quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Lei marcial sul-coreana durou seis horas, mas fez estragos políticos

 

O presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, a 3 de dezembro, impôs a lei marcial no país, argumentando que o parlamento, de maioria opositora, estaria a sabotar o seu governo.

Yoon acusou os adversários de trabalharem em prol do regime comunista da Coreia do Norte, que, segundo o exército sul-coreano, perturba sinais de GPS (sistema de posicionamento global).

Na verdade, o líder norte-coreano, Kim Jong Un, exibe o seu programa nuclear e de mísseis e envolve-se em guerra eletrónica e psicológica, incluindo o lançamento de milhares de balões para lançar lixo e folhetos de propaganda antissul-coreana, tendo dezenas de aviões civis e vários navios sido perturbados por tais atividades.

A oposição reagiu com protestos e viu, na medida, uma tentativa do presidente de ampliar os seus poderes. E, horas depois, o parlamento reuniu-se e conseguiu aprovar uma moção pelo derrube da lei, que acabou por ser revogada.

Na Coreia do Sul, a lei marcial é uma medida excecional, que pode ser usada em momentos de graves crises ou de guerras, para garantir a ordem pública. A sua aplicação é feita por decreto presidencial, sob proposta do governo, e prevê o controlo do país pelos militares, a suspensão do parlamento e a proibição de manifestações nas ruas. Os direitos da população ficam restritos e a imprensa é colocada sob tutela.

Descrita no artigo 77.º da Constituição sul-coreana e vertida para lei-quadro, a lei marcial pode ser declarada pelo presidente, “quando for necessário enfrentar uma exigência militar ou manter a segurança e a ordem pública, pela mobilização das Forças Armadas, em tempos de guerra, de conflito armado ou de emergência nacional semelhante”.

O decreto publicado pelo governo, que invocava a proteção da democracia liberal contra a ameaça de derrubada do regime da República da Coreia por forças antiestado ativas no país e a garantia da segurança do povo, segundo a Reuters, declarava, o seguinte, para todo o território da República da Coreia, a partir das 23h00 de 3 de dezembro:

·       Ficam proibidas todas as atividades políticas, incluindo as da Assembleia Nacional, dos conselhos locais, dos partidos políticos, das associações políticas, as manifestações e os protestos, tal como ficam proibidos todos os atos que neguem ou tentem derrubar o sistema democrático liberal, bem como a disseminação de notícias falsas, a manipulação da opinião pública e a propaganda falsa.

·       Todos os meios de comunicação e publicações estarão sob controlo do Comando da Lei Marcial.

·       Estão proibidas as greves, as paralisações e os protestos que incitem o caos social.

·       Todo o pessoal médico, incluindo médicos em treinamento, que esteja em greve ou tenha deixado o setor médico deve retornar ao trabalho, dentro de 48 horas, e exercer as suas funções de forma fiel, sendo punidos, de acordo com a lei marcial, os que violarem esta regra.

·       Cidadãos comuns inocentes, com exceção de forças antiestado e outros elementos subversivos, estarão sujeitos a medidas para minimizar os transtornos nas suas vidas diárias.

Os que violarem esta proclamação poderão ser presos, detidos e revistados sem mandado, nos termos do artigo 9.º da Lei Marcial da República da Coreia (Autoridade de Medidas Especiais do Comandante da Lei Marcial), e serão punidos, nos termos do seu artigo 14.º (Penalidades).

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Quando Yoon Suk-yeol se apresentou em direto na televisão sul-coreana, no dia 3, à noite, poucos esperavam que impusesse a lei marcial. A última vez que um líder de Seul o fez foi há quase meio século, em 1979, em várias décadas de regime autoritário, que terminou em 1987.

Isso remete para o fim da Guerra da Coreia de 1950-1953, após a qual uma série de líderes ditatoriais proclamaram, ocasionalmente, a lei marcial, para colocarem os militares nas ruas do país a reprimir os protestos antigovernamentais. Muitos sul-coreanos têm vivas recordações desta situação, já que as imagens perturbadoras de homens com equipamento militar, helicópteros e tanques junto à Assembleia Nacional, em Seul, recordavam uma época de junta militar à qual a maioria dos sul-coreanos não tem qualquer interesse em regressar.

Assim, este sentimento prevaleceu: a votação unânime de 190-0 na Assembleia Nacional exigiu o fim da lei marcial e, apenas seis horas depois, o presidente revogou a sua ordem, às 4h30 da manhã (hora local) do dia 4.

Por conseguinte, a destituição do presidente parece ser a opção mais provável, dada a condenação quase unânime das ações de Yoon, mesmo dentro do seu partido. Os principais conselheiros do presidente, os secretários e alguns membros do governo, incluindo o ministro da Defesa, Kim Hyun-jong, ofereceram-se para se demitirem coletivamente.

Nada disto é um bom presságio para o futuro de Yoon no cargo. Com efeito, seis partidos da oposição apresentaram uma moção de destituição do presidente, o que exigiria o apoio de dois terços do parlamento e de, pelo menos, seis juízes do Tribunal Constitucional.

O presidente da Assembleia Nacional, Woo Won-sik, deverá abrir uma sessão parlamentar para que a moção seja debatida, o que poderá acontecer já no dia 6 ou no dia 7, devendo a votação ocorrer no prazo de três dias, a contar da data de apresentação da proposta de destituição.

A última vez que a lei marcial foi imposta no país – em 1979 – foi na sequência do assassinato do antigo ditador militar Park Chung-hee. E, numa reviravolta profundamente irónica, Yoon Suk-yeol liderou um processo de corrupção contra a filha de Park, que foi presidente da Coreia do Sul, até à sua destituição, por abuso de poder, em 2016.

