domingo, 13 de abril de 2025

Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva

 

Na quinta etapa dominical do caminho quaresmal, no Ano C, a liturgia insta a libertarmo-nos de tudo o que nos escraviza e a caminharmos, com coragem e decisão, para a meta que nos espera: a vida renovada, o horizonte de liberdade e de felicidade que Deus oferece a todos os seus filhos.

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O Deus que libertou os Hebreus da escravidão do Egito anunciou aos exilados na Babilónia (Is 43,16-21) que irá concretizar nova intervenção salvadora em favor do seu povo. Os exilados serão libertados e, acompanhados por Deus, percorrerão um caminho que os levará, de novo, para a terra de onde tinham sido arrancados, a terra onde corre leite e mel. É a metáfora do repto que Deus nos deixa na Quaresma: caminharmos da escravidão para a liberdade, para a vida nova.

Aos exilados na Babilónia, Deus apresenta-se como o rei, o criador de Israel, Aquele que, há séculos, estivera na origem do acontecimento “fundante” que marcou a vida do povo de Deus: a libertação dos Hebreus da escravidão do Egito. Então, Deus “abriu caminhos através do mar”, para que o povo fugisse da terra da escravidão para a terra da liberdade, e foi Ele que venceu as poderosas tropas do faraó e extinguiu o poderio egípcio como se apaga a mecha que fumega. Ao agir assim, Deus provou o seu poder e mostrou o seu compromisso com Israel.

Muitos séculos depois, o povo de Deus está, outra vez, exilado em terra estrangeira. Muitos dos exilados vivem das memórias do passado, agarrados a coisas que já lá vão. Que esse olhar para o passado não signifique ficar estagnado, acomodado, incapaz de enxergar o futuro que se prepara. Se alguém olhar para o passado, que seja para descobrir, nas ações de Deus em favor do seu povo, um “padrão”: o Deus que interveio, outrora, para libertar o seu povo é o Deus que sempre agirá da mesma forma, quando vir esse povo maltratado e injustiçado. O Deus libertador e salvador de outrora será o Deus salvador e libertador de hoje e de sempre.

Cientes disto, os exilados devem olhar para o futuro. Se o fizerem, perceberão os sinais de novo êxodo, de nova libertação, do tempo novo que está para chegar. Deus já está a preparar uma intervenção para salvar o seu povo.

Quando o profeta proclama aos exilados esta mensagem, o panorama político do antigo Médio Oriente estava a mudar. Ciro, o conquistador persa, preparava-se para desmantelar o império babilónio. E o profeta, atento aos sinais da História, vendo em Ciro o instrumento de Deus para libertar o povo de Deus exilado na Babilónia, achava que os exilados deviam ter apenas um pouco mais de paciência, até que Deus, através da ação de Ciro, libertasse o povo e o fizesse voltar à terra de Judá, pois acontecerá um novo êxodo.  

O novo êxodo que Deus prepara para o seu povo é descrito em termos grandiosos: Deus abrirá um largo e direito caminho no deserto, a fim de que os exilados façam, tranquilamente, a viagem de regresso à sua terra; fará brotar rios na terra árida, para que o povo não sofra, ao longo do caminho, os tormentos da sede; e todos, até os animais selvagens, vão reconhecer a ação salvadora de Deus em favor do seu povo. Unir-se-ão todos – os seres humanos e todos os outros seres criados – para cantar a glória e o poder de Deus. Enfim, a atuação de Deus manifestará, de forma clara, o amor e a solicitude de Deus pelo seu povo. Ante a ação de Javé, Israel tomará consciência de que é o povo eleito e dará a resposta adequada: louvará o seu Deus pelos dons recebidos.

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No Evangelho (Jo 8,1-11) Jesus mostra, a partir de uma mulher acusada de cometer adultério, como é que Deus lida com as nossas decisões erradas: “Eu não te condeno. Vai e não tornes a pecar”. O perdão de Deus, fruto do seu amor, fala mais alto do que o pecado. A preocupação de Deus não é castigar quem falhou, mas é apontar aos seus filhos um caminho novo, de liberdade, de realização e de vida sem fim.

O relato da mulher apanhada em adultério terá sido introduzido, tardiamente, no Quarto Evangelho, pois não aparece nos manuscritos anteriores ao ano 300. É ignorado pelos Padres da Igreja até ao século IV. Depois, a sua canonicidade é defendida por Santo Agostinho, por Santo Ambrósio e por São Jerónimo que o colocam noutro lugar (depois de Jo 7,36). Alguns manuscritos antigos inserem-no no Evangelho de Lucas (após Lc 21,38), em consonância com o interesse de Lucas em vincar a misericórdia de Jesus para com os pecadores e proscritos. Porém, a misericórdia é transversal aos Quatro Evangelhos.

