terça-feira, 22 de abril de 2025

No cinquentenário das primeiras eleições livres em clima de festa

 

A 25 de abril de 2025, ocorre o 50.º aniversário das eleições para a Assembleia Constituinte (AC), as primeiras eleições livres no país em resultado do golpe militar do 25 de Abril, que desencadeou a revolução, em sintonia com os expressivos movimentos sociais e com os partidos políticos, muitos dos quais ainda embrionários.

O Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas, abreviadamente denominado Programa do MFA – documento básico da Revolução Portuguesa, que esteve na origem de todas as transformações e foi o pretexto para todas as crises, em especial, a crise Palma Carlos e o 28 de Setembro – estabelece que a Junta de Salvação Nacional (JNS) decretaria “a destituição imediata do Presidente da República e do atual governo, a dissolução da Assembleia Nacional [AN] e do Conselho de Estado [órgãos de soberania do Estado Novo, acabado de ruir], medidas que serão acompanhadas do anúncio público da convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal direto e secreto, segundo lei eleitoral a elaborar pelo futuro governo provisório”.

Foi também estabelecido que, “após assumir as suas funções, o Presidente da República [PR] nomeará o governo provisório civil, que será composto por personalidades representativas de grupos e correntes políticas e personalidades independentes que se identifiquem com o presente programa”; que, “durante o período de exceção do governo provisório, imposto pela necessidade histórica de transformação política, manter-se-á a Junta de Salvação Nacional, para salvaguarda dos objetivos aqui proclamados”; e que “o período de exceção terminará, logo que, de acordo com a nova Constituição Política, estejam eleitos o Presidente da República e a Assembleia Legislativa”.

A talho de foice, registe-se que, ao invés do que afirmam alguns, o 25 de Abril não foi um mero golpe de estado por motivos estritamente militares, que o povo transformou em revolução. Com efeito, o texto em apreço, além de consagrar os diversos direitos, liberdades e garantias, estipula que o governo provisório – que “governará por decretos-leis, que obedecerão, obrigatoriamente, ao espírito desta proclamação” – “lançará os fundamentos” de “uma nova política económica, posta ao serviço do povo português, em particular, das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e [contra] a alta excessiva do custo de vida, o que, necessariamente, implicará uma estratégia antimonopolista”; e “uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objetivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade da vida de todos os Portugueses”.

Assim, o Programa do MFA, apresentado ao país no dia subsequente ao golpe que desencadeou a revolução e, pelos vistos, depois limado, em alguns pormenores, pelo general António Spínola, constituiu, durante largos meses, a carta de libertação do Povo Português, numa perspetiva anticapitalista e antimonopolista. Talvez por isso, o primeiro-ministro (PM), Adelino da Palma Carlos – em articulação com o PR, António Spínola, e com o ministro-adjunto do primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro – invocando razões de legitimidade política, propôs ao Conselho de Estado a realização, em outubro de 1974, de eleições presidenciais e, simultaneamente, de um referendo a uma Constituição Provisória. Assim, as eleições presidenciais ocorreriam antes das eleições constituintes, relegando estas últimas para finais de 1976. Este “Plano Palma Carlos” contrariava o Programa do MFA e constituía uma forma de reforço do poder do PR.

A proposta seria rejeitada por quase todo o espectro político, incluindo o Conselho de Estado, e o governo caiu, a 11 de julho, com o pedido de demissão do PM, seguindo-se-lhe, a 17 de julho, o II governo provisório, liderado por Vasco Gonçalves. Talvez o “Plano Palma Carlos” resultasse, caso o 28 de Novembro tivesse sucesso do lado dos spinolistas.

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Entretanto, foi publicado o Decreto-Lei n.º 621-A/74, de 15 de novembro, que, na sequência da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de maio, cujo artigo 4.º estatuíra que a Assembleia Constituinte seria eleita até 31 de março de 1975, aprovou a lei eleitoral, no atinente ao recenseamento, estipulando a obrigatoriedade deste, para todos os cidadãos que possuam capacidade eleitoral (cf. artigo 16.º), tal como estabelecia que são eleitores “os cidadãos portugueses de ambos os sexos, maiores de 18 anos” (artigo 1.º).    

Também foi publicado o Decreto-lei 621-C/74, de 15 de novembro, que definia as normas sobre a eleição dos deputados à AC, regulamenta o ato eleitoral, cria a Comissão Nacional das Eleições (CNE) e instituiu o direito de antena.

Por conseguinte, a 9 de dezembro de 1974, dava-se início ao processo de recenseamento eleitoral, inicialmente anunciado até ao final do mês de dezembro, mas que se prolongaria até 8 de janeiro.

O processo de recenseamento eleitoral foi realizado, ao nível das freguesias, através de comissões de recenseamento estabelecidas para o efeito, e decorreu também no estrangeiro, de forma a chegar à população portuguesa emigrada. Os meios de comunicação, como a televisão e a rádio, contribuíram para a divulgação do tema e para sensibilizar a população para a sua relevância.

