quarta-feira, 23 de abril de 2025

A ação de Portugal no Ártico tem de ser mais assertiva e sistemática

 
O Ártico passou de alternadamente desejado e esquecido, conforme os interesses geopolíticos, a apetecido, quer pela riqueza que o preenche, quer pela possibilidade de se transformar numa importante zona de comunicação interoceânica, aproximando países distantes.  
Nos anos 80 do século XX, a região ressurge por questões ambientais com a proposta de uma zona de paz, da parte de Mikhail Gorbachev, presidente da União Soviética, em prol da cooperação. Assim, em 1991 foi criado o Arctic Environmental Protection Strategy (AEPS), um acordo multilateral e não vinculativo entre os países árticos, se transformou no Conselho do Ártico, com a assinatura da Declaração de Ottawa, em 1996, a formalizar a colaboração entre os países árticos: o Canadá, os Estados Unidos da América (EUA), pelo Alasca, a Rússia, a Finlândia, a Islândia, a Suécia, a Noruega e o Reino da Dinamarca, pela Gronelândia.
Ao grupo dos países membros juntam-se os Permanent Participants, integrando seis organizações representantes dos povos indígenas do Ártico, e os Observadores, estados não árticos e organizações que se candidatem ao estatuto de observador no Conselho do Ártico.
Para a União Europeia (UE), a situação é complexa e vem sendo prorrogada, desde 2009. Para alguns, a UE é um Observador ad hoc, para outros é um permanent guest.
Porém, essa dinâmica está em transformação, desde a guerra na Ucrânia iniciada em fevereiro de 2022, sob a liderança do presidente russo, Vladimir Putin, com diferente postura sobre a colaboração e a cooperação, na região. Alguns países árticos estão preocupados com a crescente militarização, na região, desde 2007, ano da expedição Arktika da Rússia que colocou a sua bandeira no fundo do mar. Em 2010, a Alemanha considerou o Ártico como o desafio marítimo mais profundo do futuro próximo. E, em 2014, um relatório do Heidelberg Institute for International Conflict Research considerou a região como área de conflito latente.
Olhar para o Ártico é entender a complexidade de temas interligados (alterações climáticas, oceano, criosfera, segurança / defesa, ciência, povos indígenas e cooperação) e que o oceano, uno, liga o Atlântico e o Ártico por via da “atlantificação”, processo das correntes marítimas, isto é, das correntes quentes atlânticas a entrar no Ártico, acelerando o degelo e gerando alterações nos ecossistemas. Por isso, a segurança marítima, como explicitado na Bússola Estratégica do Conselho da UE, de 21 de março de 2022, tem de ser reforçada mais a Norte, bem como as parcerias com os Estados Árticos. Com efeito, o Atlântico liga Este-Oeste, Norte-Sul. No atinente ao Este e ao Oeste, não há dificuldade em interpretar a conexão com os continentes americano, africano e europeu. Já no respeitante ao Norte e Sul, é mais difícil fazer a ligação aos polos.
A distância entre o Atlântico e o a desvanecer-se, passando a ser um rio que une e “não um mar que separa” como Ártico, no dizer do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, num seminário diplomático, em janeiro de 2018, a reforçar a ideia de maior cooperação entre todos, no Atlântico.
Atualmente, Portugal carece de um plano, de uma política para a região do Ártico que expresse os seus interesses e preocupações, quanto à região, e que demonstre a conexão entre o Ártico e o Atlântico (Atlântico Norte), sobretudo no atinente à posição estratégica de Portugal. Não basta ser membro da UE e seguir as suas diretrizes, para assegurar posição sólida em questões de governança conexas com os oceanos e com os polos. A efetiva contribuição de Portugal na região depende da formulação das suas estratégias e políticas, que devem estar em consonância com as diretrizes da UE, que tem uma política para o Ártico. Alguns estados-membros da UE com o estatuto de Observador no Conselho do Ártico têm uma política para o Ártico. Fora da UE, o Brasil publicou, em 2023, uma estratégia polar com um capítulo dedicado ao Ártico e os Emirados Árabes Unidos, em parceria com o Arctic Circle, definiram um programa com foco nos Himalaias, chamando-lhe o terceiro polo.
Quanto a Portugal, é de referir que, em 2021, o Projeto de Resolução n.º 919/XIV/2.ª, do Partido Socialista (PS), recomendava ao governo a definição de um quadro de ação para o Ártico. Porém, devido às eleições de 2021, o processo foi interrompido. Entretanto, após algumas reuniões, em 2022 e em 2023, para informações sobre o assunto, o processo retomado. O PS apresentou, em 2023, o Projeto de Resolução n.º 675/XV/1, com a mesma recomendação, tendo baixado à Comissão de Ambiente. O texto reconhece que Portugal está na linha da frente, no atinente ao impacto das mudanças climáticas, e que o Ártico oferece oportunidades para desenvolver e para aprofundar a investigação no estudo do oceano. Situado no Atlântico Norte, o arquipélago dos Açores tem localização estrategicamente significativa. Por isso, é do interesse nacional mitigar a potencial instabilidade na área, promovendo um Ártico seguro e desmilitarizado, considerando o papel de Portugal como porta de entrada para o Ártico, como explica o texto que recomenda ao governo que defina um plano de ação para o Ártico.