Não se sabe quem recolheu o relato nem por que portas veio parar ao Evangelho de João. Alguns viram no ostracismo a que ele foi votado, durante algum tempo, a dificuldade da Igreja primitiva em aceitar uma história escandalosa, por o adultério ser considerado totalmente incompatível com a condição dos batizados, levando inclusive à exclusão da comunidade cristã. Todavia, o facto de o texto, depois de algum tempo, se ter imposto e aparecer num dos evangelhos confirma a sua autenticidade: não foi possível silenciar um episódio que se baseava numa tradição consistente. E a Igreja acabou por aceitar o relato como inspirado e por o incluir no tesouro da Palavra de Deus.

A cena situa-nos no Templo de Jerusalém. Jesus tinha pernoitado no Monte das Oliveiras; mas, pela manhã, dirigira-se, de novo, para o Templo, onde costumava ensinar todos aqueles que iam ao seu encontro.

Jesus está sentado na esplanada do Templo, na atitude clássica dos “mestres” que ensinam os seus discípulos. “Sentado”, como os rabis, vai oferecer a todos os que ali estão uma inesquecível lição sobre o modo como Deus olha para a fragilidade dos seus filhos e das suas filhas.

Os escribas e os fariseus apresentam-se a Jesus com uma mulher, contam-lhe que ela foi apanhada em flagrante adultério. Lembram a Jesus o que a Lei determina nestes casos, mas perguntam a Jesus a sua opinião sobre a matéria. A Lei determinava que, “se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte”. Contudo, os acusadores desta mulher, não fazem referência ao homem com quem ela estava a cometer adultério (ela não podia cometer adultério sozinha). As mulheres eram “o elo mais fraco” na cadeia da organização social. Nem sempre se aplicaria a lei, mas, no exemplo presente, os “juízes” da mulher pareciam dispostos a aplicá-la. No entanto, o autor do relato revela que aqueles escribas e fariseus estavam, sobretudo, interessados em “armarem uma cilada a Jesus e a terem pretexto para O acusar”. Se Ele optasse pela clemência, contra o que o estipulado por lei, seria acusado de fazer da Lei letra morta e perderia o direito de Se apresentar com qualquer pretensão messiânica; mas, se aprovasse a lapidação da mulher, contradiria tudo o que ensinava sobre perdão, misericórdia e compaixão.

Não era uma questão meramente académica, mas uma decisão que implicava a vida ou a morte de uma pessoa. A mulher acusada está de pé no meio dos presentes, na posição que o acusado ocupa, quando é apresentado ao tribunal. Os acusadores não se dirigem à mulher, visto que a sua culpabilidade está definida; dirigem-se apenas a Jesus, pois o que lhes interessa é comprometer Jesus. E, colocada a questão, todos os que assistem à cena estão pendentes da reação de Jesus.

Jesus não respondeu logo. “Inclinou-Se e começou a escrever com o dedo no chão”.

Há quem ache que Jesus estaria a escrever a sentença que ia proferir, antes de a proclamar; e há quem ligue o gesto de Jesus a um texto do profeta Jeremias, segundo o qual os que se afastam de Deus “serão escritos no pó”, isto é, na terra dos mortos. Porém, o mais provável é que se trate de uma pausa para ganhar tempo e para acalmar a sua irritação, face ao descaramento daqueles vigilantes da moral e dos bons costumes. Também serviria para que os escribas e fariseus se confrontassem com a gravidade do que estavam a exigir, em nome de Deus: com o seu silêncio, Jesus convidava-os, sem palavras, a passar do domínio da Lei para o domínio da misericórdia.

Contudo, os que acusavam a mulher não quiseram ou não souberam aproveitar o ensejo que lhes foi dado para chegarem, por si próprios, à compaixão. Continuaram a interrogar Jesus, exigindo uma resposta. Foi nessa altura que Jesus tomou a palavra para dizer: “Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. O “dito” de Jesus convidava aquela gente a tomar consciência de que o pecado é consequência dos limites humanos e que ninguém está isento dessa condição. Poderá alguém que tem consciência dos seus limites e falhas ter a ousadia de acusar outros e de exigir que lhes seja dada a morte como castigo? Jesus, depois de atirar aos acusadores da mulher esta “provocação” que lhes desmascarava a hipocrisia, continuou a escrever no chão (há quem pense que Jesus estava a confiar à areia os erros dos acusadores), dando-lhes tempo para interiorizarem o que tinha sido dito e para tirarem as conclusões que se impunham. O texto acrescenta que, depois de terem ouvido as palavras de Jesus, os escribas e fariseus “foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos”. A indicação pode querer dizer que os mais velhos têm uma experiência mais longa da fragilidade humana.