Apesar de se ter havido largos problemas, que incluíam a novidade do processo ou a escassez dos nomes registados nos boletins eleitorais que transitaram do regime anterior, o processo aumentou, substancialmente, o número de inscritos nos boletins, que passaram de cerca de 1,8 milhões para mais de 6,2 milhões de eleitores, após o recenseamento.

Para tanto contribuíram a obrigatoriedade do recenseamento e a mobilização da sociedade civil, nomeadamente dos partidos políticos, em torno do processo. Na organização do recenseamento, destacou-se o ministro da Administração Interna, Manuel da Costa Brás, que esteve na origem de vários departamentos do seu ministério, em que sobressai a criação do Secretariado Técnico para os Assuntos Políticos (STAP) (Decreto-Lei 746/74, de 27 de dezembro), trabalho que teve seguimento sob a batuta do seu sucessor António Arnão Metelo.

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Porém, como o Decreto-Lei n.° 126/75, de 13 de março, teve de dirimir conflitos provocados por identidades ou por semelhanças de denominações, siglas ou símbolos de partidos existentes, o levou à consignação de prazos que levantavam “obstáculos impeditivos, por razões de ordem técnica, do cumprimento da data inicialmente decretada para o dia da eleição de Deputados à Assembleia Constituinte”, o Presidente da República, general Francisco da Costa Gomes, pelo seu Decreto n.° 141-A/75 de 19 de março, usando da faculdade conferida pelo n.º 6 do artigo 7.° da Lei Constitucional n.° 3/74, de 14 de maio, houve por bem “alterar a data de 12 de abril de 1975 que foi marcada de harmonia com o artigo 11.º do Decreto-Lei n.° 621-C/74, de 15 de novembro, como data da eleição dos Deputados à Assembleia Constituinte para 25 de abril de 1975”. Tal data fora marcada pelo Decreto-Lei n.º 73-A/75, de 20 de fevereiro (artigo 11.º), que definia as normas a que devia obedecer a realização da eleição dos deputados à Assembleia Constituinte nos territórios sob administração portuguesa. E tal marcação já constituía uma alteração à data estabelecida na Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de maio.
Nestes termos, o caminho da realização das eleições para a AC, até ao início dos seus trabalhos foi assim:

Pouco depois da sua tomada de posse, a 15 de maio de 1974, o I governo provisório nomeou uma comissão para preparar uma proposta de lei eleitoral. Couberam à comissão relevantes decisões atinentes à capacidade eleitoral, ao sistema eleitoral e ao recenseamento. Integraram a comissão sete juristas ligados às principais forças políticas, para assegurar o pluralismo: José Magalhães Godinho, do Partido Socialista (PS); Jorge Miranda António Barbosa de Melo, do Partido Popular Democrático (PPD); Lino Lima, do Partido Comunista Português (PCP); José Manuel Galvão Teles, do Movimento de Esquerda Socialista (MES); Ângelo de Almeida Ribeiro, próximo do PS; Manuel João da Palma Carlos, próximo do Movimento Democrático Português (MDP). O trabalho da comissão era essencialmente técnico e nem partidos nem militares foram ouvidos nesta fase. A 12 de agosto, a proposta de lei eleitoral foi entregue ao II Governo Provisório. A discussão alternou entre o Conselho de Ministros e o Conselho de Estado, que a aprovou, em novembro de 1974.

O período que antecedeu as eleições ficou marcado por forte agitação política. Entre abril de 1974 e abril de 1975 tomaram posse quatro governos provisórios, várias vezes reorganizados, e dois presidentes da República. Houve várias entradas e saídas do Conselho de Estado, que não sobreviveu até à data da eleição. Esta agitação marcou o período de discussão da lei eleitoral, mas não colocou em risco a realização das eleições. O seu atraso, como se viu, foi motivado por razões de ordem administrativa, acolhidas pelos diplomas legais acima referidos.

É certo que houve situações arriscadas, no atinente às eleições, mas não foram os governos que as provocaram, sobretudo, antes da entrada em funcionamento da AC.

A 11 de março, António Spínola e seus apoiantes desencadearam uma operação militar que visava reconduzir o general à presidência e afastar os esquerdistas do controlo do processo. O golpe fracassado teve consequências políticas: a JNS e o Conselho de Estado foram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução (CR), que institucionalizou o MFA. A suspensão do ato eleitoral chegou a ser debatida na assembleia do MFA, de 11 para 12 de março, mas foi rejeitada pela maioria. Por outro lado, militares e alguns partidos de esquerda apelavam ao voto em branco de eleitores potencialmente inseguros.

Cedo se percebeu que, para um ato eleitoral livre, seria necessário começar do zero: a organização, a estrutura e a metodologia herdadas do Estado Novo, arcaicas e insuficientes, não serviam estas eleições. Foram, assim, postos em curso todos os procedimentos necessários, como se relatou acima. Porém, o grande desafio foi fazer o primeiro recenseamento em democracia. A expectativa era que se chegasse aos 5,5 milhões. Contudo, escasseava o tempo para planear e executar o recenseamento mais inclusivo da História portuguesa. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 621-A/74, de 15 de novembro, sustentava: a elaboração do recenseamento em tão curto prazo só seria viável se se transformasse, sob o impulso dos partidos, “numa jornada cívica à escala nacional”. E, no fim do período do recenseamento, registavam-se, acima das expectativas, mais de 6,2 milhões de eleitores. Cidadãos, partidos e serviços estatais ativamente no processo.

