O Papa Francisco faleceu a 21 de abril, na segunda-feira subsequente ao I Domingo da Páscoa e, logo, em todo o Mundo, pairou um profundo silêncio cerzido de elogios, de lágrimas, de orações, de reflexão e, sobretudo, de exposição do seu legado.
Não me passa da cabeça que, enquanto alguns, conjeturavam sobre o conclave e sobre o perfil do sucessor, abanando o espantalho do temor de que o passado indesejável possa voltar, muitos mais alentavam a esperança de que o próximo Sumo Pontífice continuará a marcha de Francisco e até a revista de maior vitalidade. É certo que não é fácil suceder a Francisco, mas o Espirito Santo não está cansado de renovar a Igreja e a face da Terra.
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A este
respeito, apraz-me revisitar a mensagem prévia à Bênção Urbi et Orbi de 20 de abril, escrita por Francisco e pronunciada
por Monsenhor Diego Ravelli, mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias,
assinalando o ressoar do Aleluia na Igreja, a “correr de boca em boca, de
coração a coração”, cujo cântico “faz chorar de alegria” o povo de Deus. Com
efeito, do sepulcro vazio “chega, até nós, um anúncio sem precedentes: ‘Jesus,
o Crucificado, não está aqui; ressuscitou! […] Está vivo!” Assim, o amor, a luz,
a verdade, o perdão venceram o ódio, as trevas, a mentira, vingança. E, se o
mal não desapareceu da História, “já não lhe pertence o domínio”, sobre “quem
acolhe a graça”. Assim, em especial, para quem sente a dor e a angústia, fica a
certeza de que o seu “grito silencioso foi ouvido” e a suas lágrimas foram todas
recolhidas, pois, “na paixão e na morte de Jesus, Deus tomou sobre si todo o
mal do Mundo e, com a sua infinita misericórdia, derrotou-o”. Por isso,
exclamamos: “Ressuscitou Cristo, minha esperança.” De facto, “a ressurreição de
Jesus é o fundamento da esperança” e “a esperança não engana”, porque, fundada
em Cristo, não é evasiva, nem alienante, mas comprometida e responsabilizadora.Assim, “quem espera em Deus põe as suas mãos frágeis na grande e forte mão d’Ele, deixa-se levantar e põe-se a caminho”, tornando-se “peregrino de esperança, testemunha da vitória do Amor e do poder desarmado da Vida”.
No anúncio vigoroso de que “Cristo ressuscitou”, está o sentido da nossa existência, feita não para a morte, mas para a vida; e percebemos que “a Páscoa é a festa da vida”, ou seja, “Deus criou-nos para a vida e quer que a Humanidade ressurja”, sendo, a seus olhos, preciosas “todas as vidas”: a da criança no ventre da mãe, a do idoso ou a do doente, “considerados como pessoas a descartar, num número cada vez maior de países”. E a mensagem aponta o quotidiano desejo de morte, em tantos conflitos que ocorrem em diferentes partes do Mundo; a violência nas famílias, dirigida contra as mulheres ou contra as crianças; e o desprezo, em relação aos mais fracos, marginalizados e migrantes. Porém, em contraponto, Francisco “gostaria que voltássemos a ter esperança e confiança nos outros, mesmo nos que não nos são próximos ou que vêm de terras distantes com usos, modos de vida, ideias e costumes diferentes dos que nos são familiares, porque somos todos filhos de Deus”. E gostaria que “voltássemos a ter esperança de que a paz é possível” e desejava que, a partir da Igreja da Ressurreição, onde, neste ano, a Páscoa é celebrada, no mesmo dia, por católicos e por ortodoxos, irradie na Terra Santa e no Mundo a luz da paz”.
Sentindo-se “próximo dos cristãos que sofrem na Palestina e em Israel, bem como do povo israelita e palestiniano”, denunciou “o crescente clima de antissemitismo” a espalhar-se pelo Mundo; e, dirigindo o pensamento ao povo, em particular, à comunidade cristã de Gaza, onde o conflito continua a gerar morte e destruição e a provoca uma situação humanitária dramática e ignóbil”, apelou a que as partes beligerantes “cheguem a um cessar-fogo”, a “que se libertem os reféns” e a que “se preste assistência à população faminta”, desejosa da paz.
