sábado, 26 de abril de 2025

O 25 de Abril na ótica dos órgãos de soberania cimeiros: PR e AR

 
A 25 de abril deste ano de 2025, celebrámos o 51.º aniversário da Revolução dos Cravos e o 50.º aniversário das eleições para a Assembleia Constituinte (AC), as primeiras eleições livres (25/04/1975), de que resultaram já 17 eleições para a Assembleia da República (AR), sendo que, a 18 de maio, iremos, de novo, às urnas, em virtude da recente dissolução parlamentar. Cumpriram-se 16 legislaturas (a primeira teve, de permeio, eleição intercalar, que não inaugurou nova legislatura). A efeméride foi celebrada, protocolarmente, na AR, embora dissolvida, com discursos e exposições, em muitas outras coletividades, públicas e privadas, e em muitos outros lugares, incluindo as ruas, sempre dinâmicas, nestas comemorações.
***
Desta vez, as comemorações ficaram marcadas pelo luto nacional, em razão do falecimento do Papa Francisco, o que foi consensual, exceto o facto de o governo ter adiado, para 2 de maio as ações de festa e exposições, a seu cargo. Assim, a sessão solene da AR abriu com um voto de pesar pela morte de Francisco, apresentado pelo presidente da AR, José Pedro Aguiar-Branco, aprovado por unanimidade e seguido do minuto de silêncio.
O texto considera que os 12 anos de pontificado de Francisco “representaram, para a Igreja e para o Mundo, um decisivo apelo à fraternidade, à misericórdia e à paz”. Por isso, a doutrina social e ecológica que escreveu pôs, “no centro do debate público mundial, conceitos como a ‘amizade social’, a ‘fraternidade universal’ e a ‘ecologia integral’”, instando à “reflexão crítica sobre a tecnologia, a relação com o Mundo criado, a anomia social e o sistema económico”.
Ante a “força uniformizadora da globalização”, na ótica de Aguiar-Branco, o Pontífice “valorizou as culturas vernáculas” e “promoveu importantes projetos, como o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, as Scholas Ocurrentes e a Economia de Francisco”, instando a que “se desbravassem novos caminhos de convivência humana”.
Disse o presidente da AR que o Papa “apoiou, com palavras e gestos, os mais pobres de entre os pobres” e que “visitou prisões e hospitais, campos de refugiados e bairros degradados”. Recordou que, “em 2015, proclamou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia”, mas não tem razão em frisar que não foi “a partir de Roma, mas de Bangui, na República Centro-Africana”. De facto, o Ano Jubilar foi convocado a partir de Roma, mas a abertura da primeira Porta Santa ocorreu em Bangui, antes de ocorrer em Roma.
Entretanto, com razão, lembrou que o Papa, “quatro anos depois, beijou os pés dos líderes de três grupos armados do Sudão do Sul, num gesto profético de defesa da paz”. Mais referiu o número de visitas apostólicas a 67 países, incluindo Ur, terra Abraão, de onde o Papa lançou “um poderoso apelo ao diálogo com judeus e [com] com muçulmanos”. Recordou que Francisco “assinou, com o Grande Imã de Al-Azhar, um relevante documento inter-religioso sobre a fraternidade humana” e que “visitou todos os continentes habitados, dando preferência às periferias e alargando o alcance da voz da Igreja”. E não esqueceu que Francisco alertava que “não vivemos uma época de mudanças, mas uma mudança de época” e que estávamos numa “guerra mundial em pedaços”; que defendeu “a dignidade de toda a vida humana”, a ponto de rever o Catecismo da Igreja Católica (CIC), condenando “a pena de morte em todas as circunstâncias”; que sustentava que a política, “quando vivida como serviço, é a mais alta forma de caridade”; e que “atravessou, com solitária decisão, uma Praça de São Pedro vazia”, para declarar, no ponto mais dramático da pandemia de covid-19, que “ninguém se salva sozinho”.
Depois, salientou que o Para era “um bom amigo de Portugal”, pois criou quatro cardeais portugueses e visitou, por duas vezes, o país: em 2017, para o centenário das Aparições de Fátima e a canonização dos Pastorinhos, e em 2023, para a Jornada Mundial da Juventude.
Por tudo isto, a AR manifestou pesar pela morte do Papa Francisco, dirigindo condolências aos católicos, pela “partida do seu pastor universal”, e uma palavra de solidariedade a todas as pessoas que “nele encontraram uma referência espiritual e moral”. Com efeito, o seu legado de pastor e de líder religioso e de “estadista e responsável político continuará revestido de significado e atualidade, particularmente no contexto que o mundo atravessa”.
Não sei se um político líder de um órgão de soberania poderia dizer melhor.
***
​No seu discurso, o presidente da AR, vincando que “celebramos o 25 de Abril”, focou-se nas “primeiras eleições livres”, em que foram eleitos os deputados para a AC, com a missão de “dar uma Constituição ao país”, que merecem destaque, por terem cumprido.
Evocou, também, “cada um dos cinco milhões, setecentos e onze mil, oitocentos e vinte e nove portugueses que, naquele dia, há 50 anos, foram votar”, sem “antes terem vivido em democracia”, sem saberem o que esperar dela, sem sondagens, nem “ideia da real implantação dos diferentes partidos”, bem como “sem garantias de que o resultado seria aceite por todos” e, mesmo, “sem certezas de que estariam seguros no exercício do voto”.
Porém, no dizer do orador, votaram “por um misto idealismo e [de] sentido de responsabilidade”. E, podendo e devendo celebrar o seu gesto, “devemos, sobretudo, estar à altura dele”.
Depois, apontando a ideia de que “os Portugueses não confiam nos políticos” opinou que tal falta de confiança “não se deve apenas aos casos mais mediáticos”, nem “à desinformação ou ao populismo”. Perorou sobre a confusão entre causas e consequências, para sentenciar que a abstenção, a desinformação e o populismo não são causas, mas consequências, tendendo nós a passar “mais tempo a discutir as consequências do que as causas”. E alvitrou que a raiz do problema “é, tantas vezes, a incapacidade de apresentar resultados, de falar de futuro e de o construir” e, sobretudo, “de estar à altura de quem nos elegeu”, o que é válido para Portugal e para a Europa” – espaços de cimeiras, “com dificuldade em chegar a decisões concretas”, de abundantes relatórios, mas com falha “na hora de resolver os problemas”, de análise e de comentário da realidade e de indignação, mas tropeçando, “tantas vezes, na indecisão”.
E entrou nos reptos atuais. Em vez do choque “com o que se passa nas universidades americanas, devíamos aproveitar e captar novos talentos”, trazendo “os melhores cérebros para a Europa”; em vez do susto “com as tarifas americanas”, devíamos “abrir novos mercados para a Europa, concluir os acordos comerciais pendentes e preparar outros”; em vez da indignação “com o comportamento de alguns países europeus, quanto à guerra na Ucrânia”, devíamos discutir “um novo tratado para a Europa” (a reforma das instituições europeias é adiada, década após década); e, em vez da preocupação com “o isolamento da Europa, devíamos trabalhar para o alargamento” (“o último alargamento foi há 12 anos” e “muitos países esperam decisões” da União).
Depois (suponho na subjacência da máxima marxista: “compete aos filósofos analisar e compreender o Mundo e aos políticos transformá-lo”), Aguiar-Branco sentenciou: “Os políticos não podem ser meros comentadores e analistas da realidade, como se não tivessem os instrumentos, o poder e o mandato para alterar o estado das coisas. Os políticos não são espetadores da realidadeSão construtores da realidade. É assim que os cidadãos nos olham. É para isso que nos elegem. E é isso que esperam e exigem de nós. Exigem-nos que tenhamos uma visão para o país, uma ideia aspiracional para o futuro.”
Logo a seguir, clama que “tantas vezes, não conseguimos cumprir esta missão”, ao prometer e não fazer, ao abdicar dos princípios (como a presunção de inocência ou a liberdade de expressão) e dos direitos por que lutámos, ao promover “a desconfiança no sistema e nos seus fundamentos”, ao subir o tom da discussão, para simular discordância que não é tão profunda, ao não olhar “para o que temos em comum”, preferindo focar o que “nos divide”, enfim, ao abdicar dos consensos.
No âmbito dos consensos, o presidente da AR considerou a legitimidade da discordância na política de imigração, e a concordância na necessidade de “integrar quem chega”; da discordância no papel do Ministério Público (MP), e a concordância na necessidade da reforma da Justiça; da discordância no papel do Estado na sociedade, e a concordância no peso excessivo da carga fiscal e na necessidade de modernização e de eficiência na administração; da discordância na disciplina de Cidadania ou nos contratos de associação, e a concordância na necessidade de a escola pública “atrair mais e melhores professores”; enfim, da discordância, uns dos outros, mas a concordância na necessidade de estabilidade política e na certeza de que “o povo a deseja” (aqui, uma pitada de eleitoralismo).
Voltando às eleições de 1975, Aguiar-Branco enalteceu o “voto de confiança à democracia”, por parte dos eleitores de então, o que se espelhou na afluência de 92% dos eleitores, bem como na entusiasta movimentação das ruas, contra as vozes de quem dizia que “os Portugueses não estavam prontos para a democracia, que não a desejavam [ou] que ela não ia bem com o caráter português”. E, como vincou, de Norte a Sul, “estabeleceram-se milhares de secções de voto”, com “o esforço da Comissão Nacional de Eleições, de autarcas, de representantes dos partidos políticos e […] de muitos, muitos cidadãos – pessoas anónimas, que nada pediram em troca, nem uma senha de presença”.
Estranha que não tenha havido “um gesto de reconhecimento público”, como agraciamento ou condecoração, apesar de eles e elas, movidos por um apurado sentido de dever cívico, não terem faltado à chamada. Por isso, revelou haver tomado a liberdade de convidar a Dra. Maria Emília Brederode Santos “para estar presente nesta sessão solene”, por ter sido “delegada numa mesa de voto na freguesia de Campo de Ourique”, assim como “outros voluntários que, naquele dia, também estavam de serviço nas mesas de voto”. São na ótica sustentada do presidente da AR, exemplos da assunção do “sentido de responsabilidade de tantos milhares de portugueses que, como eles, não faltaram ao país”.
E relevou que, “se a democracia funciona, é porque alguém, no anonimato mais nobre e com o sentimento mais genuíno de exigência de intervenção cívica, a fez e a faz funcionar, no momento maior da livre expressão da vontade do povo português”. Por isso, a todos deixou um “obrigado”.
Por fim, nos 51 anos da Revolução dos Cravos, sentiu o dever de citar outro revolucionário, o Papa Francisco, que exortava, em Lisboa: “Abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início de um grande espetáculo. Não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!
E, concluindo que é isto que se nos pede, deixou o apelo: “Que saibamos renunciar ao medo, como tática; à divisão, como estratégia; ao fatalismo, como desígnio. E que tenhamos a ousadia de construir o futuro juntos. Só assim estaremos à altura dos cidadãos que nos elegem. Se tivermos tanta fé na democracia quanto eles, todos os dias, demonstram ter.​”
***
O presidente da AR interveio na sequência da intervenção dos líderes dos grupos parlamentares. Como era óbvio, todos falaram das primeiras eleições, do Papa e do 25 de Abril, com regozijo, com muitas críticas ao que está por fazer e, sobretudo, com lamentos pelos retrocessos que a desvergonha do tempo humano instilou nas sociedades. E todas estas cambiantes discursivas parecem ecoar na alocução de Aguiar Branco, ou como concordância, ou como discordância e resposta, ou como aditamento, quiçá por algo ter ficado omisso.
