O presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, a 3 de
dezembro, impôs a lei marcial no país, argumentando que o parlamento, de
maioria opositora, estaria a sabotar o seu governo.
Yoon acusou os adversários de trabalharem em prol do
regime comunista da Coreia do Norte, que, segundo o exército sul-coreano, perturba
sinais de GPS (sistema de posicionamento global).
Na verdade, o
líder norte-coreano, Kim Jong Un, exibe o seu programa nuclear e de mísseis e envolve-se
em guerra eletrónica e psicológica, incluindo o lançamento de milhares de
balões para lançar lixo e folhetos de propaganda antissul-coreana, tendo dezenas
de aviões civis e vários navios sido perturbados por tais atividades.
A oposição reagiu com protestos e viu, na medida, uma
tentativa do presidente de ampliar os seus poderes. E, horas depois, o
parlamento reuniu-se e conseguiu aprovar uma moção pelo derrube da lei, que
acabou por ser revogada.
Na Coreia do Sul, a lei
marcial é uma medida excecional, que pode ser usada em momentos de graves
crises ou de guerras, para garantir a ordem pública. A sua aplicação é
feita por decreto presidencial, sob proposta do governo, e prevê o controlo do
país pelos militares, a suspensão do parlamento e a proibição de manifestações
nas ruas. Os direitos da população ficam restritos e a imprensa é colocada sob
tutela.
Descrita no artigo 77.º da Constituição sul-coreana e
vertida para lei-quadro, a lei marcial pode ser declarada pelo presidente, “quando
for necessário enfrentar uma exigência militar ou manter a segurança e a ordem
pública, pela mobilização das Forças Armadas, em tempos de guerra, de conflito
armado ou de emergência nacional semelhante”.
O decreto publicado pelo governo, que invocava a proteção
da democracia
liberal contra a ameaça de derrubada do regime da República da Coreia por
forças antiestado ativas no país e a garantia da segurança do povo, segundo a Reuters, declarava, o seguinte, para
todo o território da República da Coreia, a partir das 23h00 de 3 de dezembro:
·
Ficam
proibidas todas as atividades políticas, incluindo as da Assembleia Nacional, dos
conselhos locais, dos partidos políticos, das associações políticas, as manifestações
e os protestos, tal como ficam proibidos todos os atos que neguem ou tentem
derrubar o sistema democrático liberal, bem como a disseminação de notícias
falsas, a manipulação da opinião pública e a propaganda falsa.
·
Todos os
meios de comunicação e publicações estarão sob controlo do Comando da Lei
Marcial.
·
Estão
proibidas as greves, as paralisações e os protestos que incitem o caos social.
·
Todo o
pessoal médico, incluindo médicos em treinamento, que esteja em greve ou tenha
deixado o setor médico deve retornar ao trabalho, dentro de 48 horas, e exercer
as suas funções de forma fiel, sendo punidos, de acordo com a lei marcial, os
que violarem esta regra.
·
Cidadãos
comuns inocentes, com exceção de forças antiestado e outros elementos
subversivos, estarão sujeitos a medidas para minimizar os transtornos nas suas
vidas diárias.
Os que violarem
esta proclamação poderão ser presos, detidos e revistados sem mandado, nos
termos do artigo 9.º da Lei Marcial da República da Coreia (Autoridade de
Medidas Especiais do Comandante da Lei Marcial), e serão punidos, nos termos do
seu artigo 14.º (Penalidades).
***
Quando Yoon
Suk-yeol se apresentou em direto na televisão sul-coreana, no dia 3, à noite,
poucos esperavam que impusesse a lei marcial. A última vez que um líder de Seul
o fez foi há quase meio século, em 1979, em várias décadas de regime
autoritário, que terminou em 1987.
