Várias universidades públicas portuguesas que têm protocolos com os Estados
Unidos da América (EUA) receberam uma inesperada carta da Embaixada
norte-americana com um questionário
que inclui 36 perguntas sobre ideologia de género, ligação a
partidos comunistas, influências malignas da China, ligação a grupos
terroristas e financiamentos recebidos de vários países, como a Rússia, Cuba ou
o Irão, sob ameaça de corte do financiamento, caso não respondessem ao
questionário.
Algumas das instituições já perderam esses
apoios. É o caso, por
exemplo, do Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade de Lisboa, que
viu cancelado o financiamento a um programa que mantinha, nas suas instalações,
um espaço de divulgação da cultura
norte-americana. Em causa está o programa “American Corner”, que funciona em várias universidades, há mais
de uma década. Além do IST, têm estes espaços as universidades dos Açores, de Aveiro,
do Porto (Faculdade de Letras), de Lisboa (Faculdade de Letras) e a
Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Ciências e Tecnologia).
O objetivo do programa é promover a comunicação da ciência e aproximar
as culturas americana e portuguesa. A Embaixada dos EUA em
Lisboa descreve-os como “centros de informação e cultura”. Porém, o governo
norte-americano resolveu praticar uma “intromissão intolerável” na autonomia
das instituições, que os reitores portugueses repudiam veementemente.
Por exemplo, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto
(FLUP), este programa concede uma verba anual para eventos e
atividades académicas e, ainda, para a compra de equipamentos tecnológicos de
última geração. Financiou ainda dois estúdios, um de televisão e outro de
rádio, preparados para a produção de conteúdos, e uma sala de conferências para
palestras e workshops.
No IST, o “American Corner” funcionava há mais de dez anos,
promovendo palestras, encontros e atividades de “divulgação e de cariz
científico”. O financiamento anual rondava os 20 mil euros.
Em declarações à agência Lusa,
Rogério Colaço, presidente do IST, confirmou a receção de uma comunicação do
cancelamento, com “efeito imediato”, do programa “American Corner”, a par de um
inquérito com “questões bastante desadequadas” sobre se o IST
colaborava ou não, ou se era citado ou não em acusações ou investigações
envolvendo associações terroristas, cartéis, tráfico de pessoas e de droga,
organizações ou grupos que promovem a imigração em massa.
“O Técnico respondeu que não iria responder ao questionário,
porque não se adequava a uma instituição de ensino superior pública sujeita a
escrutínio público e legal de um país democrático membro da União Europeia”,
justificou Rogério Colaço, indicando que a comunicação cita uma determinação emanada do
Departamento de Estado norte-americano.
Hermenegildo Fernandes, diretor da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa (FLUL), também confirmou à Lusa ter recebido o mesmo questionário, que o deixou estupefacto,
pela “dimensão
do descaramento” das perguntas. De acordo com o diretor da
FLUL, o documento continha questões sobre “agendas climáticas”, se a
instituição tinha “contactos com partidos comunistas e socialistas” ou
relações com as Nações Unidas, com a República Popular da China, com Irão e com
a Rússia” e o “que fazia para preservar as mulheres das ideologias de género”.
E a FLUL optou por não responder ao questionário, frisando que “a sua
dependência é com as políticas científicas de Portugal e da União Europeia”.
Contudo, Hermenegildo Fernandes não adiantou se o “American
Corner” foi cancelado ou não à faculdade, cujo espaço partilha
instalações próximas com o Instituto Confúcio, entidade oficial da China que
promove a cultura e a língua do país.
A direção da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade
Nova de Lisboa (FCTUNL), indicou que o “American Corner” é “um projeto anual que
terminará em setembro”, mas acrescentou, numa breve declaração
à Lusa: “Estamos a avaliar a hipótese
de nos candidatarmos à continuação do projeto ou não.”
Paulo Jorge Ferreira, reitor da Universidade de Aveiro, que é
também presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP),
lamentou os termos da comunicação feita pela Embaixada dos EUA, condicionando a
continuidade de financiamento à resposta a perguntas “intoleráveis”. “O
conselho de reitores discutiu o assunto e as perguntas, pela sua natureza, configuram
uma intromissão intolerável na autonomia das instituições e
na sua liberdade de investigação e da ação académica”, considerou, em
declarações à Lusa.
O presidente do CRUP reconheceu o direito de os financiadores
decidirem se querem continuar ou não este apoio, mas julga incorreto
condicionar as instituições a responder a questões “ofensivas para a sua
independência e para a sua liberdade académica”.
Porém, a Embaixada não responde, diretamente, sobre cancelamento
do financiamento. “Temos excelentes relações com todos os seis ‘American
Corners’ e continuaremos a colaborar numa série de programas e iniciativas que
promovam os nossos objetivos comuns”, reagiu Marie Blanchard, porta-voz da
embaixada norte-americana em Lisboa, a uma questão da Lusa sobre os cortes anunciados ao programa, como este iria ser
afetado e em que moldes.
Segundo a embaixada, mais de 600 destes espaços estão
localizados em universidades, em centros comerciais, em bibliotecas e noutros
locais públicos, bem como em instalações de embaixadas, em mais de 140 países.
***
Se Donald Trump definiu, no seu programa
de governo, um conjunto de princípios ideológicos ao arrepio do que se
preconiza comummente, era de esperar que a sua postura autoritária tivesse
forte influência nas instituições que produzem e divulgam o conhecimento,
estando neste caso, as universidades e os órgãos de comunicação social,
respetivamente. E, se fez isso, a nível interno, consequentemente, o iria fazer
nas relações com os outros países.
Seja como for, o cerco trumpiano às
universidades está a incentivar a fuga de cérebros, que a União Europeia (UE) se
diz disponível para acolher, e a criar um novo fenómeno nos EUA. E o movimento já
mobiliza governos e instituições noutros países.
Em menos de três meses, o cerco presidencial às universidades
dos EUA espoletou o alerta para um fenómeno que, até há pouco tempo, tinha
o país como o maior beneficiário: a fuga de cérebros. A capacidade dos EUA
– sede de algumas das mais prestigiosas instituições de ensino do planeta – de
atrair estudantes de todo o Mundo sempre foi um importante soft power. Porém, os ventos parecem mudar de direção,
face a uma série de medidas governamentais, que incluem cortes de
financiamento, veto
a iniciativas de diversidade, perseguição a estudantes envoltos em
protestos e a proibição de determinadas palavras.
Ainda não há números, mas as discussões sobre a possível fuga de
cérebros entraram na ordem do dia. Numa investigação da revista Nature, feita com 1,6 mil académicos,
75% disseram considerar sair dos EUA, devido à instabilidade causada pelo
governo federal. A tendência é ainda mais forte, entre estudantes de mestrado
(79%), uns dos mais afetados pelos cortes de bolsas e de investigação. Ora, se
a fuga de cérebros representa um desafio aos EUA, já há países a aproveitar a
oportunidade para oferecer “asilo científico”. Assim, Donald Trump, na
sua guerra comercial com a China, põe em risco a atratividade das universidades
para estrangeiros – uma fonte de receita para o país – e a competitividade dos
EUA em setores-chave. Com efeito, já abriu investigação contra mais de 50 universidades,
devido a programas de diversidade.
A caça a cérebros em fuga dos EUA já mobiliza governos e
instituições em outros países. Uma das primeiras foi a Universidade Aix-Marseille,
na França, que lançou, no início de março, o programa “Espaço Seguro para a
Ciência”, a fim de atrair 15 cientistas americanos das áreas do meio ambiente, da
saúde e da astrofísica dispostos a trabalhar, por três anos, no seu campus. Mais
de 60 candidatos se inscreveram, 30 deles nas primeiras 24 horas. Duas
universidades da Bélgica e o governo da Holanda anunciaram planos similares.
Por sua vez, o governo da Catalunha apresentou, a 31 de março, um programa
trienal de 30 milhões de euros, para atrair cientistas americanos, com 78 vagas
em 12 universidades públicas.
Em carta à comissária de Pesquisa da União Europeia, Ekaterina
Zaharieva, ministros do setor de 13 países-membros, incluindo de potências da
área, como a Alemanha e a França, exortaram a UE a aproveitar o ensejo para
“dar as boas-vindas a talentos brilhantes do exterior que podem estar a sofrer
interferência nas investigações e cortes de financiamento brutais e mal
motivados”. Também a arquirrival China, que disputa com os EUA os avanços na
área de tecnologia, começou a tentar atrair “os refugiados com PhD dos EUA”,
segundo o jornal South China Morning Post,
de Hong Kong, oferecendo “novos caminhos académicos”.
Como noticiou a revista alemã Der
Spiegel, a Sociedade Max Planck, um dos maiores institutos de investigação
do Mundo, registou, em fevereiro, um aumento do número de candidaturas de
cientistas americanos. Ironicamente, a instituição, sediada em Munique, foi uma
das mais lesadas com a fuga de cérebros da Alemanha nazista, perdendo alguns
dos seus nomes mais proeminentes para os EUA, como Albert Einstein.
Recentemente, Jason Stanley, professor de Yale, tornou-se o rosto do movimento,
ao anunciar que deixava a prestigiosa Universidade da Ivy League, para assumir
um cargo na Universidade de Toronto. O autor do livro “Como o fascismo
funciona” justificou ao site “Daily
Nous” a decisão, afirmando que gostaria de criar os filhos num país que não
está a inclinar-se para “uma ditadura fascista”.
O perigo que os EUA correm é perderem pessoal qualificado, no
médio e no longo prazo. Na área de STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e
Matemática), é curioso, pois há um esforço para trazer mão-de-obra de fora,
mercê do crónico défice de profissionais do setor. São eles que abastecem
muitas big techs que apoiam Trump, como assegura Gustavo
Nicolau, advogado de imigração nos EUA, sustentando que o cerco “pode
levar estudantes para outros destinos”, como a Europa, ou mesmo inimigos
americanos, como a China e a Rússia.
De acordo com o último censo, 62% dos Americanos não têm ensino
superior completo. Tal cenário criou dependência das universidades, em relação
a estrangeiros, que, nalguns cursos, ocupam até 80% das vagas e contribuem para
a economia americana. E há interesse dos EUA em receber estudantes
estrangeiros, porque o norte-americano percebeu que não precisa da faculdade para
ter vida boa e porque há circulação de capital em solo americano, pois o
estrangeiro paga impostos, alimentação, moradia, e consome em outras áreas. É
um grande negócio para os EUA.
Os EUA são o principal destino de estudantes internacionais do
planeta, com 800 mil estrangeiros no ensino superior. Com sete universidades
entre as 20 melhores do Mundo no ranking QS
World University, o país é o sonho de muitos estudantes que desejam estudar
fora. Todavia, para alguns, a experiência transformou-se num pesadelo, em
questão de meses. O cenário já se reflete no comportamento dos estudantes:
temem represálias; não estampam as redes sociais nada de cariz político; evitam
tratar o tema Israel-Palestina, “que parece ser o principal foco da perseguição
digital, e criticar o governo diretamente”; e alguns recebem sugestões de
‘trancar as redes sociais’, de ‘usar um segundo telefone’, mas recusam. Assim,
os EUA deixaram de ser a Terra da Liberdade e muitos estudantes preferem
regressar aos seus países de origem.
Um professor de História dos EUA na Universidade Temple classifica
o clima como “o mais temeroso possível”. A sua instituição está entre as 60 de
ensino superior que receberam uma carta do governo, em março, a exigir ações de
contenção do antissemitismo, tema central na cruzada da Casa Branca,
especialmente, contra universidades que se envolveram nos protestos contra a
guerra em Gaza, em 2024. A Universidade Columbia (cuja reitora se demitiu), palco
de algumas das manifestações mais emblemáticas, passou a ser alvo de
investigação, por ter, alegadamente, permitido assédio contra Judeus e teve suspensas
verbas de 400 milhões de dólares. Mahmoud Khalil estudante palestiniano,
que liderou os protestos, naquela instituição nova-iorquina, chegou a ser
detido por agentes da polícia migratória (ICE) e corre o risco de deportação,
apesar de ter visto de residência permanente.
Não se trata apenas de recado a respeito do antissemitismo, mas de
presságio mais amplo de que será monitorizado tudo o que for expresso num
campus universitário. Por isso, já existe a autocensura. Há temor de se
envolver em manifestações, não só respeitantes ao Médio Oriente, mas também à
vida norte-americana.
Ocorrem várias manifestações numa faculdade, porque lhe fecharam o
Departamento de Diversidade e Inclusão e várias pessoas perderam o emprego.
Porém, estudantes que alinharam nos primeiros protestos não têm coragem de ir
em mais nenhum. E, entre as orientações da universidade, conta-se o
aconselhamento aos estudantes estrangeiros no sentido de andarem com cópia do
visto e de evitarem viagens ao exterior. Por medo, alguns cancelaram viagens ao
estrangeiro, previstas nos seus projetos de investigação e até visitas às
famílias
As ameaças de suspensão de verbas forçaram departamentos financiados
pelo governo federal a adaptarem-se. Por exemplo, num laboratório sobre doenças
que afetam o sistema reprodutivo feminino, há preocupação com a renovação do financiamento,
pois termos, como ‘women’ (mulheres) e ‘female’ (fêmea), estão vetados; e num laboratório
que pesquisa meio ambiente, “uma parte significativa do financiamento foi
afetada pelos cortes”, estão sob pressão os temas climáticos e a sua revista tem
de ser analisada e aprovada pelo Departamento de Comunicação da universidade,
antes de ser publicada.
A nova estratégia da Casa Branca tem sido efetiva em induzir as
universidades a cederem, para evitarem a asfixia financeira. Assim, no final de
março, Columbia concordou em atender às exigências, para reverter o corte,
anunciando medidas como a presença de agentes dentro do campus e uma supervisão
externa do Departamento de Estudos do Médio Oriente.
Sem recursos para desenvolver investigação de qualidade e sem
liberdade académica, um académico com poder de escolha não quererá estar num
ambiente tão hostil. Portanto, a fuga de cérebros é real e o seu impacto, no
longo praz é que os EUA deixarão de ser a referência dos últimos 70 anos e
tornar-se-ão um país comum, na produção académica.
***
Em
suma, Trump, arvorado em fonte e em dono do conhecimento pressiona,
financeiramente, as universidades e ameaça a liberdade académica, procedendo a
cortes, condicionando a investigação e reprimindo a exposição de centeúdos e os
direitos de reunião e de manifestação. E as batalhas com as universidades podem
mudar a cultura norte-americana numa geração.
Não
admira, pois, que a cruzada das universidades seja paralela às das tarifas!
2025.04.05 – Louro de Carvalho
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