Pediu oração pelas comunidades cristãs do Líbano e da Síria, “que anseiam por estabilidade e participação no futuro das respetivas nações” e exortou “toda a Igreja a acompanhar, com atenção e com oração, os cristãos do Médio Oriente.
Depois, focou o sofrimento do povo do Iémen e o da martirizada Ucrânia, encorajando as partes “a prosseguirem os seus esforços para alcançar uma paz justa e duradoura”; recordou o Sul do Cáucaso e pediu oração “pela rápida assinatura e aplicação de um definitivo Acordo de paz entre a Arménia e o Azerbaijão”, que leve à reconciliação na região; rogou que “a luz da Páscoa inspire propósitos de concórdia nos Balcãs Ocidentais, apoie os responsáveis políticos a trabalhar para evitar a escalada de tensões e de crises e inspire os parceiros da região a rejeitar comportamentos perigosos e desestabilizadores”; e mencionou os povos africanos vítimas de violência e de conflitos, em especial, a República Democrática do Congo, o Sudão e o Sudão do Sul e todos quantos sofrem, devido às tensões no Sahel, no Corno de África e na Região dos Grandes Lagos, tal como os cristãos que em muitos lugares não podem professar livremente a fé.
A este respeito, sustentou que “não é possível haver paz”, onde não há liberdade religiosa, liberdade de pensamento e de expressão, nem respeito pela opinião dos outros, e que “não é possível haver paz, sem um verdadeiro desarmamento”. E relevou que a luz da Páscoa nos incita “a derrubar as barreiras que criam divisões e que acarretam consequências políticas e económicas”, “a cuidar uns dos outros, a aumentar a solidariedade mútua, a trabalhar em prol do desenvolvimento integral de cada pessoa humana”.
Apelou à ajuda ao povo do Myanmar que, a par de anos de conflito armado, enfrenta as consequências do sismo, em Sagaing, causador da morte de milhares de pessoas e de sofrimento para muitos sobreviventes, incluindo órfãos e idosos. Apelou “a todos os que, no Mundo, têm responsabilidades políticas, para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis, para ajudar os necessitados, para combater a fome e para promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento”, pois estas são as “armas” da paz. E apelou a que o princípio da humanidade seja sempre o eixo do agir quotidiano, pois, face à crueldade dos conflitos que atingem civis, atacam escolas e hospitais e agentes humanitários, não podemos esquecer que não são alvos, mas pessoas com alma e com dignidade.
Neste ano jubilar, o Pontífice fez votos por que a Páscoa seja ocasião propícia para libertar os prisioneiros de guerra e os presos políticos. Com efeito, “na Páscoa do Senhor, a morte e a vida enfrentaram-se num admirável combate”, mas “o Senhor vive para sempre”, infundindo, em cada um, a certeza de que somos chamados a participar na vida infinda, na qual “já não se ouvirá o fragor das armas, nem os ecos da morte”. E o apelo final foi: “Entreguemo-nos a Ele, o único que pode renovar todas as coisas.”
A rematar, o próprio Pontífice repetiu, com voz trémula, o voto pascal acabado de proferir por Diego Ravelli: “Feliz Páscoa para todos!”
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Entretanto, foi declarada a morte papal, organizado o velório
e preparado o funeral (para a Basílica de Santa Maria Maior) e as exéquias do
dia 26, na Praça de São Pedro, com a presença de 130 delegações de diversos
países, tendo comparecido 50 chefes de Estado e muitos peregrinos, não sem
antes o corpo de Francisco ser velado, na Basílica Apostólica, por enorme
número de fiéis – tudo sob a batuta do cardeal Kevin Joseph Farrell, camerlengo
da Igreja de Roma, o responsável executivo pelos assuntos da Santa Sé, cabendo,
durante o período de Sede Vacante, o
superior governo da Igreja ao Colégio Cardinalício, ou Sacro Colégio. A celebração das exéquias solenes foi presidida pelo cardeal Giovanni Battista Re, decano do Colégio Cardinalício, que, na homilia, apontou o lugar onde Francisco celebrou, tantas vezes, a Eucaristia e presidiu a grandes encontros, mas onde, agora, rezamos de “coração triste, mas sustentados pelas certezas da fé, que nos garante que a existência humana não termina no túmulo, mas na casa do Pai, numa vida de felicidade que não terá ocaso”.