Concorreram 14 partidos, mas nenhum conseguiu apresentar listas em todos os círculos eleitorais, em parte, devido à fraca implantação territorial das forças políticas. O PCP, fundado em 1921, era o único a dispor de estrutura organizativa e ideológica, mas nunca tinha ido a votos. Porém, apesar do ambiente de incerteza, face ao peso eleitoral das forças políticas, as leis permitiram que os partidos se afirmassem e assumissem papel central na transição. Com efeito, só os partidos puderam apresentar candidaturas e escolha do sistema eleitoral de acordo com o princípio da representação proporcional favorecia o pluralismo e a representatividade das diferentes correntes políticas na assembleia. O sistema de listas fechadas e bloqueadas e a apresentação, no boletim de voto, das designações, das siglas e dos símbolos dos partidos facilitavam o processo de voto e fortaleciam as forças políticas, reforçando-lhes a visibilidade.

A campanha eleitoral começou a 2 de abril e contou com forte mobilização dos cidadãos e dos partidos, com grande adesão aos comícios, às manifestações e às sessões de esclarecimento. Havia dois posicionamentos. Mais à esquerda (PCP, MES, MDP e UDP – União Democrática Popular, por exemplo), via-se a legitimidade das eleições, como instrumento complementar à Revolução; os moderados (PS, PPD e CDS – partido do Centro Democrático Social) apostaram na conquista de votos como reforço da sua legitimidade. Esta dualidade foi também consequência do 11 de Março, que tornou mais difícil a cooperação entre os partidos moderados, com representação nos governos provisórios, e a extrema-esquerda, que se uniu.

A 11 de abril, foi celebrado o Pacto MFA/Partidos, subscrito pelo PS, pelo PPD, pelo PCP, pelo CDS, pelo MDP e pela FSP (Frente Socialista Popular). Os partidos signatários deveriam inscrever na Constituição as “conquistas revolucionárias” e as que viessem ocorrer ao longo da “via original de um socialismo português”. O CR manteria o poder sobre a constitucionalidade das leis, o monopólio da legislação militar e o poder de legislar sobre qualquer matéria urgente de interesse nacional. E representantes do MFA deveriam acompanhar os trabalhos da AC.

A 24 de abril, na véspera do ato eleitoral, ouvimos o discurso de Costa Gomes a apelar ao voto.

A 25 de abril de 1975, votaram mais de 5,712 milhões de portugueses (91,66% dos eleitores), valor histórico a significar a clara demonstração de apoio da população ao regime democrático que se consolidava. Dos 14 partidos concorrentes, sete obtiveram representação parlamentar. A grande surpresa (não foram permitidas sondagens durante a campanha) foi o fraco resultado do PCP, que se ficou pelos 12,46% (30 deputados) e foi a terceira força mais votada, contra as expectativas, em torno da sua capacidade de mobilização superior e da sua militância mais consolidada. À frente ficaram: o PS, com 37,87%, (116 deputados) e o PPD, com 26,39% (81 deputados). Em quarto lugar, ficou o CDS, ausente dos governos provisórios, mas com 7,61% dos votos (16 deputados). O MDP obteve 4,14% dos votos (cinco deputados) e a UDP (0,79%) e a ADIM – Associação para a Defesa dos Interesses de Macau (0,03%) conseguiram um deputado, cada uma. O ato eleitoral registou a menor abstenção de sempre: 8,34%.

Na primeira eleição em que as mulheres votaram, sem restrições, foram eleitos 230 homens e 20 mulheres. Os resultados traduziram-se numa assembleia mais moderada, com a sobreposição da legitimidade eleitoral sobre a alegada legitimidade revolucionária.

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O dia das eleições foi de genuína festa, cujo esplendor brilhava no rosto livre dos eleitores presentes nas assembleias de voto, em longas filas de espera, mas de esperança. E, a 9 de junho, iniciaram-se dos trabalhos da Assembleia Constituinte com a eleição de Henrique Barros (PS) para seu presidente. Era a inauguração do Portugal novo rumo à democracia formal.

Como era óbvio, após ter consultado, dias antes, as listas de eleitores, extraídas dos cadernos eleitorais, a ver se delas constava o meu nome e o do meu superior hierárquico, participei na festa, votando na 1.ª secção da Assembleia de Voto da freguesia da Sé, em Lamego, e nas andanças de rua. E um ano depois, a 25 de abril de 1976, dia da entrada em vigor da Constituição, aprovada e promulgada no dia 2, fui de Vila Nova de Foz-Coa a Lamego, festejar a democracia normalizada, com o voto para as primeiras eleições legislativas. O 25 de Abril valera a pena, pois sentia-me cidadão em pleno, de calças à “boca-de-sino”, casaquinha e boné!

2025.04.22 – Louro de Carvalho

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