vida, que é animada pelo seu Espírito e que dá testemunho, no Mundo, da Vida nova de Deus. Quem quiser ver e tocar o Ressuscitado, deve procurá-Lo na comunidade que d’Ele vive.
O trecho em referência narra o encontro de Jesus ressuscitado com os discípulos. Foi ao “anoitecer”, com as “portas fechadas”, por “medo” – dados que revelam insegurança e desamparo que sentem, ante o Mundo hostil que condenou Jesus à morte. Porém, Jesus apresenta-se e coloca-se “no meio deles”, não ao lado, nem atrás, nem à frente. O que foi crucificado está vivo, pelo que os discípulos não estão órfãos, nem abandonados à hostilidade. Ao colocar-se “no meio deles”, o Ressuscitado, que lhes mostrou as marcas da crucifixão, assume-Se como ponto de referência, fator de unidade, fonte de Vida – a videira em que se enxertam os ramos. A comunidade não pode ser autorreferencial: tem de estar centrada em Jesus, pois Ele é o centro onde todos vão beber a água da Vida eterna.
O ressuscitado traz à comunidade, antes de mais, a paz, desejada por duas vezes. Não se trata só do cumprimento hebraico “shalom”, mas também de que Jesus venceu tudo que assustava os discípulos: a morte, a opressão, a mentira, a violência, a hostilidade. Doravante, os discípulos não têm razão para viverem paralisados pelo medo; e a paz é impulso para a harmonia, para a compaixão para com os mais deserdados da sorte, para o crescimento da Igreja.
Os discípulos ficaram cheios de alegria por verem o Senhor. Dificilmente, pessoa sozinha tem genuína alegria, pois a alegria é comunitária; e, dificilmente, pessoa sem Deus tem autêntica alegria, porque a fonte da alegria é Deus e a alegria que Ele instila é difusiva e compartilhada.
Antes de prosseguirmos, devemos fazer pausa, a deixar-nos surpreender por Jesus a mostrar as mãos com a marca dos pregos e o lado que fora trespassado pela lança do soldado. Esses “sinais” mostram a identidade do Ressuscitado – o mesmo que fora crucificado e que eles conheceram, não outro – e, neles, está a prova da vitória sobre a morte e sobre a maldade dos homens, bem como a marca da sua entrega até à morte, por obediência ao Pai e por amor aos homens. Neles está impressa a “identidade” de Jesus, pois, nos sinais de amor e de doação, a comunidade reconhece Jesus vivo e presente no seu meio. A permanência desses “sinais” indica a permanência do amor de Jesus: Ele é sempre o Messias que ama e do qual brotarão a água e o sangue que constituem e alimentam a comunidade.
É a esta “apresentação” de Jesus que os discípulos respondem com a alegria. Estão alegres, porque Ele está vivo e porque sabem que começou o tempo novo, em que a morte não assusta, o tempo do Homem Novo, do Homem livre, do Homem que se encontra com a Vida definitiva.
Em seguida, Jesus convoca os discípulos para a missão (o apostolado), a mesma que o Pai Lhe confiou: realizar, no Mundo a obra de Deus. E eles concretizarão esta missão em ligação com Jesus (são ramos ligados à videira/Jesus, pois só assim darão fruto).
Para que os discípulos concretizem a missão, Jesus realiza um gesto bem significativo: “soprou” sobre eles. O verbo utilizado é o do texto grego de Gn 2,7 (Deus soprou sobre o homem de argila, infundindo-lhe a vida de Deus). Com o “sopro” de Gn 2,7, o homem tornou-se um ser vivente; com este “sopro”, Jesus transmite aos discípulos a Vida nova, o Espírito Santo, que fará deles Homens Novos e que os capacitará para viverem como testemunhas do Ressuscitado. É uma nova Criação. Da atividade, do testemunho, do amor, do dom de Jesus nasceu a nova Humanidade, capaz de amar até ao extremo, de dar a vida, de realizar a obra de Deus. É este Espírito que, pelo tempo fora, constitui e anima, a cada instante, a comunidade de Jesus.
Foi “ao entardecer do primeiro dia da semana” (ao concluir-se o primeiro dia da nova criação) a comunidade dos discípulos fez a primeira experiência do encontro com Jesus, vivo e ressuscitado.
Todavia, não podemos esquecer o fim primordial e último da missão apostólica: o perdão dos pecados oferecido no Espírito Santo. Missão discipular e apostólica que não desemboque na pregação do arrependimento e no perdão não cumpre o desígnio do Deus misericordioso: “Recebei o Espírito Santo, àqueles a quem perdoardes os pecados ficarão perdoados…” Porém, muitos optam pelo inverso “à queles a quem os não perdoardes ficarão retidos”.
