sexta-feira, 4 de abril de 2025

Retórica de Donald Trump fez-se realidade

 

Em conferência de imprensa, na tarde de 2 de abril, Donald Trump assinalou o “Dia da Libertação”, com a apresentação de uma grelha de 56 linhas com os nomes de países e com as taxas alfandegárias que os Estados Unidos da América (EUA) vão impor aos seus produtos. Entre os nomes constantes da lista, sobressaem a China, com 34%, a União Europeia (UE), com 20%, e o Lesotho, com 50%.

O espetáculo televisivo foi um verdadeiro comício, com fanfarra, bandeiras e com outros adereços. Os fiéis, devidamente alinhados, levantavam-se da cadeira, à medida que o presidente os chamava; espantou o elogio de Brian Pannebecker, trabalhador do setor automóvel, de colete refletor, como se estivesse prestes a picar o ponto; e a encenação desfez os protocolos e a tradição em pedacinhos de papel num colorido final de tarde no Rose Garden.

Daqui resultou que a administração Trump chegou aos valores, aparentemente, com a fórmula matemática usada para calcular o défice da balança comercial dos EUA – Δτɩ = (Χɩ - mɩ) / (ε * φ* mɩ); que o setor automóvel será o mais afetado, pois os carros importados terão a taxa de 25%, falando os analistas em constrangimentos; que os mercados reagiram e a bolsa de Wall Street sofreu imediata queda brutal; que a China reagiu, garantindo proceder em defesa dos seus cidadãos e dos seus produtos, e que a Europa responderá convenientemente; e que não se trata de narrativa caprichosa que insiste em recuperar teorias económicas longínquas, mas que tudo é planeado e sistematizado, no perfil do conselheiro trumpista e na cadência das medidas.

Sobre os primeiros 11 meses da Administração Trump, o historiador britânico Adam Tooze, professor de História na Universidade de Columbia em Nova Iorque, escreveu, no seu blogue “Chartbook”: “É a coisa mais louca que alguém já viu em política económica por uma grande potência económica”. De facto, a inauguração do “Dia da Libertação” por Donald Trump, constituiu um novo pacote de medidas protecionistas que significa um ajuste de contas global: “Durante anos fomos enganados por, praticamente, todos os países do Mundo, amigos e inimigos, mas esses dias acabaram”, escreveu o historiador, no Truth Social.

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As alfândegas puseram em prática tarifas (taxas alfandegárias) em importações vindas do Canadá, da China e do México e sobre os setores do aço e do alumínio, que já atingiram mais de 25% das importações. Os cenários mais pessimistas preveem taxas sobre mais de 60% das importações.

Esta “loucura económica” foi apresentada por Trump e pelos seus sequazes como uma mistura de políticas de saúde (antidrogas), de anti-imigração e de reindustrialização. Porém, no dizer de Peter Cohan, professor no Babson College, em Boston, a verdadeira razão do presidente dos EUA é o gosto de causar dor nos outros países e de os obrigar a implorar um acordo especial para os isentar das tarifas, bem como a pretensão de que as tarifas substituam o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS). William Halal, fundador do think tank norte-americano Tech Cast, corrobora: “A principal motivação por trás das tarifas é ganhar dinheiro dos contribuintes, para compensar o corte de impostos para os ricos. Ele também adora o poder que as tarifas lhe dão para forçar outros governos a fazer o que ele quer.”

Vista da Europa, a política alfandegária de Trump é uma arma geopolítica de negociação coerciva e de política doméstica. Porém, as tarifas, ao invés do que dizem os seus preconizadores, não são úteis para o orçamento federal, para transferir a produção para os EUA ou para reduzir o défice comercial. O défice comercial só será reduzido, se o dólar diminuir o seu estatuto de moeda de reserva mundial. Há muitos perdedores nos EUA, onde passou a falar-se de ‘Trumpcessão’ ou de potencial recessão, e as bolsas caíram. O índice global MSCI para os mercados de Nova Iorque caiu 6%, só em março, e perdeu quase 5%, desde início do ano. O Nasdaq, a bolsa das tecnológicas, afundou-se 10%, desde o final de 2024.

