terça-feira, 8 de abril de 2025

Fim da ajuda dos EUA é “sentença de morte” para milhões de pessoas

 
O Programa Alimentar Mundial (PAM), da organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que a administração dos Estados Unidos da América (EUA) anulou o financiamento de projetos que salvam vidas. E os cortes nos programas alimentares de emergência equivalem a “sentença de morte” para milhões de pessoas que passam fome, em 14 países.
O PAM, que é o maior fornecedor de ajuda alimentar do Mundo, declarou-se “profundamente preocupado” depois de a administração norte-americana o ter notificado de que pusera termo ao financiamento da ajuda alimentar de emergência, em 14 países pobres, pelo que apelou aos EUA que anulem a decisão de acabar com o financiamento de programas que salvam vidas em países pobres e devastados pela guerra, depois de parecerem voltar atrás, numa promessa anterior, de poupar a ajuda alimentar de emergência. “Se for posta em prática, esta medida poderá constituir uma sentença de morte para milhões de pessoas que enfrentam fome extrema e inanição”, escreveu o PAM, no X. “Estamos em contacto com a administração dos EUA para procurar esclarecimentos e para solicitar a continuação do apoio a estes programas que salvam vidas”, vincou, agradecendo aos EUA e a outros doadores, pelas contribuições anteriores.
As notícias dos últimos cortes, que parecem estender-se a programas de ajuda vital que tinham sido autorizados a continuar, surgem um mês depois de o secretário de Estado, Marco Rubio, ter dito que a administração tinha terminado a purga da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID), após ter reduzido a sua provisão em 83%, passando os restantes programas de ajuda para a responsabilidade do Departamento de Estado.
Ao tomar posse em janeiro, Donald Trump anunciou o congelamento da ajuda externa e despediu centenas de funcionários da USAID, tendo a página Web da USAID sido, posteriormente, cancelada. E Elon Musk, o principal aliado de Trump, que tem liderado os esforços para acabar com programas e com departamentos federais, com pouca ou nenhuma supervisão, rotulou a agência como “organização criminosa” que deveria “morrer”, mas não apresentou qualquer prova em apoio dessas afirmações, que foram vigorosamente negadas pela agência e por todos os envolvidos no seu trabalho.
À cabeça dos países afetados, vem a Síria, que enfrenta uma profunda pobreza e fome, após 13 anos de guerra civil, e que perdeu cerca de 230 milhões de dólares (210 milhões de euros) em contratos com o PAM e com outros grupos humanitários, nos últimos dias, de acordo com um relatório do Departamento de Estado, obtido pela Associated Press (AP).
De acordo com o documento, o maior corte foi o de um programa de 111 milhões de dólares (101 milhões de euros) que fornecia pão e outros alimentos diários a 1,5 milhões de pessoas. E a AP citou um funcionário da ONU que afirmou que também foi suprimida a ajuda dos EUA aos programas alimentares do PAM no Iémen, país devastado pela guerra e que se debate com uma das catástrofes humanitárias mais graves do Mundo.
Também foram afetados os principais programas de ajuda humanitária na Somália, no Afeganistão e no Zimbabué, incluindo programas de fornecimento de alimentos, de água, de cuidados médicos e de abrigo para deslocados pela guerra, disse um funcionário dos EUA.
Cerca de 560 milhões de dólares (512 milhões de euros) de fundos humanitários para o Afeganistão foram suprimidos, afetando o fornecimento de ajuda alimentar de emergência e de água potável. Foram também cortados programas destinados a salvar bebés gravemente subnutridos, a cuidados médicos vitais e a tratamento de emergência, no domínio da saúde mental para os sobreviventes de violência sexual e física no país.
A administração norte-americana suspendeu o financiamento de um programa destinado a enviar jovens mulheres afegãs para o estrangeiro, para estudarem, devido às proibições do governo talibã. Uma fonte ligada ao programa disse à AP que, como resultado, as jovens que participam no programa serão forçadas a retornar ao Afeganistão, onde as suas vidas estarão em perigo.
É de recordar que os talibãs impuseram restrições draconianas aos direitos das mulheres, desde que regressaram ao poder, em 2021.
Os últimos cortes surgem depois de o PAM ter afirmado que os fornecimentos de refeições quentes em Gaza durariam, no máximo, duas semanas, enquanto todas as padarias da organização tinham sido encerradas, devido à falta de farinha e de alimentos. E a organização acrescentou que estava a distribuir os últimos pacotes de alimentos.
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A USAID tornou-se alvo significativo de alegações falsas, desde que Trump regressou à Casa Branca, a par com a intensificação do escrutínio ao apoio dos EUA à Ucrânia.
Está a ser amplamente partilhado nas redes sociais um vídeo falso, alegando que os EUA pagaram quatro milhões de dólares (3,8 milhões de euros) à revista Time, para nomear o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, como “Pessoa do Ano”, em 2022. Ou seja, alegadamente, o governo Joe Biden utilizou o dinheiro dos contribuintes para “fazer uma lavagem cerebral” aos cidadãos e para “subornar os meios de comunicação social”.