Isso remete
para o fim da Guerra da Coreia de 1950-1953, após a qual uma série de líderes
ditatoriais proclamaram, ocasionalmente, a lei marcial, para colocarem os
militares nas ruas do país a reprimir os protestos antigovernamentais. Muitos
sul-coreanos têm vivas recordações desta situação, já que as imagens
perturbadoras de homens com equipamento militar, helicópteros e tanques junto à
Assembleia Nacional, em Seul, recordavam uma época de junta militar à qual a
maioria dos sul-coreanos não tem qualquer interesse em regressar.
Assim,
este sentimento prevaleceu: a votação unânime de 190-0 na Assembleia Nacional exigiu
o fim da lei marcial e, apenas seis horas depois, o presidente revogou a sua
ordem, às 4h30 da manhã (hora local) do dia 4.
Por
conseguinte, a destituição do presidente parece ser a
opção mais provável, dada a condenação quase unânime das ações de Yoon, mesmo
dentro do seu partido.
Os principais conselheiros do
presidente, os secretários e alguns membros do governo, incluindo o ministro da
Defesa, Kim Hyun-jong, ofereceram-se para se demitirem coletivamente.
Nada disto é
um bom presságio para o futuro de Yoon no cargo. Com efeito,
seis partidos da oposição apresentaram uma moção de destituição do presidente,
o que exigiria o apoio de dois terços do parlamento e de, pelo menos, seis
juízes do Tribunal Constitucional.
O presidente
da Assembleia Nacional, Woo Won-sik, deverá abrir uma sessão parlamentar para
que a moção seja debatida, o que poderá acontecer já no dia 6 ou no dia 7,
devendo a votação ocorrer no prazo de três dias, a contar da data de
apresentação da proposta de destituição.
A última vez
que a lei marcial foi imposta no país – em 1979 – foi na sequência do
assassinato do antigo ditador militar Park Chung-hee. E, numa reviravolta
profundamente irónica, Yoon Suk-yeol liderou um processo de corrupção contra a
filha de Park, que foi presidente da Coreia do Sul, até à sua destituição, por
abuso de poder, em 2016.
***
Entretanto, sucedem-se
as consequências políticas da imposição e do posterior levantamento da lei marcial
de emergência na Coreia do Sul. Efetivamente, já depois de a oposição
do país ter apresentado uma moção de destituição do presidente, Yoon
Suk Yeol, foi a vez do ministro da Defesa, Kim Yong-hyun, assumir total
responsabilidade pelo incidente. Em
comunicado divulgado pelo Ministério da Defesa, Kim Yong-hyun pediu desculpa à
população pela situação, de que assumiu total responsabilidade. No entanto, o
ministro da Defesa permanecerá no cargo até a demissão ser aceite pelo
presidente, Yoon Suk Yeol, como reportou a Yonhap, a principal agência de notícias do país.
Até ao momento, o chefe de Estado ainda não se pronunciou formalmente sobre
o tema.
O ministro pediu
ainda desculpa à população por ter espalhado a confusão e por ter causado
angústia, na sequência da imposição
da lei marcial de emergência.
Como se disse,
seis partidos da oposição avançaram com uma moção de destituição contra Yoon
Suk Yeol. E o principal partido da oposição, o Partido Democrático, afirmou ter
já começado a trabalhar na formalização de acusações de traição contra o chefe
de Estado sul-coreano e contra os ministros da Defesa e do Interior.
Numa altura
em que o seu futuro político está em cima da mesa, o presidente enfrenta ainda
uma crescente discórdia no seio do
próprio partido. A principal agência noticiosa do país destacou que
o Partido do Poder Popular está a considerar a possibilidade de exigir a
demissão de todo o gabinete presidencial. A possibilidade de apresentação de um
pedido de renúncia ao próprio chefe de Estado não está, também, totalmente
excluída.