É elucidativo um olhar atento pelas etapas desta guerra comercial. Logo a 1 de fevereiro, o presidente dos EUA anunciou taxas de 25% sobre importações do México e do Canadá, uma redução da taxa para 10% sobre importações de energia e potássio do Canadá e taxa adicional de 10% sobre as importações da China (excetuando as inferiores a 800 dólares); no dia 3 suspendeu, por 30 dias, as medidas sobre os dois vizinhos; e, no dia 4, entraram em vigor as taxas sobre cerca de 440 mil milhões de dólares de importações da China. No comércio de produtos, o principal défice dos EUA é com a China: quase 300 mil milhões de dólares, em 2024. Ora a China reagiu, lançando o primeiro pacote de retaliações.

A 10 de fevereiro, foram decretadas, para entrarem em vigor a 12 de março, taxas de 25% sobre as importações de alumínio e de aço, que somaram mais de 60 mil milhões de dólares, em 2024. E foi introduzido o conceito de “tarifas recíprocas”, impondo taxas similares às aplicadas pelos parceiros comerciais, em cada produto.

A 18 de fevereiro, foram anunciadas, sem data de entrada em vigor, taxas de 25% sobre outros sectores deficitários, como os semicondutores (os alvos são Taiwan, a China, a Vietname, a Tailândia e a Malásia) e a farmacêutica (os alvos são a Irlanda, a Suíça e a Alemanha).

A 26 de fevereiro, o líder da Casa Branca anunciou, “para muito breve”, taxas de 25% sobre todas as importações vindas da UE, que somaram mais de 600 mil milhões de dólares, em 2024. Os EUA registam o segundo maior défice comercial em produtos com a UE, somando 236 mil milhões de dólares, em 2024, sobretudo com a Alemanha e com a Irlanda. Em resposta, Bruxelas anunciou um plano de retaliações em duas fases: a partir de 1 de abril, 50% sobre o uísque norte-americano e 25% sobre as motos Harley-Davidson; e, a partir de 13 ou 14 de abril, sobre jeans, roupa de marca, tabaco, alguns produtos agrícolas.

A 27 de fevereiro, foi reforçada a penalização das importações vindas da China com uma dose adicional de 10% a partir de 4 de março. A taxa média subirá para perto de 40%.

A 4 de março, entraram em vigor as taxas sobre importações do Canadá, da China e do México. Otava retaliou com taxas de 25%, sobre 130 mil milhões de dólares de importações dos EUA, num plano em três fases: 4 de março, 13 de março e 2 de abril. Pequim aplica taxas de 10% e de 15%, sobre mais produtos agrícolas importados dos EUA.

A 5 e 6 de março, face à pressão dos grandes construtores norte-americanos, foram adiadas, para 2 de abril, as taxas sobre importações de automóveis do Canadá e do México. E Donald Trump isentou todas as importações vindas dos dois vizinhos que estejam abrangidas pelo Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA).

A 13 de março, o líder norte-americano ameaçou impor a taxa de 200% sobre vinhos, champanhes e outras bebidas alcoólicas da UE, caso Bruxelas não revogue as tarifas sobre o whisky. As exportações deste setor para os EUA valeram 13,1 mil milhões de euros, em 2024.

A 24 de março, o secretário do Tesouro, Scott Bessent, avançou contra os “Dirty 15”. O alvo das taxas recíprocas seria centrado nos 15 parceiros comerciais com quem os EUA registem maiores défices ou verifiquem maiores desequilíbrios nas taxas bilaterais ou na imposição de barreiras não alfandegárias. O anúncio foi prometido para 2 de abril, prevendo taxas diferenciadas por país e por produto e cumulativas com outras já aplicadas.

A 26 de março, foi anunciada uma taxa de 25%, a vigorar a partir de 2 de abril, sobre todos os automóveis e seus componentes importados, com exceção dos abrangidos pelo USMCA ou os componentes de fabrico original norte-americano. As importações nesta fileira somaram 475 mil milhões de dólares em 2024, representando 15% do total das importações dos EUA. E surgiu a ameaça de taxas de 25%, a partir de 2 de abril, sobre as exportações para os EUA de todos os clientes do petróleo venezuelano.

E, a 30 de março, “Wall Street Journal” avançou que, quanto às taxas recíprocas, está em cima da mesa uma taxa geral até 20%. Trump ameaçou usar taxas, em relação às exportações para os EUA de clientes do petróleo russo, se Moscovo não aceitar um cessar-fogo na Ucrânia.

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Esta calendarização, feita com propósito firme, embora registe avanços e recuos permite concluir: 27% das importações dos EUA, em 2024, ou cerca de 835 mil milhões de euros, foram cobertas pelas novas tarifas aplicadas, até final de março, abrangendo a China, o Canadá, o México e o setor de aço e de alumínio; foram dez os anúncios de taxas para o Canadá, para a China, para o México e para a UE, para o aço e para o alumínio, para tarifas recíprocas, para automóveis, para clientes do petróleo da Venezuela, para bebidas alcoólicas da UE, entre outras, tendo, até final de março, Trump colocado em vigor quatro; e são 15 os países com os quais os EUA registam saldos mais negativos que serão visados por taxas recíprocas.

As primeiras estimativas da Comissão Europeia preveem que as empresas europeias paguem mais de 80 mil milhões de euros em direitos aduaneiros em exportações para os EUA, contra os sete mil milhões atualmente arrecadados. A UE até é, genericamente taxada, no dizer de Trump, nuns simpáticos 20%. Em 2024, Portugal exportou 5,3 mil milhões de euros em bens para os EUA, o que representa cerca de 1,9% do produto interno bruto (PIB).

As principais bolsas nova-iorquinas vergaram com a guerra comercial de Donald Trump, que na tarde anterior – já depois do fecho de Wall Street – anunciou as tarifas para (quase) todos os países do Mundo. Na sessão de 3 de abril, o índice de referência S&P 500 perdeu 4,84%, para os 5396,61 pontos, no pior dia, em cinco anos. Já o industrial Dow Jones caiu 3,98% ou 1679 pontos, para os 40545,93 pontos. O tecnológico Nasdaq, o mais castigado, tombou 5,97% ou 1050 pontos, para os 16550,61 pontos.

Apesar do tombo de Wall Street, ao longo do dia, o presidente dos EUA, acredita num “boom” dos mercados, disse que a sua estratégia comercial estava a “correr muito bem”. 

A pesar no Nasdaq, as perdas substanciais das tecnológicas foram de cerca de 800 mil milhões de dólares, em capitalização bolsista. Por exemplo, as ações da Apple afundaram 9,25%, no pior dia em bolsa, desde março de 2020. A empresa, liderada por Tim Cook, produz o iPhone em vários centros fora dos EUA, ficando sujeito a direitos aduaneiros, ao entrar no mercado norte-americano. A Amazon e a Nvidia caíram 8,98% e 7,81%, respetivamente, enquanto a dona do facebook (Meta) e a Tesla perderam 8,96% e 5,47%. A Alphabet (dona do Google) perdeu 3,92% e a Microsoft cedeu 2,36%. E a Nike – com forte produção no Vietname, país sujeito a tarifas de 46% – e a retalhista Target saíram afetadas, ao resvalarem 14,46% e 10,9%.

A maior economia do Mundo teve mais um sinal de abrandamento. O Project Management Institute (PMI) caiu para 50,8 pontos, em março, face à leitura de 53,5, em fevereiro, e o emprego no setor passou para território de contração pela primeira vez em seis meses – menos 7,7 pontos, para 46,2. Os investidores aguardam, com expectativa, a posição da Reserva Federal, já que o seu presidente, Jerome Powell, agendou um discurso para o dia 4, logo após a divulgação do relatório sobre a evolução do emprego, em março, nos EUA.

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Donald Trump, no regresso à presidência dos EUA, recolocou as tarifas aduaneiras no centro da estratégia económica. Sob o pretexto de corrigir desequilíbrios comerciais e de proteger a indústria norte-americana, a sua Administração revelou uma fórmula controversa de cálculo das tarifas impostas aos parceiros comerciais: Δτɩ = (Χɩ - mɩ) / (ε * φ* mɩ).

A base do cálculo recai sobre o saldo comercial entre os EUA e cada país. Segundo o documento do Departamento do Representante de Comércio dos EUA (USTR), a fórmula divide o excedente comercial de um país com os EUA pelas suas exportações totais para o mercado norte-americano. O resultado é reduzido para metade, originando a taxa descontada de tarifa. Por exemplo, considerando o caso da UE, em 2024, os EUA registaram o défice comercial de 235,6 mil milhões de dólares com a UE e contabilizaram importações de 605,8 mil milhões de dólares, o cálculo foi o seguinte: Taxa = (Défice comercial dos EUA com a UE) / importações da UE x 0,5 = 235,6 MM$* / 605,8 MM$ x 0,5 = 19,4% – (* valores do défice comercial e importações em mil milhões de dólares referentes a 2024). Além do saldo comercial, a fórmula considera elasticidades económicas: a da procura por importações (ε) e a dos preços das importações, relativamente às tarifas (ϕ). “Dados recentes sugerem que a elasticidade é próxima de dois, a longo prazo, mas as estimativas da elasticidade variam”, refere o Departamento de USTR, vincando que, “para ser conservador, foram utilizados estudos que encontram elasticidades mais altas perto de 3-4” e “a elasticidade dos preços de importação, face às tarifas ϕ, é de 0,25.”

Isto faz com que estas variáveis tenham sido configuradas, para, na prática, se anularem mutuamente (ε=4 e ϕ=0,25), simplificando a fórmula de cálculo das tarifas à fórmula essencial que, no caso da UE, resulta na taxa de 19,4%, quando a taxa definida por Trump é de 20%.

Apesar de simples, é questionável a eficácia da fórmula. Ignorar fatores como a manipulação cambial ou barreiras regulatórias específicas levanta dúvidas sobre se as tarifas corrigem as distorções comerciais. Além disso, as taxas apresentadas diferem das constantes no anexo oficial do decreto presidencial, gerando mais confusão e incerteza. As tarifas variam entre 0% e 99%, com a média ponderada global de 41%. Para países com os quais os EUA têm défices comerciais significativos, como a China, espera-se um impacto direto nas exportações. Contudo, alguns analistas temem retaliações comerciais que possam agravar tensões globais. Assim, Mark Carney, primeiro-ministro canadiano, garantiu que o Canadá combaterá estas tarifas com contramedidas. E Michael Martin, primeiro-ministro irlandês, frisou que “qualquer ação deve ser proporcional” e defender os interesses das empresas, dos trabalhadores e dos cidadãos.

Mais: a fórmula de cálculo baseia-se apenas no saldo comercial dos EUA, em 2024, ignorando as barreiras tarifárias que os produtos norte-americanos enfrentam no exterior, e reflete a abordagem simplificada, mas agressiva, de reequilíbrio das relações comerciais dos EUA. Embora seja defensável como um “proxy” para barreiras comerciais complexas, resta saber se atingirá os objetivos económicos, sem desencadear novos conflitos comerciais. Porém, Trump usará todos os instrumentos ao seu alcance para reforçar o lema “America First”.

2025.04.04 – Louro de Carvalho

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