Ora, esta comunidade é a testemunha e paladina da misericórdia de Deus que sempres sabe e quer ter compaixão e conceder o perdão. É pena que se pense que o recado foi dado apenas aos apóstolos daquele tempo e não também a toda a comunidade hodierna, embora os sacerdotes tenham o dever de encimar a concessão do perdão. Esta é a comunidade da Nova Aliança, nascida da ação e do amor de Jesus!
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A seguir, vem uma catequese joânica sobre a maneira de
os discípulos de Jesus de qualquer época chegarem à fé em Cristo ressuscitado.
A História de Tomé, o Dídimo (“gémeo”), será a saga de cada um de nós. E é pena
que Tomé fique na memória coletiva como o homem que recusa acreditar, assolado
pela dúvida, e não como paradigma da dificuldade em chegar à fé, mas que, ao
chegar, torna-se modelo da fé incisiva feita oração. Também nós nem sempre nos
contentamos com o testemunho que nos chega dos primeiros discípulos e
gostaríamos de “ver”, de “tocar”, de ter provas palpáveis.O Ressuscitado apresenta-Se aos discípulos “no primeiro dia da semana”, quando a comunidade discipular está reunida, pois é ela o lugar natural onde se manifesta e irradia o amor de Jesus, sendo ali que se faz a experiência da presença de Jesus vivo. Porém, Tomé “não estava com eles”, estava fora da comunidade. “Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu lado, não acredito” – assegurou Tomé, quando lhe falaram do Ressuscitado. Em vez de se integrar e de participar na experiência que os outros discípulos fizeram em comunidade, quer obter uma demonstração particular de Deus. Representa, assim, os que vivem fechados em si próprios (está fora).
Contudo, “oito dias depois” (de novo, no primeiro dia da semana), Tomé está integrado na comunidade; e é aí que se encontra com o Ressuscitado, pois é ali que se manifestam os sinais de Vida nova que alimentam a fé no Ressuscitado. A experiência é tão impactante que, do coração de Tomé, brota a extraordinária declaração de fé, uma das mais belas da Bíblia: “Meu Senhor e meu Deus!” Também nós, os “gémeos” de Tomé, que somos chamados a acreditar sem termos visto nem tocado, poderemos fazer a experiência que Tomé fez: é no encontro com o amor fraterno, com o perdão dos irmãos, com a Palavra proclamada em comunidade, com o pão de Jesus partilhado, que se descobre e experimenta o Ressuscitado. É por isso que a comunidade de se reúne “no primeiro dia da semana”, o “dia do Senhor”, o domingo (a Páscoa semanal).
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Lucas (At 5,12-16) começa por enunciar o tema que pretende relevar: “Pelas
mãos dos apóstolos realizavam-se muitos milagres e prodígios entre o povo.”
Depois, mostra o testemunho da primitiva comunidade cristã aos habitantes de
Jerusalém.Os cristãos de Jerusalém reuniam-se no pórtico de Salomão, para escutar o ensino dos apóstolos. Os que não faziam parte da comunidade cristã enalteciam-nos e admiravam-nos, mas não se lhes juntavam. Na verdade, os outros, vendo o estilo de vida dos cristãos, reconheciam, na comunidade nascida de Jesus, algo que vinha de Deus e que era sinal de Deus. Isso infundia nos habitantes de Jerusalém temor respeitoso, o temor que uma pessoa sente ante da presença de Deus. Porém, com o passar do tempo, o temor dava lugar à estima e a estima levava à adesão: “Cada vez mais gente aderia ao Senhor pela fé, uma multidão de homens e mulheres.”
A adesão dos habitantes de Jerusalém à fé cristã era potenciada pelas curas que os apóstolos realizavam: “Traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e em catres, para que, à passagem de Pedro, ao menos, a sua sombra cobrisse alguns deles.” Ao atribuir aos apóstolos poder curador, Lucas releva que eles continuam a obra de Jesus, levando vida a todos os que estão privados dela. A atividade salvadora e libertadora que Jesus desenvolveu em favor dos pobres, dos oprimidos e de outros sofredores é continuada, agora, no Mundo, pela sua Igreja. Um original desenvolvimento é a atribuição de virtudes curativas à “sombra” de Pedro, o que nunca foi dito acerca de Jesus, não porque Pedro seja superior a Jesus, mas sugerir que nada é impossível àquele que se coloca na órbita de Jesus e recebe d’Ele a força para levar ao Mundo a salvação de Deus. Com efeito, Jesus tinha dito aos apóstolos, ao despedir-se deles, pouco antes de voltar para o Pai: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e até aos confins do mundo.” Os apóstolos, fiéis ao mandato, testemunham, com os seus gestos, Jesus ressuscitado e o seu projeto libertador para o Mundo. É a consequência dinâmica da Ressurreição!