Alguns dizem que isto significa que não se pode confiar nos meios de comunicação ocidentais, porque se pode comprar a capa da Time pelo preço certo. E o vídeo refere que, desde que começou a operar, o novo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), dirigido por Elon Musk, descobriu “enormes quantidades de dinheiro desperdiçadas pelo governo”.
Além das afirmações sobre Zelenskyy, o vídeo menciona que a USAID deu mais de oito milhões de dólares ao jornal Politico, financiou milhares de jornalistas e desviou dinheiro para o Partido Democrata. E utiliza o logótipo do New York Post, para sugerir que as afirmações provêm desse jornal, mas uma pesquisa no site deste meio de comunicação social norte-americano permite concluir que tal notícia não existe.
Também o site USAspending.gov não contém quaisquer pormenores sobre pagamentos à Time ou à Salesforce (empresa fundada pelo proprietário da Time, Marc Benioff).
A Time designou Zelenskyy e o Espírito da Ucrânia como a “Pessoa do Ano”, em 2022, ano em que a Rússia lançou a invasão em larga escala sobre a Ucrânia. Na altura, a revista explicou as razões que motivaram a escolha.
As alegações sobre os oito milhões de dólares, alegadamente, fornecidos ao Politico, por exemplo, estão incorretas, porque os registos mostram que a USAID apenas pagou 44 mil dólares em taxas de subscrição, em 2023 e em 2024, com pagamentos adicionais provenientes de outras entidades governamentais. E o Politico referiu, em declaração do CEO, Goli Sheikholeslami, e do editor-chefe, John Harris, endereçada aos leitores, que não recebe subsídios governamentais.
Outros meios de comunicação social também foram alvo de desinformação conexa com a USAID. Por exemplo, a BBC teria recebido aproximadamente 3,2 milhões de dólares, durante o ano financeiro de 2023-2024. Porém, esse dinheiro não se destinava à operação noticiosa, mas à BBC Media Action, instituição de caridade internacional que integra a família BBC, mas, editorial e financeiramente, separada da BBC News. Nesse ano, tal importância representou cerca de 8% do orçamento da BBC Media Action. “Seguimos os padrões e valores editoriais da BBC, no nosso apoio aos meios de comunicação de interesse público”, lê-se no comunicado da instituição, que especifica: “Todo o nosso financiamento vai para os nossos projetos. Estes são completamente independentes do jornalismo da BBC News. Não temos qualquer influência sobre as decisões editoriais da BBC News. A BBC, no Reino Unido, é maioritariamente financiada por uma taxa de licença de televisão.”
A BBC – não incluindo a BBC Media Action, que é uma entidade separada – também obtém receitas das suas filiais comerciais.
A AP também se encontrava entre os meios de comunicação social que, alegadamente, recebiam financiamento da USAID. Embora a agência noticiosa tenha recebido 37,5 milhões de dólares de outras agências governamentais, desde 2008, nenhuma parte desse montante proveio da USAID.
A porta-voz da AP, Lauren Easton, referiu que o governo dos EUA é cliente da AP há muito tempo, tanto nas administrações democratas como nas republicanas, e licencia o jornalismo apartidário da AP, tal como milhares de agências noticiosas e clientes em todo o Mundo. 
Porém, não são visados apenas os meios de comunicação social. A secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse aos jornalistas, em fevereiro, que a USAID gastara 1,5 milhões de dólares, para promover a DEI [Diversidade, Equidade e Inclusão] em locais de trabalho na Sérvia; 70 mil dólares para a produção de um musical DEI na Irlanda; 47 mil dólares para uma ópera transgénero na Colômbia; 32 mil dólares para uma banda desenhada transgénero no Peru.
As alegações espalharam-se, rapidamente, nas redes sociais, mas apenas a subvenção destinada a uma organização sérvia, a Grupa Izadji, foi atribuída pela USAID. O seu objetivo passa por “promover a diversidade, a equidade e a inclusão nos locais de trabalho e nas comunidades empresariais da Sérvia”. Os restantes apoios foram atribuídos pelo gabinete do subsecretário para a Diplomacia Pública e Assuntos Públicos do Departamento de Estado. Em 2022, concedeu 70884 dólares a uma empresa irlandesa, para um evento musical ao vivo, destinado a promover os valores comuns dos EUA e da Irlanda, em matéria de diversidade, de equidade, de inclusão e de acessibilidade, subvenção de 25 mil dólares, em 2021, a uma universidade na Colombia, para sensibilizar e para aumentar a representação dos indivíduos transexuais, através da produção de uma ópera, com um montante adicional de 22 mil dólares proveniente de financiamento não federal, e 32 mil dólares, em 2022, a uma organização peruana financiaram uma banda desenhada, com um herói LGBTQ+, para abordar questões sociais e de saúde mental.