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Entretanto, sucedem-se as consequências políticas da imposição e do posterior levantamento da lei marcial de emergência na Coreia do Sul. Efetivamente, já depois de a oposição do país ter apresentado uma moção de destituição do presidente, Yoon Suk Yeol, foi a vez do ministro da Defesa, Kim Yong-hyun, assumir total responsabilidade pelo incidente. Em comunicado divulgado pelo Ministério da Defesa, Kim Yong-hyun pediu desculpa à população pela situação, de que assumiu total responsabilidade. No entanto, o ministro da Defesa permanecerá no cargo até a demissão ser aceite pelo presidente, Yoon Suk Yeol, como reportou a Yonhap, a principal agência de notícias do país.

Até ao momento, o chefe de Estado ainda não se pronunciou formalmente sobre o tema.

O ministro pediu ainda desculpa à população por ter espalhado a confusão e por ter causado angústia, na sequência da imposição da lei marcial de emergência.

Como se disse, seis partidos da oposição avançaram com uma moção de destituição contra Yoon Suk Yeol. E o principal partido da oposição, o Partido Democrático, afirmou ter já começado a trabalhar na formalização de acusações de traição contra o chefe de Estado sul-coreano e contra os ministros da Defesa e do Interior.

Numa altura em que o seu futuro político está em cima da mesa, o presidente enfrenta ainda uma crescente discórdia no seio do próprio partido. A principal agência noticiosa do país destacou que o Partido do Poder Popular está a considerar a possibilidade de exigir a demissão de todo o gabinete presidencial. A possibilidade de apresentação de um pedido de renúncia ao próprio chefe de Estado não está, também, totalmente excluída.

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Em suma, na madrugada de 3 de dezembro, a Assembleia Nacional levantou a medida imposta, seis horas antes, pelo presidente. Esta foi a primeira declaração de lei marcial desde há mais de quatro décadas, quando o país era regido por uma ditadura. A medida contou com a oposição de todo o espetro político sul-coreano, incluindo do próprio partido do presidente, o Partido do Poder Popular. “O Parlamento exigiu o levantamento da lei marcial, pelo que ordenei a retirada das forças militares destacadas para o efeito”, revelou Yoon Suk Yeol, numa declaração ao país, mas acrescentando: “No entanto, solicito que o Parlamento cesse, imediatamente, as ações imprudentes que estão a paralisar as funções do Estado, tais como os pedidos repetidos de destituição, a manipulação legislativa e a manipulação orçamental.”

Estas declarações surgiram após os 190 deputados presentes no hemiciclo da Assembleia Nacional terem bloqueado unanimemente a iniciativa.

A lei marcial é, normalmente, invocada em tempo de guerra, de rebelião ou de catástrofe natural. A sua vigência suspende todas as leis existentes e permite aos militares assumirem o controlo das autoridades civis e terem o poder de criar e de aplicar leis.

Pelas 23h00 locais, o presidente declarara a lei marcial, num discurso televisivo, afirmando que esta defenderia a ordem constitucional de democracia liberal, protegendo a Coreia do Sul de “ameaças colocadas pelas forças comunistas da Coreia do Norte” e eliminando elementos antiestatais”. Por outro lado, acusou a oposição do país, que controla a Assembleia Nacional, de simpatizar com a Coreia do Norte e de paralisar o governo, através de atividades antiestatais.

Horas depois do anúncio da lei marcial, a oposição declarou a lei “inconstitucional” e “inválida” e o presidente da Assembleia Nacional, Woo Won Shik, alinhado com o Partido Democrático (de tendência liberal), disse que os legisladores iriam “proteger a democracia com o povo”.

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É típico do regime de democracia representativa o Parlamento ser o principal órgão de soberania. Porém, a tendência dos governos e dos chefes de Estado vai no sentido de se sobreporem ao Parlamento, que detém o poder legislativo e o de fiscalizar a governação. Neste âmbito cabe a dissolução dos parlamentos e a marcação de eleições antecipadas, por iniciativa do chefe de Estado ou a pedido dos próprios governos, bem como as alterações constitucionais que permitem as repetições dos mandatos presidenciais.

Ao invés do que dizem alguns comentadores, também em Portugal, a Constituição da República Portuguesa (CRP) prevê estados de exceção – a declaração do estado de sítio e a declaração do estado de emergência (CRP, artigos 19.º, 134.º, alínea d) e 138.º) –, mas sem afetar os direitos fundamentais, o direito à informação e o funcionamento dos órgãos de soberania. Mais a iniciativa é do Presidente da República, ouvido o governo, e carece de autorização parlamentar, devendo a proposta do decreto presidencial especificar todas as condições a que deve obedecer o respetivo estado de exceção; e deve respeitar os princípios da necessidade e da proporcionalidade, bem como observar o horizonte de 15 dias ou outro fixado na lei, em caso de guerra, renovável nas mesmas condições da declaração inicial.

Tais determinações são acolhidas pela Lei Orgânica n.º 44/86, de 30 de setembro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio. Na vigência do estado de emergência, o controlo do país compete ao governo coadjuvado pelas forças de segurança e com a colaboração das Forças Armadas, ao passo que, na vigência do estado de sítio, o controlo do país compete ao governo, através das Forças Armadas, com a colaboração das forças de segurança.

Em todo o caso, é de acentuar que a defesa da democracia representativa compete ao Parlamento, que é onde ela tem a máxima expressão, para o bem e para o mal, sem descurar a função representativa, de coesão e do topo da execução das leis inerente ao cargo presidencial.

2024.12.04 – Louro de Carvalho

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