Tendo salientado, com gratidão, a presença de todos, dirigiu deferente saudação e vivo agradecimento aos chefes de Estado, aos chefes de Governo e às delegações oficiais que foram de muitos países para manifestar afeto, veneração e estima pelo Papa, assim como sublinhou que a manifestação popular de afeto e de adesão dos últimos dias mostram quanto “o intenso pontificado do Papa Francisco tocou mentes e corações”.
No ato de entrega da alma do amado Pontífice a Deus, sobe a Deus a oração de todos, “para que Ele lhe conceda a felicidade eterna, no horizonte luminoso e glorioso do seu imenso amor”.
O cardeal Re citou o episódio do Evangelho de João em que o Mestre dialoga com Pedro, solicitando-lhe a tríplice confissão de amor e, confiando-lhe, em troca, o encargo de apascentar os cordeiros e as ovelhas do rebanho, para explicitar que a tarefa de Pedro e dos seus sucessores “é um serviço de amor, na senda do Mestre e Senhor, Jesus Cristo, que ‘não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos’.” E, daí, passou ao perfil de Francisco, o qual, apesar da fragilidade, nesta reta final, e do seu sofrimento, “escolheu percorrer este caminho de entrega, até ao último dia da sua vida terrena”, seguindo as pegadas do Senhor e bom Pastor, “que amou as suas ovelhas, até dar a própria vida por elas”. E, no dizer do celebrante, “fê-lo com força e serenidade, junto do seu rebanho, a Igreja de Deus, ciente da frase de Jesus citada pelo Apóstolo Paulo: ‘A felicidade está mais em dar do que em receber’.”
Quando o cardeal Bergoglio foi eleito para suceder a Bento XVI, trazia a experiência da vida religiosa na Companhia de Jesus, bem como a de 21 anos de ministério pastoral na Arquidiocese de Buenos Aires, como bispo auxiliar, como bispo coadjutor e, em especial, como arcebispo.
Segundo o celebrante, a adotação do nome Francisco revelou-se, logo, como o programa e o estilo em que basearia o pontificado, inspirando-se em São Francisco de Assis. O seu temperamento e a sua forma de orientação pastoral imprimiram a marca da sua forte personalidade no governo da Igreja, em contacto direto com cada pessoa e com as populações, no desejo de “ser próximo a todos, com atenção especial às pessoas em dificuldade, gastando-se sem medida, em particular, pelos últimos da terra, os marginalizados”. O Papa do povo, de coração aberto a todos, foi atento ao que, de novo, surgia na sociedade e ao que o Espírito Santo suscitava na Igreja.
De vocabulário caraterístico e de linguagem rica em imagens e em metáforas, iluminou os problemas do nosso tempo com a sabedoria do Evangelho, dando resposta à luz da fé e encorajando-nos a viver como cristãos os desafios e as contradições destes anos cheios de mudanças, que descrevia como uma “mudança de época”.
O cardeal Re releva a grande espontaneidade e uma maneira informal de Francisco “de se dirigir a todos, mesmo às pessoas afastadas da Igreja”. E, “sensível aos dramas de hoje, Francisco partilhou, em pleno, as angústias, os sofrimentos e as esperanças do nosso tempo da globalização e, com uma mensagem capaz de chegar ao coração das pessoas de forma direta e imediata, dedicou-se a confortar e a encorajar”, sublinhou o orador homilético, considerando o seu carisma de acolhimento e de escuta, associado a um modo de se comportar, que é próprio da sensibilidade dos nossos dias, que tocou os corações e procurou “despertar energias morais e espirituais”.
