Na quinta etapa dominical do caminho quaresmal, no Ano
C, a liturgia insta a libertarmo-nos de tudo o que nos escraviza e a
caminharmos, com coragem e decisão, para a meta que nos espera: a vida
renovada, o horizonte de liberdade e de felicidade que Deus oferece a todos os
seus filhos.
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O Deus que libertou os Hebreus da escravidão do Egito
anunciou aos exilados na Babilónia (Is 43,16-21) que irá concretizar nova intervenção salvadora em favor
do seu povo. Os exilados serão libertados e, acompanhados por Deus, percorrerão
um caminho que os levará, de novo, para a terra de onde tinham sido arrancados,
a terra onde corre leite e mel. É a metáfora do repto que Deus nos deixa na
Quaresma: caminharmos da escravidão para a liberdade, para a vida nova.
Aos exilados na Babilónia, Deus apresenta-se como o
rei, o criador de Israel, Aquele que, há séculos, estivera na origem do
acontecimento “fundante” que marcou a vida do povo de Deus: a libertação dos Hebreus
da escravidão do Egito. Então, Deus “abriu caminhos através do mar”, para que o
povo fugisse da terra da escravidão para a terra da liberdade, e foi Ele que venceu
as poderosas tropas do faraó e extinguiu o poderio egípcio como se apaga a
mecha que fumega. Ao agir assim, Deus provou o seu poder e mostrou o seu
compromisso com Israel.
Muitos séculos depois, o povo de Deus está, outra vez,
exilado em terra estrangeira. Muitos dos exilados vivem das memórias do
passado, agarrados a coisas que já lá vão. Que esse olhar para o passado não
signifique ficar estagnado, acomodado, incapaz de enxergar o futuro que se
prepara. Se alguém olhar para o passado, que seja para descobrir, nas ações de
Deus em favor do seu povo, um “padrão”: o Deus que interveio, outrora, para
libertar o seu povo é o Deus que sempre agirá da mesma forma, quando vir esse
povo maltratado e injustiçado. O Deus libertador e salvador de outrora será o
Deus salvador e libertador de hoje e de sempre.
Cientes disto, os exilados devem olhar para o futuro.
Se o fizerem, perceberão os sinais de novo êxodo, de nova libertação, do tempo
novo que está para chegar. Deus já está a preparar uma intervenção para salvar
o seu povo.
Quando o profeta proclama aos exilados esta mensagem,
o panorama político do antigo Médio Oriente estava a mudar. Ciro, o
conquistador persa, preparava-se para desmantelar o império babilónio. E o
profeta, atento aos sinais da História, vendo em Ciro o instrumento de Deus
para libertar o povo de Deus exilado na Babilónia, achava que os exilados
deviam ter apenas um pouco mais de paciência, até que Deus, através da ação de
Ciro, libertasse o povo e o fizesse voltar à terra de Judá, pois acontecerá um
novo êxodo.
O novo êxodo que Deus prepara para o seu povo é
descrito em termos grandiosos: Deus abrirá um largo e direito caminho no
deserto, a fim de que os exilados façam, tranquilamente, a viagem de regresso à
sua terra; fará brotar rios na terra árida, para que o povo não sofra, ao longo
do caminho, os tormentos da sede; e todos, até os animais selvagens, vão
reconhecer a ação salvadora de Deus em favor do seu povo. Unir-se-ão todos – os
seres humanos e todos os outros seres criados – para cantar a glória e o poder
de Deus. Enfim, a atuação de Deus manifestará, de forma clara, o amor e a solicitude
de Deus pelo seu povo. Ante a ação de Javé, Israel tomará consciência de que é
o povo eleito e dará a resposta adequada: louvará o seu Deus pelos dons
recebidos.
***
No Evangelho
(Jo 8,1-11) Jesus mostra, a
partir de uma mulher acusada de cometer adultério, como é que Deus lida com as
nossas decisões erradas: “Eu não te condeno. Vai e não tornes a pecar”. O
perdão de Deus, fruto do seu amor, fala mais alto do que o pecado. A preocupação
de Deus não é castigar quem falhou, mas é apontar aos seus filhos um caminho
novo, de liberdade, de realização e de vida sem fim.
O relato da mulher apanhada em adultério terá sido introduzido,
tardiamente, no Quarto Evangelho, pois não aparece nos manuscritos anteriores
ao ano 300. É ignorado pelos Padres da Igreja até ao século IV. Depois, a sua
canonicidade é defendida por Santo Agostinho, por Santo Ambrósio e por São
Jerónimo que o colocam noutro lugar (depois de Jo 7,36). Alguns manuscritos antigos inserem-no no Evangelho de
Lucas (após Lc 21,38), em consonância
com o interesse de Lucas em vincar a misericórdia de Jesus para com os
pecadores e proscritos. Porém, a misericórdia é transversal aos Quatro
Evangelhos.
