A 25 de abril de 2025, ocorre o 50.º aniversário das eleições para a Assembleia Constituinte (AC), as primeiras eleições livres no país em resultado do golpe militar do 25 de Abril, que desencadeou a revolução, em sintonia com os expressivos movimentos sociais e com os partidos políticos, muitos dos quais ainda embrionários.
O Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas, abreviadamente denominado Programa do MFA – documento básico da Revolução Portuguesa, que esteve na origem de todas as transformações e foi o pretexto para todas as crises, em especial, a crise Palma Carlos e o 28 de Setembro – estabelece que a Junta de Salvação Nacional (JNS) decretaria “a destituição imediata do Presidente da República e do atual governo, a dissolução da Assembleia Nacional [AN] e do Conselho de Estado [órgãos de soberania do Estado Novo, acabado de ruir], medidas que serão acompanhadas do anúncio público da convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal direto e secreto, segundo lei eleitoral a elaborar pelo futuro governo provisório”.
Foi
também estabelecido que, “após assumir as suas
funções, o Presidente da República [PR] nomeará o governo provisório civil, que
será composto por personalidades representativas de grupos e correntes
políticas e personalidades independentes que se identifiquem com o presente
programa”; que, “durante o período de exceção do governo provisório, imposto
pela necessidade histórica de transformação política, manter-se-á a Junta de
Salvação Nacional, para salvaguarda dos objetivos aqui proclamados”; e que “o
período de exceção terminará, logo que, de acordo com a nova Constituição
Política, estejam eleitos o Presidente da República e a Assembleia
Legislativa”.
A talho de foice, registe-se que, ao
invés do que afirmam alguns, o 25 de Abril não foi um mero golpe de estado por
motivos estritamente militares, que o povo transformou em revolução. Com
efeito, o texto em apreço, além de consagrar os diversos direitos, liberdades e
garantias, estipula que o governo provisório – que
“governará por decretos-leis, que obedecerão, obrigatoriamente, ao espírito
desta proclamação” – “lançará os fundamentos” de “uma nova política económica,
posta ao serviço do povo português, em particular, das camadas da população até
agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a
inflação e [contra] a alta excessiva do custo de vida, o que, necessariamente,
implicará uma estratégia antimonopolista”; e “uma nova política social que, em
todos os domínios, terá essencialmente como objetivo a defesa dos interesses
das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade
da vida de todos os Portugueses”.
Assim, o Programa do MFA,
apresentado ao país no dia subsequente ao golpe que desencadeou a revolução e,
pelos vistos, depois limado, em alguns pormenores, pelo general António
Spínola, constituiu, durante largos meses, a carta de libertação do Povo
Português, numa perspetiva anticapitalista e antimonopolista. Talvez por isso, o
primeiro-ministro (PM), Adelino da Palma Carlos – em articulação com o PR,
António Spínola, e com o ministro-adjunto do primeiro-ministro, Francisco Sá
Carneiro – invocando razões de legitimidade política, propôs ao Conselho de
Estado a
realização, em outubro de 1974, de eleições presidenciais e,
simultaneamente, de um referendo a uma Constituição Provisória. Assim, as eleições
presidenciais ocorreriam antes das eleições constituintes, relegando estas últimas
para finais de 1976. Este “Plano Palma Carlos” contrariava o Programa do MFA e
constituía uma forma de reforço do poder do PR.
A proposta seria
rejeitada por quase todo o espectro político, incluindo o Conselho de Estado, e o
governo caiu, a 11 de julho, com o pedido de demissão do PM, seguindo-se-lhe, a 17
de julho, o II governo provisório, liderado por Vasco Gonçalves. Talvez o
“Plano Palma Carlos” resultasse, caso o 28 de Novembro tivesse sucesso do lado
dos spinolistas.
***
Entretanto,
foi publicado o Decreto-Lei n.º 621-A/74, de 15 de novembro, que, na
sequência da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de maio, cujo artigo 4.º estatuíra que a
Assembleia Constituinte seria eleita até 31 de março de 1975, aprovou a
lei eleitoral, no atinente ao recenseamento, estipulando a obrigatoriedade
deste, para todos os cidadãos que possuam capacidade eleitoral (cf. artigo
16.º), tal como estabelecia que são eleitores “os cidadãos
portugueses de ambos os sexos, maiores de 18 anos” (artigo 1.º).
Também
foi publicado o Decreto-lei 621-C/74, de 15 de novembro, que definia as normas sobre a eleição dos deputados à AC,
regulamenta o ato eleitoral, cria a Comissão Nacional das Eleições (CNE) e
instituiu o direito de antena.
Por
conseguinte, a 9 de dezembro de 1974, dava-se início ao processo de
recenseamento eleitoral, inicialmente anunciado até ao final do mês de
dezembro, mas que se prolongaria até 8 de janeiro.