Do pontificado de Francisco, o cardeal Re destaca o primado da evangelização, “difundindo, com um claro cunho missionário, a alegria do Evangelho, que foi o título da sua primeira exortação apostólica Evangelii gaudium”, preconizando “uma alegria que enche de confiança e de esperança o coração de todos aqueles que se entregam a Deus”.
Do conceito franciscano de Igreja, ressalta a imagem da casa para todos e com as portas sempre abertas; e a imagem do “hospital de campanha”, após uma batalha em que houve muitos feridos. Isto, para sermos uma Igreja desejosa de cuidar dos problemas das pessoas e das grandes angústias que dilaceram o Mundo, “capaz de se inclinar sobre cada homem, independentemente da sua fé ou condição, e curando as suas feridas”. Foram, por isso, inúmeros os gestos e exortações em prol dos refugiados e dos deslocados e constante a sua insistência em agir a favor dos pobres.
O cardeal focou algumas das viagens de Francisco. Desde logo, a primeira, que foi a Lampedusa, ilha-símbolo do drama da emigração, com milhares de pessoas afogadas no mar, a viagem a Lesbos, com o Patriarca Ecuménico e o Arcebispo de Atenas, e a celebração da Missa junto da fronteira com os Estados Unidos da América (EUA), aquando da viagem ao México. Das suas 47 viagens apostólicas, ficará para a História, em especial, a que fez ao Iraque, desafiando todos os riscos, a qual foi bálsamo para as feridas do povo iraquiano, que tanto sofrera com a ação desumana do Estado Islâmico, e muito relevante para o diálogo inter-religioso, outra dimensão notável do seu trabalho pastoral. E com a visita a quatro nações da Ásia-Oceânia, o Papa chegou “à periferia mais periférica do Mundo”.
Francisco deu centralidade ao Evangelho da misericórdia, vincando que Deus não se cansa de perdoar: perdoa sempre, seja qual for a situação de quem pede perdão e regressa. Assim, proclamou o jubileu da Misericórdia, considerando a misericórdia “o coração do Evangelho”. Misericórdia e alegria do Evangelho são palavras-chave. Em contraste com a “cultura do descarte”, preconizou a cultura do encontro e da solidariedade. O tema da fraternidade atravessou todo o pontificado. Assim, na encíclica Fratelli Tutti, reanimou a aspiração mundial à fraternidade, porque todos somos filhos do Pai que está nos céus e todos pertencemos à mesma família humana. E, na visita aos Emirados Árabes Unidos, assinou o documento sobre a “Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum”.
Dirigindo-se a homens e mulheres de todo o Mundo, na encíclica Laudato si’, chamou a atenção para a corresponsabilidade de todos, quanto à casa comum: “Ninguém se salva sozinho.”
Ante guerras, com horrores desumanos, Francisco levantou, incessantemente, a voz, implorando a paz e convidando à sensatez, à negociação honesta para encontrar soluções possíveis, porque a guerra “é sempre uma derrota dolorosa e trágica para todos”. Na verdade, “construir pontes e não muros” é a exortação recorrente, no serviço da fé do sucessor de Pedro, sempre unido ao serviço do homem em todas as suas dimensões.
Por fim, o celebrante declarou que, “em união espiritual com toda a comunidade cristã”, se rezou por Francisco, para que Deus o acolha. E, porque ele concluía os discursos e encontros, pedindo que não vos esquecêssemos de rezar por si, a Igreja roga-lhe que reze por nós e que a abençoe, assim como a Roma e ao Mundo inteiro, como fizera no Domingo de Páscoa do balcão central da Basílica de São Pedro, “num último abraço a todo o povo de Deus” e à Humanidade que procura a verdade, de coração sincero, e que segura bem alto a chama da esperança”.
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O legado do Papa
Francisco será concretizado e perpetuar-se-á, se for relido nos seus discursos,
nos seus escritos, nas suas conversas informais e no seu estilo de vida, bem
como no que dizem dele as almas de olhar límpido e de coração amigo da
sabedoria.Agora, e só agora, é o tempo do conclave!
2025.04.26 – Louro de Carvalho
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