***
Em suma, na
madrugada de 3 de dezembro, a Assembleia Nacional levantou a medida imposta,
seis horas antes, pelo presidente. Esta foi a primeira declaração de lei
marcial desde há mais de quatro décadas, quando o país era regido por uma
ditadura. A medida contou com a oposição
de todo o espetro político sul-coreano, incluindo do próprio
partido do presidente, o Partido do Poder Popular. “O Parlamento exigiu o
levantamento da lei marcial, pelo que ordenei a retirada das forças militares
destacadas para o efeito”, revelou Yoon Suk Yeol, numa declaração ao país, mas acrescentando:
“No entanto, solicito que o Parlamento cesse, imediatamente, as ações imprudentes que estão a
paralisar as funções do Estado, tais como os pedidos repetidos de destituição,
a manipulação legislativa e a manipulação orçamental.”
Estas declarações surgiram
após os 190 deputados presentes no hemiciclo da Assembleia Nacional terem
bloqueado unanimemente a iniciativa.
A lei
marcial é, normalmente, invocada em tempo de guerra, de rebelião ou de catástrofe natural. A sua
vigência suspende todas as leis existentes e permite aos militares assumirem o
controlo das autoridades civis e terem o poder de criar e de aplicar leis.
Pelas 23h00
locais, o presidente declarara a lei marcial, num discurso televisivo,
afirmando que esta defenderia a ordem constitucional de democracia liberal,
protegendo a Coreia do Sul de “ameaças colocadas pelas forças comunistas da
Coreia do Norte” e eliminando elementos antiestatais”. Por outro lado, acusou a
oposição do país, que controla a Assembleia Nacional, de simpatizar com a Coreia do Norte e
de paralisar o governo, através de atividades antiestatais.
Horas depois
do anúncio da lei marcial, a oposição declarou a lei “inconstitucional” e “inválida”
e o presidente da Assembleia Nacional, Woo Won Shik, alinhado com o Partido
Democrático (de tendência liberal), disse que os legisladores iriam “proteger a democracia com o povo”.
***
É típico do regime de democracia representativa o Parlamento ser o
principal órgão de soberania. Porém, a tendência dos governos e dos chefes de Estado
vai no sentido de se sobreporem ao Parlamento, que detém o poder legislativo e o
de fiscalizar a governação. Neste âmbito cabe a dissolução dos parlamentos e a
marcação de eleições antecipadas, por iniciativa do chefe de Estado ou a pedido
dos próprios governos, bem como as alterações constitucionais que permitem as
repetições dos mandatos presidenciais.
Ao invés do que dizem alguns comentadores, também em Portugal, a Constituição
da República Portuguesa (CRP) prevê estados de exceção – a declaração do estado
de sítio e a declaração do estado de emergência (CRP, artigos 19.º, 134.º, alínea
d) e 138.º) –, mas sem afetar os
direitos fundamentais, o direito à informação e o funcionamento dos órgãos de soberania.
Mais a iniciativa é do Presidente da República, ouvido o governo, e carece de autorização
parlamentar, devendo a proposta do decreto presidencial especificar todas as condições
a que deve obedecer o respetivo estado de exceção; e deve respeitar os
princípios da necessidade e da proporcionalidade, bem como observar o horizonte
de 15 dias ou outro fixado na lei, em caso de guerra, renovável nas mesmas
condições da declaração inicial.
Tais determinações são acolhidas pela Lei Orgânica n.º 44/86, de 30 de
setembro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de
maio. Na vigência do estado de emergência, o controlo do país compete ao
governo coadjuvado pelas forças de segurança e com a colaboração das Forças
Armadas, ao passo que, na vigência do estado de sítio, o controlo do país compete
ao governo, através das Forças Armadas, com a colaboração das forças de
segurança.
Em todo o caso, é de acentuar que a defesa da democracia representativa
compete ao Parlamento, que é onde ela tem a máxima expressão, para o bem e para
o mal, sem descurar a função representativa, de coesão e do topo da execução
das leis inerente ao cargo presidencial.
2024.12.04 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário