terça-feira, 31 de dezembro de 2024

É desajustado, com o Papa em exercício, discorrer sobre cardeais papáveis

 

Dois jornalistas que acompanham os assuntos do Vaticano tentam responder, através de um site da Internet (em Inglês), disponível desde 12 de dezembro de 2024, sobre os cardeais que poderão ser eleitos Papa e sobre o que pensam quanto a matérias fraturantes. O objetivo de “The College of Cardinals Report” (Relatório do Colégio dos Cardeais) é informar os purpurados eleitores que, em data imprevisível, se reunirão em conclave, na Capela Sistina.

Fruto de aturada investigação, o site dispõe da possibilidade de consultas interativas, que permitem saber da posição de um cardeal sobre determinado assunto, de uma lista que foi pré-definida, o que mostra, nesta iniciativa, a existência de sinais de uma intencionalidade ou, mesmo, de um projeto ideológico acalentado pelos jornalistas responsáveis por este trabalho.   

Edward Pentin, consultor e conferencista em temas do Vaticano, trabalha para o conservador National Catholic Register; e Diana Montagna, que nasceu nos Estados Unidos da América (EUA), que teve vários empregos em Itália e foi jornalista do site ultraconservador LifeSiteNews, é, atualmente, jornalista correspondente em Roma para o Catholic Herald, publicação afeta aos setores contestatários do Papa. Ambos se movimentam em meios que, sem chegar ao extremo dos “sedevantistas”, se distanciam da orientação do pontificado do atual e a combatem, considerando que Francisco colocou a Igreja Católica em “tempo de escuridão”, graças ao eclipse da luz do magistério dos dois pontificados anteriores e à confusão e ambiguidade doutrinal. Os tópicos em torno dos quais inquirem o currículos e, sobretudo, as declarações e escritos dos potenciais candidatos a Papa são, para eles, indicadores que poderão influenciar as opções do conclave. 

Quem são e o que defendem os “papabili”? As respostas têm em conta a adesão, a discordância ou a ambiguidade face aos temas: ordenação de mulheres como diáconos; bênção de casais do mesmo sexo; celibato sacerdotal opcional; restrição da antiga missa; acordos secretos entre o Vaticano e a China; promoção de Igreja sinodal; foco nas mudanças climáticas; reavaliação da Humanae Vitae; comunhão para divorciados e recasados; e ‘Caminho Sinodal’ da Alemanha.

Esquecem que, tecnicamente, qualquer batizado pode ser eleito. E, se não for bispo, terá de receber, a seguir à eleição, a ordem episcopal.

A lista é marcada de ênfases e de silêncios, desde logo no atinente à doutrina social da Igreja (nomeadamente desigualdades sociais; transformações do mundo do trabalho; migrações; paz e guerra; indústria e comércio de armas; discursos de ódio e desinformação; entre outros), e também ao diálogo inter-religioso, ao ecumenismo, à evangelização, etc.

Quanto aos nomes da lista dos potenciais candidatos incluídos, a questão que algumas análises levantam é a redução do conclave, que é processo complexo e surpreendente, a mero jogo político, onde a dimensão espiritual se dilui. Por outro lado, a lista inclui nomes (como o do cardeal Raymond Burke ou o do cardeal Robert Sarah) que, embora formalmente possíveis, estiveram envolvidos, cada um a seu modo, em comportamentos que só uma Igreja desassisada os poderia escolher. Outros purpurados figuram com os 80 anos ultrapassados, o que os torna bastante improváveis. E outros estão já perto dessa idade, de modo que, se o conclave tardar, já não serão eleitores. Um motivo do projeto relaciona-se com o facto de Francisco ter deixado de convocar o consistório dos cardeais para debater assuntos prementes da vida da Igreja, abrindo a formação de um verdadeiro “colégio”. A orientação de Bergoglio de escolher bispos das periferias e de dioceses improváveis tornaria complicadas as decisões, se Francisco morresse ou renunciasse.

Segundo Sandro Magister, vaticanista crítico do Papa, a primeira e última vez em que houve debate vivo entre cardeais foi em 2014 e não teria corrido bem para Francisco. Essas reuniões constituíam oportunidade para os purpurados se conhecerem melhor e, assim, estarem mais habilitados para eventual eleição. A revista “Cardinalis”, agora associada à iniciativa de Pentin e de Montagna, e a editora Sophia Institute Press, já tinham essas preocupações e deram voz a algumas das figuras mais conservadoras. 

Este é um trabalho em permanente atualização, tendo os dois coordenadores ligados ao produto final pessoas a trabalhar no sentido de juntarem mais informação à existente e de introduzir novos cardeais eleitores na lista publicada. E, para tanto, há financiamento assegurado. Com efeito, em 2018, vários meios de comunicação social que cobrem a atualidade da Igreja Católica anunciaram existir, nos EUA, a previsão do fundo de um milhão de dólares. Não se encontra informação de ligação direta entre o agora publicado e a intencionalidade de há anos, mas os círculos de pessoas e organizações, se não são os mesmos, têm ligações e os objetivos convergentes.

Na lista de algumas dezenas de cardeais que poderiam vir a ser eleitos papa, o português Tolentino Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação é apresentado como possível numa segunda linha. Verifica-se que, nos itens considerados, pesa a dúvida ou a ignorância sobre o posicionamento do português. Mas a apreciação qualitativa que dele se faz aponta no sentido da colagem à ala dos que defendem uma linha de continuidade com o atual Pontificado.

Em geral, reconhece-se que, a verificarem-se certas circunstâncias, pode ser um candidato forte. Sublinha-se-lhe a larga trajetória, que toca um leque significativo de vertentes, a sua origem africana e a sua atitude geral de “evitar o confronto”. Sublinha-se que está muito próximo do atual Papa, valorizando a sinodalidade como o futuro da Igreja. Porém, diz-se que possui competências de administração bastante pobres, desvaloriza-se a vertente poética, dizendo que é mais reconhecido pela sociedade do que pela Igreja. E conclui-se que, apesar da sua relativa juventude, não se deve subestimar o seu estatuto papável no Colégio Cardinalício. Para os cardeais eleitores que desejam um candidato de continuidade, alguém heterodoxo e modernista, com um impulso revolucionário ainda maior do que Francisco, o purpurado madeirense pode ser o candidato ideal.

Pela “ficha” de Tolentino, imagina-se que houve um verdadeiro trabalho de escrutínio da vida dos cardeais eleitores, incluindo o seu círculo de relações e os escritos, nomeadamente, as entrevistas dadas. Essas fontes que, pelo menos, neste caso, não são nomeadas, podem ter papel decisivo quanto à visão que constroem de cada um dos homens do barrete cardinalício.

Resta acrescentar que a lista dos eleitores inclui, naturalmente, fichas para os cardeais Manuel Clemente, António Marto e Américo Aguiar.

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A maioria dos livros e tratados que foram escritos sobre papas concentraram-se na natureza e na extensão da sua autoridade, isto é, o que o papa pode governar, ficando ao lado como o papa deve governar e que tipo de qualidades um cardeal deve ter para ser digno do papado.

O bispo de Roma é o sucessor de Pedro, não de Cristo; é o Vigário de Cristo na terra, não o substituto. Assim, a figura de Pedro na Sagrada Escritura pode ensinar muito sobre as qualidades necessárias a um papa. Após a Ressurreição, Jesus aproximou-se de Pedro, que o havia negado, e perguntou: “Tu amas-me?” E ordenou-lhe: “Cuida das minhas ovelhas, alimenta as minhas ovelhas” (vd Jo 21,15-17). Tais palavras manifestam virtudes fundamentais necessárias no coração do futuro papa. É certo que os bispos devem ter essas qualidades, mas, no papa, devem ser preeminentes: “Por instituição divina, os bispos sucederam aos Apóstolos por meio do Espírito Santo que lhes foi dado. São constituídos pastores na Igreja, para serem mestres da doutrina, e os sacerdotes do culto sagrado e os ministros do governo” (CIC, can. 375).