Não se sabe quem recolheu o relato nem por que portas
veio parar ao Evangelho de João. Alguns viram no ostracismo a que ele foi
votado, durante algum tempo, a dificuldade da Igreja primitiva em aceitar uma
história escandalosa, por o adultério ser considerado totalmente incompatível
com a condição dos batizados, levando inclusive à exclusão da comunidade
cristã. Todavia, o facto de o texto, depois de algum tempo, se ter imposto e
aparecer num dos evangelhos confirma a sua autenticidade: não foi possível
silenciar um episódio que se baseava numa tradição consistente. E a Igreja
acabou por aceitar o relato como inspirado e por o incluir no tesouro da
Palavra de Deus.
A cena situa-nos no Templo de Jerusalém. Jesus tinha
pernoitado no Monte das Oliveiras; mas, pela manhã, dirigira-se, de novo, para
o Templo, onde costumava ensinar todos aqueles que iam ao seu encontro.
Jesus está sentado na esplanada do Templo, na atitude
clássica dos “mestres” que ensinam os seus discípulos. “Sentado”, como os
rabis, vai oferecer a todos os que ali estão uma inesquecível lição sobre o
modo como Deus olha para a fragilidade dos seus filhos e das suas filhas.
Os escribas e os fariseus apresentam-se a Jesus com
uma mulher, contam-lhe que ela foi apanhada em flagrante adultério. Lembram a
Jesus o que a Lei determina nestes casos, mas perguntam a Jesus a sua opinião
sobre a matéria. A Lei determinava que, “se um homem cometer adultério com a
mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a
morte”. Contudo, os acusadores desta mulher, não fazem referência ao homem com
quem ela estava a cometer adultério (ela não podia cometer adultério sozinha).
As mulheres eram “o elo mais fraco” na cadeia da organização social. Nem sempre
se aplicaria a lei, mas, no exemplo presente, os “juízes” da mulher pareciam
dispostos a aplicá-la. No entanto, o autor do relato revela que aqueles
escribas e fariseus estavam, sobretudo, interessados em “armarem uma cilada a
Jesus e a terem pretexto para O acusar”. Se Ele optasse pela clemência, contra
o que o estipulado por lei, seria acusado de fazer da Lei letra morta e
perderia o direito de Se apresentar com qualquer pretensão messiânica; mas, se aprovasse
a lapidação da mulher, contradiria tudo o que ensinava sobre perdão, misericórdia
e compaixão.
Não era uma questão meramente académica, mas uma
decisão que implicava a vida ou a morte de uma pessoa. A mulher acusada está de
pé no meio dos presentes, na posição que o acusado ocupa, quando é apresentado
ao tribunal. Os acusadores não se dirigem à mulher, visto que a sua
culpabilidade está definida; dirigem-se apenas a Jesus, pois o que lhes
interessa é comprometer Jesus. E, colocada a questão, todos os que assistem à
cena estão pendentes da reação de Jesus.
Jesus não respondeu logo. “Inclinou-Se e começou a
escrever com o dedo no chão”.
Há quem ache que Jesus estaria a escrever a sentença
que ia proferir, antes de a proclamar; e há quem ligue o gesto de Jesus a um
texto do profeta Jeremias, segundo o qual os que se afastam de Deus “serão
escritos no pó”, isto é, na terra dos mortos. Porém, o mais provável é que se
trate de uma pausa para ganhar tempo e para acalmar a sua irritação, face ao
descaramento daqueles vigilantes da moral e dos bons costumes. Também serviria
para que os escribas e fariseus se confrontassem com a gravidade do que estavam
a exigir, em nome de Deus: com o seu silêncio, Jesus convidava-os, sem
palavras, a passar do domínio da Lei para o domínio da misericórdia.
Contudo, os que acusavam a mulher não quiseram ou não
souberam aproveitar o ensejo que lhes foi dado para chegarem, por si próprios,
à compaixão. Continuaram a interrogar Jesus, exigindo uma resposta. Foi nessa
altura que Jesus tomou a palavra para dizer: “Quem de entre vós estiver sem
pecado, atire a primeira pedra”. O “dito” de Jesus convidava aquela gente a
tomar consciência de que o pecado é consequência dos limites humanos e que
ninguém está isento dessa condição. Poderá alguém que tem consciência dos seus
limites e falhas ter a ousadia de acusar outros e de exigir que lhes seja dada
a morte como castigo? Jesus, depois de atirar aos acusadores da mulher esta
“provocação” que lhes desmascarava a hipocrisia, continuou a escrever no chão (há
quem pense que Jesus estava a confiar à areia os erros dos acusadores),
dando-lhes tempo para interiorizarem o que tinha sido dito e para tirarem as
conclusões que se impunham. O texto acrescenta que, depois de terem ouvido as
palavras de Jesus, os escribas e fariseus “foram saindo um após outro, a começar
pelos mais velhos”. A indicação pode querer dizer que os mais velhos têm uma experiência
mais longa da fragilidade humana.