Contudo, está ausente dos dois Projetos de Resolução um tema relevante: os povos indígenas do Ártico, o conhecimento do seu modo de vida e a sua importância para a região e na região onde vivem, desde tempos imemoriais. São representados por seis organizações no Conselho do Ártico, sob a designação de Permanent Participants. Ora, a ausência de referência a estes povos, de forma vincada e conhecedora do espaço geográfico em apreço, nas recomendações apresentadas, pode sugerir uma lacuna na compreensão da região. De facto, é importante destacar que o critério dos procedimentos de candidatura a membro Observador estabelece que o candidato “respeita os valores, interesses, cultura e tradições dos povos indígenas do Ártico e de outros habitantes do Ártico”, assim como “demonstrou vontade política” e “ capacidade financeira para contribuir para o trabalho dos Permanent Participants e de outros povos indígenas do Ártico”.
É de salientar que Portugal não ratificou a Convenção dos Povos Indígenas e Tribais, 1989 (também conhecido por ILO 169, 1989), mas apoiou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDPRI) (Nações Unidas, A/RES/61/295, 2007). Dos estados árticos, apenas a Noruega e o Reino da Dinamarca ratificaram a ILO 169, 1989.
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A votação da sobredita proposta do PS ocorreu a 7 de junho de 2023, e foi publicada como Resolução n.º 76/2023, em 29 de junho de 2023, com três pontos fundamentais: um quadro de ação nacional, em linha com os princípios do desenvolvimento sustentável, com a articulação das várias dimensões críticas (ambiental, económica, social e securitária), nas áreas das orientações para a frota de bandeira portuguesa, do combate às alterações climáticas, da proteção ambiental e das oportunidades de investigação científica e de infraestruturas estratégicas; a segurança do Círculo Polar Ártico e a contribuição para a implementação da política integrada, atual e futura, da UE para uma estratégia conjunta, relativamente ao Ártico; e a consideração de uma candidatura portuguesa a Observador do Conselho do Ártico.
Nestes termos, desenvolver um plano de ação atinente ao Ártico é perceber a complexidade da região que liga alterações climáticas, oceano, criosfera, segurança / defesa, ciência, povos indígenas e cooperação; é conhecer os diferentes árticos e as suas especificidades; é saber por que a neve e o gelo são tão importantes no funcionamento da Terra, pois o que se passa no Ártico não fica só no Ártico; é perceber como Portugal fica afetado com o degelo do glaciar da Gronelândia e como isso contribui para o aumento do nível do mar, que afeta a Madeira e os Açores, bem como as zonas costeiras no continente; é entender a importância dos povos indígenas e conhecer o seu modo de vida, assim como saber quão relevante é o seu conhecimento tradicional e de que modo estão a ser afetados há décadas. De facto, poucas pessoas sabem que, na UE (na Finlândia e na Suécia) vive um povo indígena, conhecido como Sámi, devidamente reconhecido pela UE.
Porém, acima de tudo, elaborar um plano de ação ártica é mostrar a capacidade de olhar para o futuro e de perspetivar vários cenários que ajudam na preparação do país para as mudanças rápidas que se verificam, como consequência das alterações climáticas.
A crescente relevância da região para a segurança global, para a proteção ambiental e para o comércio internacional tornam imperativo que Portugal desenvolva uma estratégia específica para o Ártico e para os polos, o que permitirá a Portugal, não só contribuir para a cooperação e para o desenvolvimento da ciência na região, mas também para aproveitar oportunidades emergentes e para identificar os desafios em terra e no mar. Assim, Portugal recoloca-se, estrategicamente, no Atlântico Norte, numa maior proximidade ao Ártico, proximidade que já aconteceu aquando das explorações marítimas, tendo atividades, como a caça à baleia, sido banidas, nos anos 80 do século XX pela então Comunidade Económica Europeia (CEE).
Recuperar o passado ajudará a apreciar o que une Portugal ao Ártico. A surpresa pode ser de que a distância é inexistente e foi criada ao longo do tempo. Pela colaboração com a UE, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e com outras partes interessadas, Portugal pode fortalecer a sua posição no cenário global e regional, sobressaindo na governança do oceano, como defensor do meio ambiente e da sustentabilidade, aproveitando novas oportunidades no horizonte, envolvido, de forma estratégica e proativa na região, com a sua política externa e de defesa alinhada com as tendências globais e com a necessidade de assegurar a proteção dos seus interesses económicos e ambientais, num futuro próximo. Por outro lado, a elaboração de um plano de ação para o Ártico pode influenciar a preparação de outros documentos de grande importância, como o Conceito Estratégico de Defesa Nacional e / ou uma Estratégia de Segurança Marítima, nos quais o Ártico seja tido como relevante ao ser incluído como região a ter em atenção nos próximos anos e décadas. Além disso, pode ser um trampolim para uma candidatura para a obtenção do estatuto de Observador, que seja consistente, coesa e forte, merecedora de resposta positiva por parte do Conselho do Ártico.
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Porém, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) inviabilizou a criação de um quadro de ação nacional para o Ártico, conforme a Resolução da Assembleia da República (AR) n.º 76/2023, de 29 de junho, aduzindo: “No âmbito da Convenção para a Proteção do Ambiente Marinho no Atlântico Nordeste (OSPAR), Portugal tem vindo a defender e a trabalhar em iniciativas, com vista à proteção do ambiente marinho do Ártico, incluindo através da colaboração com outras organizações relevantes, nomeadamente, o Conselho do Ártico e a Organização Marítima Internacional [IMO].”
O MNE minimiza os interesses nacionais, em especial, os securitários, os sociais e os económicos, focando-se nos aspetos ambientais. Ora, Portugal está representado pela OSPAR e pela IMO, que defendem interesses muito específicos e em universos muito distintos. Esta situação não se sobrepõe a que os estados sejam ou se candidatem a Observadores no Conselho do Ártico. Assim, o MNE revela falta de visão estratégica.
Por outro lado, o facto de Portugal ser membro da OSPAR e da IMO não anula a necessidade de o país ter uma estratégica para o Ártico. Aliás, até reforça o estatuto e o interesse português em ser uma peça fundamental no xadrez internacional. Além disso, a vontade de planear, estrategicamente, um papel ativo no Ártico evidenciaria que o país pode e deve pensar, não só coletivamente, mas também como Estado independente e com interesses próprios. E, ao candidatar-se, com êxito, ao Conselho do Ártico, ficará ao nível dos atuais Observadores.
Portugal, com o seu vasto espaço marítimo no Atlântico, deve implementar a sobredita Resolução, acautelando as questões económicas, sociais e securitárias, além das ambientais.
A 9 de janeiro deste ano, o Jean Monnet OCEANID+ Centre of Excellence on ‘Sustentable Blue Europe’ promoveu o workshop “European Non-Arctic States Observers of the Arttic Council. Why?”, que reuniu especialistas e representantes de seis estados não árticos, para discutir o papel de Observadores no Conselho do Ártico, a fim de compreender melhor as dinâmicas da região e a sua importância global. Ora, iniciativas como esta também reforçam a ideia de que Portugal está a perder o comboio respeitante à sua projeção estratégica no Ártico. Outros países europeus não árticos, como a Itália, que não tem costa atlântica, e a Suíça, um Estado sem litoral, manifestam interesse na região do Ártico, concretizado pelo seu estatuto de Observador no Conselho do Ártico. A França, a Alemanha e a Espanha, têm investido, não só na investigação polar, mas também na presença diplomática, garantindo um lugar mais relevante no cenário internacional. Ao invés, Portugal, apesar da sua forte História marítima e do interesse crescente no Atlântico Norte, mostra envolvimento modesto e pouco estruturado nesta área.
É certo que o Centro de Estudos Geográficos (CEG), do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, investe no estudo da criosfera polar, estando na linha da frente da monitorização do estado térmico do permafrost da Antártida. Contudo, Portugal aproveita pouco o potencial das tecnologias de observação da Terra, na área da criosfera, havendo amplas áreas do conhecimento para as quais instituições nacionais muito podem contribuir, que são foco de concursos internacionais, mormente, no quadro do programa Horizon Europe, da Comissão Europeia, até 2027. Nesse âmbito, importa estar atento ao quadro do EU Polar Cluster e às novas plataformas online lançadas pelo European Polar Board e pelo EU-PolarNet, bem como às prioridades identificadas no Integrated European Polar Research Programme, apresentado em 2020, apresentado em 2020.
A nova administração de Donald Trump espicaça os estados europeus a adotarem uma política externa coesa, para assegurarem, não só a jurisdição e a soberania dos seus espaços marítimos, como a proteção e a conservação da região do Ártico. E a sobredita Resolução, de 2023, recomenda a criação de um quadro de ações, de dimensões, que vão muito além da proteção do ambiente marinho do Ártico. A sua abrangência leva a que Portugal se afirme, quer do ponto de vista geopolítico quer do ambiental, social e económico.
Porém, o MNE anulou a pretensão da AR, levando a que as suas recomendações não tenham sequência, o que faz com que o país continue à margem de decisões com implicações diretas nos seus interesses marítimos e económicos.
Portugal não pode estar alheio às questões do Ártico, nem tão pouco, às suas repercussões no Atlântico, mas a inexistência de uma política externa nacional para o Ártico, representa uma falha estratégica, nas vertentes ambiente, securitária, económica e social. O desenvolvimento e implementação da Resolução têm de oferecer medidas concretas e integradas para colmatar esta falha. É fundamental que o governo seja proativo e não justifique a sua inatividade, enumerando as organizações de que Portugal faz parte. Com as eleições legislativas em maio, é de esperar que o tema volte a estar na agenda, mas com o governo a querer ser parte ativa da solução.
Portugal tem de zelar os seus interesses e de ter visão estratégica.

2025.04.23 – Louro de Carvalho


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