Um papa deve ser alguém cujo amor por Cristo se estende a todos os membros do Corpo Místico de Cristo, o rebanho do qual Cristo é o Bom Pastor. Ao invés do político, cujo foco é esta vida, o papel principal de um papa é ajudar a pastorear milhões de almas com segurança para a próxima. A sua caridade, portanto, deve ser tal que possa “cuidar” do rebanho, por meio do papel real de governança, e “alimentar” as ovelhas por meio do papel sacerdotal de santificar na liturgia e por meio do papel profético de ensinar a sã doutrina. Pedro oferece um desenvolvimento desses temas, exortando os ordenados ao sacerdócio: “Apascentai o rebanho de Deus, que está a vosso cargo, não por força, mas voluntariamente; não por ganho vergonhoso, mas de boa vontade; não como dominadores sobre os que estão a vosso cargo, mas servindo de exemplo ao rebanho. E, quando o Sumo Pastor se manifestar, obtereis a coroa imperecível da glória” (1Pe 5,2-4). Além disso, o papa, como alguém que será cingido por outro e levado a lugares que não deseja ir, deve ser humilde e dócil aos planos da providência divina (Jo 21,18). Como sucessor de Pedro, a “rocha” sobre a qual a Igreja visível foi fundada (Mt 16,18), o pontífice romano precisa de ser forte em caráter e fé. Como alguém que detém as “chaves do reino dos céus”, que pode “ligar e desligar” (Mt 16,19), o papa deve ser alguém que julga com justiça, temperado com misericórdia, à luz do bem das almas e da sua salvação eterna. Também deve confirmar os fiéis na Fé da Igreja, transmitida pela tradição, e zelar pelo respeito à ortodoxia, deveres que equivalem ao papel principal de Pedro: manter a unidade da Igreja.

Todas as pessoas na Terra são chamadas a ser santas, mas a santidade é repartida de forma diferente, de acordo com as diferentes vocações. Quando o seu discípulo monástico foi eleito Papa Eugénio III (1145), São Bernardo de Claraval decidiu continuar a sua instrução com um tratado sobre como ser papa santo, intitulado Sobre a Consideração. O conselho do monge cisterciense ecoaria nos ouvidos dos papas ao longo dos séculos. Bento XIV (1740-58) avaliou o tratado tão bem que o considerou a regra pela qual a santidade papal é medida e, em seu tratado sobre a canonização dos santos, resumiu o “conselho de ouro” de São Bernardo. 

Os pontos principais, que se seguem, dão uma pista sobre o que procurar em cardeais considerados papáveis: o papa não deve estar absorvido em atividades, mas deve lembrar-se de que o seu trabalho principal é edificar a Igreja, rezar e ensinar o povo; acima de todas as outras virtudes, um papa deve cultivar a humildade (quanto mais for elevado acima dos outros, mais deve se manifestar a sua humildade); o zelo de um papa deve considerar a sua santidade pessoal, e não honras mundanas; um papa deve ter amigos conhecidos pela sua bondade; como as estruturas de poder recebem, mais facilmente, os homens bons do que os tornam bons, o papa deve esforçar-se para promover os que demonstraram virtude; ao lidar com os ímpios, o papa deve voltar o seu rosto contra eles (“que tema o espírito de sua ira aquele que não tem medo do homem; que tema suas orações aquele que desprezou sua admoestação”); um papa deve escolher cardeais entre os homens mais eminentes em conhecimento e virtude, os que são pastores bons e bem qualificados; um papa deve nomear bons bispos, garantir que cumpram os seus deveres e, se necessário, obrigá-los; os papas devem ter zelo pela propagação da fé católica, pelo encorajamento e restauração da disciplina eclesiástica e pela defesa dos direitos da Santa Sé.

Alguém perguntará qual o papel do Espírito Santo nisto. Certamente a ajuda divina é invocada antes da votação, mas cada papa é realmente a “escolha de Deus”? Após a publicação das novas regras de São João Paulo II sobre as eleições papais, o cardeal Ratzinger explicitou: “Eu diria que o Espírito não assume exatamente o controlo do assunto, mas como um bom educador, por assim dizer, nos deixa muito espaço, muita liberdade, sem nos abandonar inteiramente. Assim, o papel do Espírito deve ser entendido em sentido muito mais elástico, e não do que ele dite o candidato em quem se deve votar.”

O velho ditado sobre eleições papais de que um “papa gordo segue um magro” significa que o pontífice recém-eleito pode ter visão oposta à de seu antecessor, ou talvez mais liberal do que o papa conservador a quem sucede, e vice-versa. Outro velho ditado sobre conclaves é que um homem que entra em conclave como papa sai como cardeal. E o facto de um papa nomear a grande maioria dos cardeais não garante que elegerão alguém como ele. Quem quer que seja escolhido, e por mais ou menos que os cardeais eleitores ouçam a Deus na sua escolha, o homem, se for bispo, torna-se papa no momento em que aceita, verbalmente, a eleição.

Porém, é de mau tom, levantarem-se estas questões na vigência do atual pontificado

2024.12.31- Louro de Carvalho

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