O
processo de recenseamento eleitoral foi realizado, ao nível das freguesias,
através de comissões de recenseamento estabelecidas para o efeito, e decorreu
também no estrangeiro, de forma a chegar à população portuguesa emigrada. Os
meios de comunicação, como a televisão e a rádio, contribuíram para a
divulgação do tema e para sensibilizar a população para a sua relevância.
Apesar
de se ter havido largos problemas, que incluíam a novidade do processo ou a
escassez dos nomes registados nos boletins eleitorais que transitaram do regime
anterior, o processo aumentou, substancialmente, o número de inscritos nos
boletins, que passaram de cerca de 1,8 milhões para mais de 6,2 milhões de
eleitores, após o recenseamento.
Para
tanto contribuíram a obrigatoriedade do recenseamento e a mobilização da
sociedade civil, nomeadamente dos partidos políticos, em torno do processo. Na
organização do recenseamento, destacou-se o ministro da Administração Interna,
Manuel da Costa Brás, que esteve na origem de vários departamentos do seu
ministério, em que sobressai a criação do Secretariado Técnico para os Assuntos
Políticos (STAP) (Decreto-Lei 746/74, de 27 de dezembro), trabalho que teve
seguimento sob a batuta do seu sucessor António Arnão Metelo.
***
Nestes termos, o caminho da realização das eleições para a AC, até ao início dos seus trabalhos foi assim:
Pouco
depois da sua tomada de posse, a 15 de maio de 1974, o I governo provisório
nomeou uma comissão para preparar uma proposta de lei eleitoral. Couberam à
comissão relevantes decisões atinentes à capacidade eleitoral, ao sistema
eleitoral e ao recenseamento. Integraram a comissão sete juristas ligados às
principais forças políticas, para assegurar o pluralismo: José Magalhães
Godinho, do Partido Socialista (PS); Jorge Miranda António Barbosa de Melo, do
Partido Popular Democrático (PPD); Lino Lima, do Partido Comunista Português
(PCP); José Manuel Galvão Teles, do Movimento de Esquerda Socialista (MES); Ângelo
de Almeida Ribeiro, próximo do PS; Manuel João da Palma Carlos, próximo do
Movimento Democrático Português (MDP). O trabalho da comissão era
essencialmente técnico e nem partidos nem militares foram ouvidos nesta fase. A
12 de agosto, a proposta de lei eleitoral foi entregue ao II Governo
Provisório. A discussão alternou entre o Conselho de Ministros e o Conselho de
Estado, que a aprovou, em novembro de 1974.
O
período que antecedeu as eleições ficou marcado por forte agitação política.
Entre abril de 1974 e abril de 1975 tomaram posse quatro governos provisórios,
várias vezes reorganizados, e dois presidentes da República. Houve várias
entradas e saídas do Conselho de Estado, que não sobreviveu até à data da
eleição. Esta agitação marcou o período de discussão da lei eleitoral, mas não
colocou em risco a realização das eleições. O seu atraso, como se viu, foi
motivado por razões de ordem administrativa, acolhidas pelos diplomas legais
acima referidos.
É
certo que houve situações arriscadas, no atinente às eleições, mas não foram os
governos que as provocaram, sobretudo, antes da entrada em funcionamento da AC.
A
11 de março, António Spínola e seus apoiantes desencadearam uma operação
militar que visava reconduzir o general à presidência e afastar os esquerdistas
do controlo do processo. O golpe fracassado teve consequências políticas: a JNS
e o Conselho de Estado foram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução
(CR), que institucionalizou o MFA. A suspensão do ato eleitoral chegou a ser
debatida na assembleia do MFA, de 11 para 12 de março, mas foi rejeitada pela
maioria. Por outro lado, militares e alguns partidos de esquerda apelavam ao
voto em branco de eleitores potencialmente inseguros.
Cedo
se percebeu que, para um ato eleitoral livre, seria necessário começar do zero:
a organização, a estrutura e a metodologia herdadas do Estado Novo, arcaicas e
insuficientes, não serviam estas eleições. Foram, assim, postos em curso todos
os procedimentos necessários, como se relatou acima. Porém, o grande desafio
foi fazer o primeiro recenseamento em democracia. A expectativa era que se
chegasse aos 5,5 milhões. Contudo, escasseava o tempo para planear e executar o
recenseamento mais inclusivo da História portuguesa. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 621-A/74, de 15 de novembro, sustentava:
a elaboração do recenseamento em tão curto prazo só seria viável se se
transformasse, sob o impulso dos partidos, “numa jornada cívica à escala
nacional”. E, no fim do período do recenseamento, registavam-se, acima das
expectativas, mais de 6,2 milhões de eleitores. Cidadãos, partidos e serviços
estatais ativamente no processo.