Especialistas explicaram à AP que faz sentido que estes programas sejam financiados pelo gabinete do subsecretário, porque é suposto refletirem os valores dos EUA, como a diversidade e a democracia e a amizade entre países. Os recentes acontecimentos mundiais evidenciam a quantidade de dinheiro que a Europa e os EUA enviam para o estrangeiro, pelo que é fundamental que o público seja corretamente informado.
Quer dizer que, na ótica trumpiana, tudo o que não seja útil para os seus intentos, tem de acabar ou ser reduzido: certo jornalismo que insista em direitos humanos, instituições humanitárias, organizações para o desenvolvimento, forma independente de administração da Justiça, etc. Por isso, não admira que a USAID tenha sido aniquilada e as suas atribuições passadas para o Departamento de Estado, que assegura um controlo mais orientado.
Nisto, Donald Trump recebeu o apoio inequívoco da Rússia e da Bielorrússia, por, alegadamente, a USAID financiar eleições fora do controlo russo.       
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Entretanto, um juiz federal nos EUA causou ao presidente e ao bilionário aliado, Elon Musk, o primeiro revés no desmantelamento da USAID, afirmando que vai ordenar uma suspensão temporária dos planos para retirar milhares de funcionários da agência.
O juiz distrital Carl Nichols, nomeado por Trump, apoiou duas associações de funcionários federais, ao concordar com uma pausa nos planos de colocar 2200 funcionários em licença remunerada, horas antes do previsto. E enfatizou que a sua ordem não era uma decisão sobre o pedido dos funcionários de reverter a destruição rápida da agência pelo governo.
“FECHEM-NA”, disse Trump, nas redes sociais sobre a USAID, antes da decisão do juiz.
A USAID foi criada por uma ordem executiva do presidente John F. Kennedy e emprega, atualmente, cerca de dez mil pessoas, dois terços das quais trabalham no estrangeiro.
A Associação Americana de Serviços Estrangeiros e a Federação Americana de Funcionários do Governo, tal como os legisladores democratas, argumentaram que Trump não tem autoridade para encerrar a agência de ajuda, sem a aprovação do Congresso. Porém, a administração Trump agiu, rapidamente, para apagar o nome da agência. Trabalhadores num guindaste esfregaram o nome da frente da sede, em Washington, e usaram fita adesiva, para o apagar de uma placa, e tiraram as bandeiras da USAID. Alguém colocou um ramo de flores à porta.
A administração Trump e Musk, que dirige o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) com cortes orçamentais, fizeram da USAID o seu maior alvo, num desafio inédito ao governo federal e a muitos dos seus programas. Encerraram quase todo o financiamento da agência, interrompendo os programas de ajuda e de desenvolvimento em todo o Mundo, colocaram funcionários e contratados em licença e bloquearam o acesso ao correio eletrónico e a outros sistemas da agência. E, segundo os legisladores democratas, levaram os servidores informáticos da USAID. “Trata-se de uma destruição em grande escala de, praticamente, todo o pessoal de uma agência inteira”, disse ao juiz Karla Gilbride, advogada das associações de trabalhadores, ao que o advogado do Departamento de Justiça, Brett Shumate, argumentou que a administração tem toda a autoridade legal para colocar os funcionários da agência em licença.
Um grupo de funcionários da USAID contestou as afirmações do secretário de Estado, Marco Rubio, segundo as quais os programas essenciais para salvar vidas no estrangeiro estavam a obter isenções, para continuarem a ser financiados. Entre os programas que não tinham recebido isenções, incluem-se 450 milhões de dólares (435 milhões de euros) em alimentos produzidos por agricultores norte-americanos, suficientes para alimentar 36 milhões de pessoas, que não estão a ser pagos ou entregues. E o abastecimento de água a 1,6 milhões de deslocados pela guerra, na região sudanesa de Darfur, está a ser cortado, com o fim do financiamento do combustível para fazer funcionar as bombas de água no deserto.
A ordem do juiz envolve a decisão da administração Trump de retirar quase todos os trabalhadores da USAID do trabalho e do terreno em todo o Mundo. Na verdade, a administração deu a quase todos os funcionários da USAID colocados no estrangeiro 30 dias para regressarem aos EUA, com o governo a pagar as despesas de deslocação e mudança, o que a própria USAID contesta.
Trump e os republicanos do Congresso falaram em transferir um número muito reduzido de programas de ajuda e de desenvolvimento para o Departamento de Estado. E, no Departamento de Estado, os funcionários temem reduções substanciais de pessoal após o final do prazo para a oferta de incentivos financeiros para que se demitam.
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Enfim, quando se dá crédito a falsas informações (algumas das quais resultantes de campanha orquestrada) e os intuitos são demolidores, tudo vale.

2025.04.08 – Louro de Carvalho


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