Nessa altura Jesus ergueu-se e olhou para a mulher. A controvérsia com os escribas e fariseus tinha terminado, mas a mulher esperava uma palavra de Jesus. E Jesus, depois de ter verificado que não havia ali ninguém para emitir uma decisão de condenação e que ninguém a condenara, disse simplesmente à mulher: “Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.

Jesus não veio para condenar ninguém. Veio mostrar-nos o rosto e o coração de um Deus que ama, incondicionalmente, os seus filhos e que não os condena pelas suas fragilidades. Porém, a intervenção de Jesus não se fica pelo “não condenar”. Ao mesmo tempo, Jesus “liberta” a mulher, apontando-lhe um caminho novo. Convida-a a fazer escolhas que a tornem livre e que não a aprisionem numa vida sem saída: “Vai em paz e não tornes a pecar.”

Jesus mostra que Deus está do lado das pessoas que são marginalizadas pela sociedade: os pobres, os doentes, os pecadores, os oprimidos. Deus está contra a morte e pela vida. A dinâmica de Deus é uma dinâmica de misericórdia, pois só o amor transforma e permite a superação dos limites humanos. Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta, se liberte da sua situação de erro e viva. É esta a realidade do Reino de Deus.

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Na segunda leitura (Fl 3,8-14), São Paulo partilha com os cristãos da cidade de Filipos a sua experiência: desde que se encontrou com Cristo, o apóstolo deixou para trás todo o lixo que lhe limitava os movimentos e que o impedia de correr ao encontro de Cristo. A sua preocupação é identificar-se cada vez mais com Cristo e correr para a meta final, onde espera encontrar a vida.

Ao exibicionismo e ao discurso pretensioso dos “judaizantes”, que alardeiam os seus títulos de glória e os seus méritos, enquanto cumpridores da Lei moisaica, Paulo contrapõe o seu próprio exemplo. Teria mais razões do que outros para exibir os seus títulos: é hebreu genuíno, filho de hebreus, da tribo de Benjamim; foi circuncidado com oito dias; foi fariseu convicto, estudou a Lei na melhor escola de Jerusalém e viveu irrepreensivelmente como filho da Lei. Porém, considera que tudo isso nada vale ante a única coisa verdadeiramente decisiva: conhecer Jesus Cristo.

O termo “conhecer” deve ser entendido no mais genuíno sentido da tradição bíblica, isto é, no sentido de “entrar em comunhão de vida e de destino” com uma pessoa. O que Paulo procura, o que sente como determinante na sua vida, é identificar-se com Cristo e viver em comunhão com Cristo. Tudo o que não é “conhecimento” de Cristo – circuncisão, ritos da Lei de Moisés, credenciais que os estudos rabínicos lhe outorgaram – são apenas “lixo” (“skýbalon”: “esterco”, “excremento”), que deve ficar para trás. A “justificação” que leva à vida não vem do cumprimento das obras da Lei, mas da adesão (“fé”) a Cristo. Aderindo a Cristo, identificando-se com Cristo e vivendo em comunhão com Ele, Paulo está seguro de que o seu destino final será a vida nova, a ressurreição.

De resto, Paulo está consciente de que ainda tem um longo caminho a percorrer, até atingir o destino final. A sua identificação com Cristo é um processo em construção. Implica um esforço diário, uma luta nunca terminada. Paulo sente-se como o atleta que corre em direção a uma meta, mas cônscio de que a meta ainda está distante. Resta-lhe lançar-se para a frente, esquecer tudo aquilo em que durante algum tempo tinha apostado e não tirar os olhos da “meta” que é o encontro com Cristo. É o caminho que faz sentido para quem descobre Cristo e a beleza da sua proposta.

Os Filipenses – e os crentes de todos os tempos e lugares – devem imitar o exemplo de Paulo e correr decididos ao encontro de Cristo, sem deixar que nada os distraia ou afaste desse objetivo.

2025.05.04.10 – Louro de Carvalho

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