Concorreram
14 partidos, mas nenhum conseguiu apresentar listas em todos os círculos
eleitorais, em parte, devido à fraca implantação territorial das forças
políticas. O PCP, fundado em 1921, era o único a dispor de estrutura
organizativa e ideológica, mas nunca tinha ido a votos. Porém, apesar do
ambiente de incerteza, face ao peso eleitoral das forças políticas, as leis permitiram
que os partidos se afirmassem e assumissem papel central na transição. Com
efeito, só os partidos puderam apresentar candidaturas e escolha do sistema
eleitoral de acordo com o princípio da representação proporcional favorecia o
pluralismo e a representatividade das diferentes correntes políticas na
assembleia. O sistema de listas fechadas e bloqueadas e a apresentação, no
boletim de voto, das designações, das siglas e dos símbolos dos partidos facilitavam
o processo de voto e fortaleciam as forças políticas, reforçando-lhes a
visibilidade.
A
campanha eleitoral começou a 2 de abril e contou com forte mobilização dos
cidadãos e dos partidos, com grande adesão aos comícios, às manifestações e às sessões
de esclarecimento. Havia dois posicionamentos. Mais à esquerda (PCP, MES, MDP e
UDP – União Democrática Popular, por exemplo), via-se a legitimidade das
eleições, como instrumento complementar à Revolução; os moderados (PS, PPD e
CDS – partido do Centro Democrático Social) apostaram na conquista de votos
como reforço da sua legitimidade. Esta dualidade foi também consequência do 11
de Março, que tornou mais difícil a cooperação entre os partidos moderados, com
representação nos governos provisórios, e a extrema-esquerda, que se uniu.
A
11 de abril, foi celebrado o Pacto
MFA/Partidos, subscrito pelo PS, pelo PPD, pelo PCP, pelo CDS, pelo MDP e pela
FSP (Frente Socialista Popular). Os partidos signatários deveriam inscrever na
Constituição as “conquistas revolucionárias” e as que viessem ocorrer ao longo
da “via original de um socialismo português”. O CR manteria o poder sobre a
constitucionalidade das leis, o monopólio da legislação militar e o poder de
legislar sobre qualquer matéria urgente de interesse nacional. E representantes
do MFA deveriam acompanhar os trabalhos da AC.
A
24 de abril, na véspera do ato eleitoral, ouvimos o discurso de Costa Gomes a
apelar ao voto.
A
25 de abril de 1975, votaram mais de 5,712 milhões de portugueses (91,66% dos
eleitores), valor histórico a significar a clara demonstração de apoio da
população ao regime democrático que se consolidava. Dos 14 partidos
concorrentes, sete obtiveram representação parlamentar. A grande surpresa (não
foram permitidas sondagens durante a campanha) foi o fraco resultado do PCP,
que se ficou pelos 12,46% (30 deputados) e foi a terceira força mais votada,
contra as expectativas, em torno da sua capacidade de mobilização superior e da
sua militância mais consolidada. À frente ficaram: o PS, com 37,87%, (116
deputados) e o PPD, com 26,39% (81 deputados). Em quarto lugar, ficou o CDS,
ausente dos governos provisórios, mas com 7,61% dos votos (16 deputados). O MDP
obteve 4,14% dos votos (cinco deputados) e a UDP (0,79%) e a ADIM – Associação
para a Defesa dos Interesses de Macau (0,03%) conseguiram um deputado,
cada uma. O ato eleitoral registou a menor abstenção de sempre: 8,34%.
Na
primeira eleição em que as mulheres votaram, sem restrições, foram eleitos 230
homens e 20 mulheres. Os resultados traduziram-se numa assembleia mais
moderada, com a sobreposição da legitimidade eleitoral sobre a alegada
legitimidade revolucionária.
***
O
dia das eleições foi de genuína festa, cujo esplendor brilhava no rosto livre
dos eleitores presentes nas assembleias de voto, em longas filas de espera, mas
de esperança. E, a 9 de junho, iniciaram-se dos trabalhos
da Assembleia Constituinte com a eleição de Henrique Barros (PS) para seu
presidente. Era a inauguração do Portugal novo rumo à democracia formal.
Como
era óbvio, após ter consultado, dias antes, as listas de eleitores, extraídas
dos cadernos eleitorais, a ver se delas constava o meu nome e o do meu superior
hierárquico, participei na festa, votando na 1.ª secção da Assembleia de Voto
da freguesia da Sé, em Lamego, e nas andanças de rua. E um ano depois, a 25 de
abril de 1976, dia da entrada em vigor da Constituição, aprovada e promulgada
no dia 2, fui de Vila Nova de Foz-Coa a Lamego, festejar a democracia
normalizada, com o voto para as primeiras eleições legislativas. O 25 de Abril
valera a pena, pois sentia-me cidadão em pleno, de calças à “boca-de-sino”,
casaquinha e boné!
2025.04.22 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário