quinta-feira, 24 de abril de 2025

Confisco de bens provenientes de atividade criminosa sem condenação

 

A 23 de abril, de acordo com o respetivo comunicado, o Conselho de Ministros “aprovou uma deliberação em que submete a consulta pública o anteprojeto de revisão da lei penal e processual penal, em matéria de perda de vantagens de atividade criminosa”, assegurando “a transposição da Diretiva (UE) 2024/1260, de 24 de abril de 2024, mediante a criação de dois novos mecanismos de perda alargada, um em espécie e o outro relativo a bens apreendidos associados a organização criminosa”. Além disso, sustenta que “o anteprojeto, elaborado pelo grupo de trabalho designado pela ministra da Justiça, vem ainda aprofundar o regime atualmente em vigor da perda, a favor do Estado, de vantagens patrimoniais resultantes, designadamente, de corrupção (‘confisco’), e colmatar algumas lacunas subsistentes”.

Trata-se do regime de “perda alargada”, isto é, o confisco de bens provenientes de atividade criminosa, segundo o qual os bens do arguido serão confiscados, mesmo sem condenação, em casos em que os crimes tenham prescrito, o arguido tenha morrido ou esteja em fuga.

No quadro da agenda anticorrupção, o governo pretende que os bens do arguido acusado pelo crime de corrupção (e por outros crimes económicos) possam ser confiscados por ordem de um juiz, que determinará quais os bens em causa, mesmo que não haja ainda condenação. 

No briefing subsequente ao Conselho de Ministros, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, considerou o novo diploma como “um instrumento com enorme potencial para capacitar as autoridades na luta contra a corrupção”.

Estas normas, resultantes das conclusões de um grupo de trabalho, estarão em consulta pública, mas, para já, de acordo com a ministra da Justiça, Rita Júdice, “o Conselho de Ministros validou, numa apreciação geral, as propostas desse grupo de trabalho e tomou como bom o anteprojeto de diploma”, devendo, agora, o texto do anteprojeto e o do relatório ser disponibilizados à consulta pública”. O objetivo último é eliminar as vantagens económicas obtidas através de crimes, respondendo, da melhor forma possível, ao princípio de que “o crime não compensa”.

mecanismo de perda alargada de bens passa a ser “em espécie”, não pelo valor de bem, ao invés do que sucede no confisco clássico, não tendo de ser demonstrada a ligação entre um crime específico e as vantagens obtidas, mas tendo de se saber quais os bens em causa. Assim, a perda é avaliada pela espécie do bem, e não pelo valor em si, mesmo que os crimes não estejam ainda totalmente apurados. 

Rita Júdice exemplificou, com um caso em que as autoridades descobrem um armazém de droga, com armas, com estupefacientes e com um quadro muito valioso, o arguido pode ter sido jugado e condenado por tráfico de droga, mas sem que tenha ficado provado de que tipo de crime resultou a obtenção do quadro para o arguido, em que dia ou em que situação foi obtido. Ora, nos termos do novo mecanismo da perda em espécie, “um bem específico, obtido por um arguido condenado, que tenha tido origem em atividade criminosa, mesmo que não se prove a ligação entre o quadro e o crime específico em causa pode ser confiscado a favor do Estado”, disse a governante, voltando ao mesmo exemplo, para considerar o caso de o quadro ter sido obtido pela prática de crime comprovado em processo penal, mas que prescreveu, ou o arguido morreu e o processo penal foi extinto, ou está em fuga.

Quanto a isso, o Código Penal não é muito claro no caso em que o processo prescreve ou em que se dá a morte do agente do crime, mas não pode haver processos-crime contra pessoas mortas. O novo mecanismo estipula regras claras: mesmo com a extinção do processo penal, será possível abrir um processo autónomo, de natureza não penal, que permita determinar o destino desse bem, declarando-o perdido a favor do Estado, segundo Rita Júdice.

Para explicar a segunda novidade do diploma, a governante frisou o caso em que o arguido – o traficante de droga do caso anterior – não foi condenado. Fez-se uma investigação, abriu-se um processo penal. Durante a investigação, o quadro foi apreendido por ordem do Ministério Público (MP) ou pelo tribunal. Não tendo sido o arguido condenado pelo crime sob investigação e não sendo, por isso, possível aplicar o novo mecanismo de perda alargada em espécie, pode suceder que, mesmo assim, em tribunal o juiz tenha ficado convencido de que o quadro apreendido terá sido obtido, mediante atividade criminosa praticada no âmbito de uma organização criminosa. Assim, quando não houver condenação, apesar de ter havido processo penal, mas for claro, para o tribunal, com base em toda a prova disponível, que o bem em questão resultava, não só de atividade criminosa, mas especificamente de atividade criminosa praticada no âmbito de organização criminosa, “o bem pode ser confiscado”.

Será criado um novo sujeito processual, ou seja, a “pessoa afetada” por decisões de apreensão, de arresto ou de perda de bens (incluindo a venda antecipada), terá o direito de estar presente e de ser ouvida pelo tribunal, bem como o direito à informação e o direito ao recurso. No caso vertente, a pessoa poderá ser, por exemplo, o herdeiro do arguido, a pessoa a quem o arguido vendeu, entretanto, o quadro.

O Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA) – criado em 2007 e na dependência da Polícia Judiciária (PJ) terá a possibilidade de decretar “ações imediatas que são apreensões, inclusivamente, em caso de arresto. Porém, estas ações imediatas têm de ser confirmadas por uma autoridade judiciária nas 72 horas subsequentes.

O GRA tem como missão proceder à identificação, à localização e à apreensão de bens ou de produtos relacionados com crimes, a nível interno e internacional, e cooperar com os gabinetes de recuperação de ativos criados por outros Estados.

“O eficaz combate à corrupção faz-se também com maior clareza legislativa, com soluções equilibradas que sejam exequíveis e não com soluções radicais que ficam pelo caminho”, vincou a ministra da Justiça, esclarecendo que a medida não surge, apenas por iniciativa do Executivo, mas também por imposição europeia da diretiva aprovada em abril de 2024 e que Portugal tem que transpor, até ao fim de 2027.

Diz a governante que “os estados-membros devem tomar as medidas necessárias para permitir a perda dos instrumentos, vantagens ou bens ou de vantagens ou bens que tenham sido transferidos para terceiros, nos casos em que tenha sido iniciado um processo penal, mas o mesmo não tenha podido prosseguir, devido a uma ou mais das seguintes circunstâncias: doença, fuga ou morte do suspeito ou arguido ou em que o prazo de prescrição previsto no direito nacional para a infração penal em causa é inferior a 15 anos e expirou após o início do processo penal”.

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A questão está longe de ser pacífica. “O confisco é um instituto de má memória, banido dos ordenamentos jurídicos civilizados, aquando das revoluções liberais, tendo sido recuperado, em todas as ditaduras do século XX. Não estranhamente, a partir dos alvores do século XXI, iniciámos uma deriva no sentido do retorno aos regimes autocráticos, que vem a desembocar nestes nossos dias”, diz o penalista Paulo Saragoça da Matta, em declarações ao ECO, interrogando-se: “Nos dias em que os índices de democraticidade do Mundo mostram que se caminha, a passos largos, para ditaduras de todas as cores, e, obviamente, os poderes políticos estribados em juristas de espírito totalitário, voltam a consagrar o confisco, como se fosse o único meio de combate ao crime, aos ‘maus’, aos ‘outros’, será estranho o crescimento exponencial do âmbito do confisco, dos casos em que é aplicável, e da destruição total das possibilidades reais e práticas de defesa dos visados – condenados, à partida, nos media e nos tribunais sem verdadeiro direito de defesa?”

O penalista não acha isso estranho, visto que os políticos, “medrosos do judiciário” – que os leva a mostrar que defendem o pregão, caso contrário, darão a entender que compactuam com o crime –, farão “tudo o que as franjas mais antidemocráticas das corporações judiciárias lhes exijam, desde logo escolherem aqueles juristas nacionalmente conhecidos como sendo os mais agressivos defensores do confisco – aqueles para quem se pode confiscar, mesmo que haja zero de prova de qualquer ligação a crime”. 

Também a advogada Ana Raquel Conceição sustenta que “quando se refere que a perda poderá ser declarada, mesmo em casos de prescrição do crime ou de morte do arguido, causas que extinguem a responsabilidade criminal”, há muita dificuldade em entender que tal medida esteja “em conformidade com a nossa Lei Fundamental”. Com efeito, segundo a advogada, “a existência de um processo de natureza não penal ‘que permita determinar o destino dos bens sem qualquer juízo de responsabilidade criminal, poderá significar que se utilizam medidas do direito sancionatório excecional e intervenção mínima, como o direito penal e processo penal, fora do seu âmbito e legitimação”.

Por outro lado, Ana Raquel Conceição considera que “a criação de um novo sujeito processual da pessoa afetada” não é novidade, pois o terceiro, ao abrigo da lei penal ou da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), “pode reagir, quando se lhe apreendam, arrestem ou se declarem perdidos bens que lhe pertencem, através da interposição de recurso, pois têm um direito afetado pela referida decisão”. Vê, com bons olhos, que se clarifiquem e aumentem os meios do direito ao seu contraditório, mas chamá-lo sujeito processual parece-lhe “demasiado ambicioso”.

Quanto à “apreensão em espécie”, que será, em rigor, um arresto, “já se encontra na previsão legal”, porque “o que se arresta, com vista à declaração de perda, são bens concretos”, consistindo a novidade “na possibilidade de se permitir que esteja abrangida a perda de um determinado bem, mesmo que não resulte da presunção de proveniência ilícita de um crime de catálogo sob investigação, mas associado a uma organização criminosa”. Aí, a advogada vê, com preocupação, esta medida, desde logo, por a terminologia utilizada carecer de rigor. A este respeito, questiona se “a organização criminosa será entendida como o crime de associação criminosa ou crime praticado em comparticipação criminosa, ou criminalidade que caiba na definição de criminalidade altamente organizada”. São dúvidas que instilam preocupação, por estar em causa “a aplicação do instrumento punitivo do Estado mais poderoso e mais lesivo dos direitos fundamentais”. E defende que a mensagem de que o crime não compensa “deve ser sempre veiculada e realçada”, mas sempre “pelo caminho certo”.