Entretanto, a sessão solene foi encerrada com discurso do Presidente da República, apelando a que a evocação de datas, como o 25 de Abril seja “mais doação do que proclamação” e que se procurem “novos caminhos” e “novas metas”, com espírito “exigente, renovador”.
Segundo o chefe de Estado, o exemplo do Papa Francisco insta a “que as evocações como a de hoje, a do 25 de Abril, sejam mais doação do que proclamação, mais encarnação de serviço do que afirmação de missão já cumprida, mais futuro do que passado” e a “que se não confunda o fundamental com o acessório, o duradouro com o efémero”. Nestes termos, o PR frisou que “o duradouro é o espírito que deve ser exigente, renovador, desbravador de novos caminhos, de novas metas, com a sua vivência mobilizadora”, enquanto “o efémero é a autocontemplação de cada momento, o autocomprazimento de cada aparente sucesso, a autoflagelação de cada infortúnio”.
A questão “25 de Abril sempre?” defendeu que sim,  principalmente, “se com a incessante busca dos valores, do pleno e descomplexado abraço a todas as pessoas e da atenção a todas as coisas, e da radical humildade que viveu e nos ensinou a viver Francisco”.
Antes, o chefe de Estado, assinalando o modo como Francisco seria enterrado, no dia 26, “num recanto de um templo, por detrás de uma discreta porta”, em caixão “sem nome se não o seu, Francisco”, vincou: “A recordar-nos que o infinitamente maior é infinitamente o mais pequeno de todos, e de que assim terminaremos todos, terminarão os que dominavam ou pensavam dominar o mundo: em pó ou cinza. Um sinal convidativo da pobreza material e espiritual, a não esquecer nunca.”
O PR apontou o Papa como exemplo, também pela humildade, “a humildade de reconhecer o erro, de reconhecer a imperfeição, de reconhecer a necessidade do recomeço”. Porém, o 25 de Abril em a ver com Francisco: Tudo, tudo: dignidade humana, paz, justiça, liberdade, igualdade, solidariedade, fraternidade, abertura, inclusão, serviço dos outros, preferência pelos ignorados, omitidos e silenciados”, assinalou.
E defendeu que é preciso um Mundo “sem senhores absolutos, monopolistas da verdade, donos da vida dos demais, pelo contrário, humildes, servindo os outros do começo ao fim da vida”.
Comparou a situação do país, há meio século, com a atual, referindo que “o 25 de Abril nasceu também num ambiente nacional de negação das liberdades, de proibição do pluralismo, de ausências básicas de saúde para mães, recém-nascidos e crianças, de taxas dramáticas de mortalidade infantil”; “de curta e insuficiente escolaridade obrigatória, de incipiente segurança social para trabalhadores rurais, para trabalhadores domésticos, para alguns setores da indústria e serviços”; e “de um milhão de emigrantes forçados, de guerras sem horizontes de paz”. 
Alertou que há “tantos e tantos nacionais ou estrangeiros, emigrantes e imigrantes, flagelados por antigas, novas e novíssimas pobrezas, sem abrigo, com abrigo mas sem casa, com direitos e liberdades formalmente reconhecidos numa Constituição, mas suprimidos”, isto é, “sem garantias substanciais, há 50 anos”. “Como não deparar, nas palavras de Francisco, com a defesa desses valores estropiados há 50 anos?”, defendeu, vincando que, ante antigos e novos desafios, internos e globais, “não basta o espírito, é preciso vivê-lo, dia após dia, ano após ano, década após década, dando-lhe viço para não estiolar”. 
***
Só falta passarem as palavras do papel e dos lábios à prática. Não suceda o que alguém disse dos ateus, que gostam de Francisco, apesar de ser o Papa, e dos cristãos conservadores que gostam dele por ser o Papa, embora não perfilhem as suas ideias e ações. Porém, haja esperança!  

2025.04.26 – Louro de Carvalho


Sem comentários:

Enviar um comentário