Nessa altura Jesus ergueu-se e olhou para a mulher. A
controvérsia com os escribas e fariseus tinha terminado, mas a mulher esperava
uma palavra de Jesus. E Jesus, depois de ter verificado que não havia ali
ninguém para emitir uma decisão de condenação e que ninguém a condenara, disse
simplesmente à mulher: “Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.
Jesus não veio para condenar ninguém. Veio mostrar-nos
o rosto e o coração de um Deus que ama, incondicionalmente, os seus filhos e
que não os condena pelas suas fragilidades. Porém, a intervenção de Jesus não
se fica pelo “não condenar”. Ao mesmo tempo, Jesus “liberta” a mulher,
apontando-lhe um caminho novo. Convida-a a fazer escolhas que a tornem livre e
que não a aprisionem numa vida sem saída: “Vai em paz e não tornes a pecar.”
Jesus mostra que Deus está do lado das pessoas que são
marginalizadas pela sociedade: os pobres, os doentes, os pecadores, os
oprimidos. Deus está contra a morte e pela vida. A dinâmica de Deus é uma
dinâmica de misericórdia, pois só o amor transforma e permite a superação dos
limites humanos. Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta, se
liberte da sua situação de erro e viva. É esta a realidade do Reino de Deus.
***
Na segunda
leitura (Fl 3,8-14), São Paulo partilha com os cristãos da cidade de
Filipos a sua experiência: desde que se encontrou com Cristo, o apóstolo deixou
para trás todo o lixo que lhe limitava os movimentos e que o impedia de correr
ao encontro de Cristo. A sua preocupação é identificar-se cada vez mais com
Cristo e correr para a meta final, onde espera encontrar a vida.
Ao exibicionismo e ao discurso pretensioso dos
“judaizantes”, que alardeiam os seus títulos de glória e os seus méritos,
enquanto cumpridores da Lei moisaica, Paulo contrapõe o seu próprio exemplo. Teria
mais razões do que outros para exibir os seus títulos: é hebreu genuíno, filho
de hebreus, da tribo de Benjamim; foi circuncidado com oito dias; foi fariseu
convicto, estudou a Lei na melhor escola de Jerusalém e viveu
irrepreensivelmente como filho da Lei. Porém, considera que tudo isso nada vale
ante a única coisa verdadeiramente decisiva: conhecer Jesus Cristo.
O termo “conhecer” deve ser entendido no mais genuíno
sentido da tradição bíblica, isto é, no sentido de “entrar em comunhão de vida
e de destino” com uma pessoa. O que Paulo procura, o que sente como
determinante na sua vida, é identificar-se com Cristo e viver em comunhão com
Cristo. Tudo o que não é “conhecimento” de Cristo – circuncisão, ritos da Lei
de Moisés, credenciais que os estudos rabínicos lhe outorgaram – são apenas
“lixo” (“skýbalon”: “esterco”, “excremento”), que deve ficar para trás. A
“justificação” que leva à vida não vem do cumprimento das obras da Lei, mas da adesão
(“fé”) a Cristo. Aderindo a Cristo, identificando-se com Cristo e vivendo em
comunhão com Ele, Paulo está seguro de que o seu destino final será a vida nova,
a ressurreição.
De resto, Paulo está consciente de que ainda tem um
longo caminho a percorrer, até atingir o destino final. A sua identificação com
Cristo é um processo em construção. Implica um esforço diário, uma luta nunca terminada.
Paulo sente-se como o atleta que corre em direção a uma meta, mas cônscio de
que a meta ainda está distante. Resta-lhe lançar-se para a frente, esquecer
tudo aquilo em que durante algum tempo tinha apostado e não tirar os olhos da
“meta” que é o encontro com Cristo. É o caminho que faz sentido para quem
descobre Cristo e a beleza da sua proposta.
Os Filipenses – e os crentes de todos os tempos e
lugares – devem imitar o exemplo de Paulo e correr decididos ao encontro de
Cristo, sem deixar que nada os distraia ou afaste desse objetivo.
2025.05.04.10
– Louro de Carvalho
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