Para o advogado Carlos Pinto de Abreu, a grande novidade do anteprojeto é a de que “os instrumentos, os produtos e as vantagens que resultem de facto ilícito típico [de crime] são declarados perdidos a favor do Estado […], ainda que o procedimento por esse facto se extinga, entretanto, por força do decurso do respetivo prazo de prescrição, quando seja inferior a 15 anos, ou por doença do agente, ou a responsabilidade criminal cesse em virtude de amnistia ou da morte do agente”. Assim, no dizer do advogado, “em casos de prescrição, de morte, de doença, de amnistia e de fuga, e mesmo que não haja condenação criminal, o confisco de bens pode vir a ser decidido”, nos termos do anteprojeto aprovado pelo Conselho de Ministros e cuja proposta foi feita por um grupo de trabalho de alto nível, para transpor para o ordenamento jurídico nacional a diretiva relativa à recuperação e à perda de bens das vantagens da atividade criminosa aprovada pelo Parlamento Europeu (PE) e pelo Conselho Europeu, há um ano, a 24 de abril de 2024.

Segundo o advogado, que não aponta óbices ao anteprojeto, as novas normas “não visam apenas reforçar a eficácia dos mecanismos de perda alargada; visam, igualmente, um reforço dos direitos, das liberdades e das garantias dos cidadãos visados com interesse nos bens que podem ser declarados perdidos, nomeadamente herdeiros de arguidos ou de cidadãos, terceiros de boa-fé ou de má-fé, que tenham feito negócios com alguém que é ou foi investigado, criando-se uma nova figura do processo penal, precisamente o sujeito afetado que terá, para [lá] das normais garantias de defesa penais e patrimoniais, o direito à informação, os direitos de participação e de audiência, o direito de se opor e de requerer, de apresentar e solicitar provas, o direito de alegar, o direito à decisão de juiz e o direito de recorrer”.

Em suma, o novo mecanismo tem como principais novidades: a perda alargada de bens passa a ser “em espécie” e não pelo valor de bem; o confisco do bem ou dos bens pode ser decidido, mesmo sem haver estrita conexão com o crime que determinou a sua aquisição; o confisco pode ser decidido, mesmo que não haja condenação; pode ser aberto processo não penal; é criado um novo sujeito processual, a “pessoa afetada” por decisões de apreensão, arresto ou perda de bens; é feita uma reforma institucional no GRA, sendo-lhe acrescentadas competências, como a de poder decretar “ações imediatas” (apreensões cautelares), inclusivamente em caso de arresto, a confirmar por uma autoridade judiciária, nas 72 horas subsequentes.

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Já na abertura do ano judicial, a 13 de janeiro, o confisco de bens, no âmbito do combate aos crimes económicos e financeiros, foi um dos temas abordados, com a ministra da Justiça e o procurador-geral da República a delinearem o caminho. Aliás, é uma das 32 medidas da Agenda Anticorrupção, aprovada pelo governo, a 20 de junho de 2024.  

Rita Júdice justificou a opção, por a criminalidade económica comprometer a credibilidade do Estado e repelir o investimento. E defendia que esta modalidade de confisco, mesmo sem condenação, visa pôr o agente na situação patrimonial em que estaria, não tendo cometido o crime.

Por seu turno, Amadeu Guerra avançou que se encontrava elaborada e disponível, no portal da Procuradoria-Geral da República (PGR), a estratégia do MP, em matéria de recuperação de ativos para 2025. Para tanto, a PGR propunha, entre outras medidas: a formação específica e capacitação dos magistrados, em matéria de investigação patrimonial e financeira e de recuperação de ativos; a criação de regras uniformes em todo o MP, que reflitam efetiva cultura de recuperação dos ativos do crime; a criação de redes de magistrados e de órgãos de polícia criminal e de pontos de contacto especialistas em recuperação de ativos; a criação de manuais, de guias de boas práticas e de plataformas digitais neste contexto; a transposição da Diretiva (UE) 2024/1260, acima referida; e a avaliação da necessidade de criação de uma estrutura formal nacional centralizada num departamento da PGR para coordenação integral dos diferentes pontos de contacto; acompanhar a existência de candidaturas a programas nacionais e internacionais de financiamento de projetos de formação e de implementação da eficácia na aplicação dos mecanismos de recuperação de ativos; e assegurar o intercâmbio de informação, de formação e da articulação entre as redes nacionais e internacionais de recuperação de ativos.

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Contudo, a apreensão definitiva de bem ou confisco, sem condenação ou com condenação não decorrente do facto que motivou a sua aquisição é de duvidosa constitucionalidade; e a reversão para o Estado de um bem de origem desconhecida só é legítima após procura frustrada do dono.   

2025.04.24 – Louro de Carvalho

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