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João, o profeta de Patmos (Ap 1,9-11a.12-13.17-19), apresenta aos
cristãos perseguidos a visão do “filho do homem”. É Jesus ressuscitado, o
princípio e o fim de todas as coisas, Aquele que derrotou a morte e tudo o que
está ligado a ela. Ele está com a Igreja e caminha com ela pelos caminhos da História.
É n’Ele que a comunidade encontra a força para caminhar e para vencer as forças
que se opõem à vida nova de Deus.O cristão, que experimentam, quotidianamente, a perseguição movida pelo imperador Domiciano, desanimados e sem esperança, perguntam-se onde está Deus, se é Deus quem governa o Mundo ou o imperador de Roma, se crer em Jesus é fonte de vida ou de morte, se vale a pena permanecer fiel a Jesus e ao seu projeto e se se pode pagar essa fidelidade com a vida. E o profeta de Patmos, recorrendo a símbolos veterotestamentários, apresenta-lhes a “visão do filho do homem”.
O filho do homem do Apocalipse tem uma aparência humana, como o filho do homem da visão de Dn 7,13. Está no meio de sete candelabros. Os sete candelabros (o número “sete” significa “totalidade”, “plenitude”) evocam a totalidade da Igreja nascida de Jesus (citam-se as sete igrejas da Ásia Menor): as comunidades cristãs espalhadas pelo império e perseguidas não estão sós, abandonadas à sua sorte. Cristo ressuscitado está no meio delas e caminha com elas.
O filho do homem está vestido com uma túnica comprida (a túnica evoca a dignidade sacerdotal), pois Ele é o sacerdote por excelência, o verdadeiro intermediário entre Deus e os homens. Está cingido “no peito com um cinto de ouro” (o ouro indica que n’Ele reside a realeza e a autoridade sobre a História e sobre o Mundo). A sua cabeça e os seus cabelos são brancos, como “a brancura da lã e da neve” (o branco é a cor de Deus e os cabelos brancos simbolizam a eternidade). Os seus olhos são “como uma chama de fogo” (tudo veem, tudo conhecem, a todos questionam). Os seus pés assemelham-se “ao bronze incandescente numa forja” (todo Ele é firmeza e estabilidade e nenhum poder do Mundo pode derrubá-lo). A sua voz é “como o rumor de águas caudalosas (ouve-se por todo o lado e, como a água corrente, gera vida em abundância).
O filho do homem tem “na mão direita sete estrelas: a Igreja está na mão d’Ele e pertence-lhe. Por isso, os cristãos podem entregar-se, confiadamente, nas suas mãos. Da sua boca sai “uma espada afiada de dois gumes”: a sua Palavra penetra os corações, de forma irresistível, e obriga todos, diante dela, a tomar posição. O seu rosto “é como o sol resplandecente em toda a sua força”: n’Ele brilha a luz de Deus, uma luz intensa que os homens não podem contemplar diretamente.
Desprende-se deste filho do homem uma imagem de poder, de majestade, de omnipotência. Consciente de que está diante de um ser divino, o profeta de Patmos cai por terra, “como morto”. Porém, o filho do homem convida-o a não ter medo e confirma-lhe que é o Cristo do mistério pascal (“O que esteve morto, voltou à vida e derrotou a morte”). A História começa e acaba n’Ele (“Eu sou o primeiro e o último”). Se Ele é o Senhor da vida, O que venceu a morte, a injustiça e o pecado, os cristãos nada terão a temer. Ao profeta de Patmos, Cristo ressuscitado confia a missão profética de dar testemunho. Envia-o às igrejas a anunciar a mensagem de esperança que permita enfrentar o medo e a perseguição. É chamado a anunciar a todos os cristãos que Jesus está vivo, que caminha no meio da Igreja e que, com Ele, nenhum mal lhes acontecerá: Ele é o Senhor que preside à História e que é mais poderoso do que todos os reis e imperadores.
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“Aclamai o Senhor, porque Ele é bom: o seu amor é para
sempre.”“A pedra que os construtores rejeitaram / tornou-se pedra angular. / Tudo isto veio do Senhor: / é admirável aos nossos olhos. / Este é o dia que o Senhor fez: / exultemos e cantemos de alegria.
“Senhor, salvai os vossos servos, / Senhor, dai-nos a vitória. /Bendito o que vem em nome do Senhor, / da casa do Senhor nós vos bendizemos. / O Senhor é Deus / e fez brilhar sobre nós a sua luz.”
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“Porque Me viste, acreditaste. Felizes os que
acreditam sem terem visto.”
2025.04.28 – Louro de Carvalho
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