Na terceira etapa do “caminho do advento”, surge o
“domingo Gaudete” (Alegrai-vos) a convidar-nos à alegria, porque a vinda do
Senhor está iminente e a libertação cada vez mais perto.
O profeta Sofonias insta Jerusalém a alegrar-se por
Deus ter revogado a sentença condenatória pendente sobre o seu Povo, pois o
amor de Deus é muito mais forte do que a necessidade de punir.
Em 734 a.C. o rei Acaz (734-727 a.C.), confrontado com
a ameaça da coligação dos reis de Damasco e de Israel, pediu ajuda a
Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, que derrotara o rei de Damasco, pondo fim à
ameaça contra Judá; e Acaz tornou-se vassalo da Assíria. Judá, a girar na
órbita política da Assíria, teve de abrir as portas às influências religioso-culturais
dos Assírios.
Costumes estranhos e cultos pagãos irromperam em
Jerusalém, minando a fidelidade do Povo a Javé, situação que manteve-se durante
o longo reinado de Manassés (698-643 a.C.), com o rei a reconstruir os lugares
de culto aos deuses estrangeiros, a erigir altares a Baal, a oferecer o filho
em holocausto, a dedicar-se à adivinhação e à magia e a pôr no Templo de
Jerusalém a imagem da deusa Astarte. A
pari, multiplicava-se a injustiça social, a arbitrariedade, a violências
contra os pobres e débeis, em grave violação da Aliança que o povo tinha com
Deus. Quando, em 639 a.C., Josias (639-609 a.C.) subiu ao trono, Judá precisava
de profunda reforma política, social e religiosa. E o novo rei lançou-se a essa
tarefa.
Sofonias iniciou, então, a sua profecia, tendo sido o
motor dessa reforma. Denunciou o pecado de Judá; atacou a idolatria cultual, a
injustiça, o materialismo, o laxismo religioso, o abuso da autoridade; e
sustentava que a situação não podia continuar e que, se nada fosse mudado,
chegaria o dia do Juízo de Deus. Todavia, o escopo da sua pregação não era
anunciar o castigo, mas era levar o Povo a converter-se a Deus.
O profeta considerava que o Povo de Deus não podia ter
compromisso com Javé e comportar-se como se tal compromisso não contasse;
achava que o Povo não podia invocar a Aliança e prestar culto a deuses
estrangeiros, desrespeitar os direitos dos pobres, cultivar a exploração, a
injustiça, a arbitrariedade. Então, pedia que Judá se convertesse, deixasse o
caminho de infidelidade que estava a seguir e regressasse a Deus.
O trecho que a liturgia do 3.º domingo do advento nos
oferece como primeira leitura (Sf 3,14-18a) integra um lote de “promessas de salvação” que aparece
na parte final do livro. Antes, Sofonias predissera a chegada do “dia do
Senhor”, o dia da intervenção justiceira de Deus, em que Deus castigaria Judá
pelas suas infidelidades; avisara Jerusalém, cidade rebelde, manchada e
opressora, de que o fogo do zelo de Deus a consumiria. Porém, de repente, o
discurso muda de tom: a ameaça do castigo transforma-se em anúncio de salvação;
a aflição e o pranto cedem à alegria e à festa.
Em nome de Deus, Sofonias dirige a Jerusalém e aos
seus habitantes a palavra de esperança: a tristeza mudar-se-á em alegria, os
lamentos que se ouvem em toda a cidade darão lugar a gritos de júbilo, pois Javé
revogou a sentença de condenação que emitira contra o seu Povo.
Judá tinha pecado e tinha traído Deus; tinha
subvertido a Aliança e escolhido a via do pecado. Deus, cansado da reiterada infidelidade
do Povo, decidira pôr fim a essa relação desigual. Porém, o amor de Deus falou
mais alto do que a sua cólera. Ora, o amor verdadeiro triunfa sempre. O “dia do
Senhor” deixou de ser o dia em que Deus castiga Israel, para ser o dia em que o
amor de Deus triunfa sobre a sua ira. Por isso, Deus vai afastar de Jerusalém
os inimigos através dos quais iria consumar o castigo de Judá. O amor fez da
ameaça de condenação a História de Salvação.
Deus, vencido pelo amor, veio ter com o Povo, para
morar, de novo, no meio dele. Como o apaixonado, Deus não quer estar longe da
sua amada. Deus é o rei que governa Judá e o defende, como poderoso salvador.
Deus veio para ficar; e Judá, protegido pelo amor de Deus, reencontrou a paz, a
segurança, a felicidade, a alegria.
Esta profecia recebe nova luz, no Advento, quando nos
preparamos para celebrar a chegada de Jesus, o Deus que veio habitar com o seu Povo
e trazer-nos a salvação e a alegria.
***
No Evangelho
(Lc 3,10-18), João
Batista, o profeta do advento, continua a propor rumos de conversão. Exorta-nos
à mudança radical que nos torne mais humanos, solidários, bondosos, misericordiosos;
que leve a praticar os nossos bens com os necessitados, a não defraudar o
próximo, a não exercer violência – marcas da vida nova segundo o Espírito.
Vamos até ao vale do rio Jordão, ao encontro de João,
a quem as gentes da Judeia chamavam “o batista”. O pai era o sacerdote
Zacarias. E, embora de família sacerdotal, não há notícia de que João tenha
exercido funções sacerdotais no quadro da religião tradicional.
Por volta do ano 27 ou 28, João aparece nas franjas do
deserto de Judá, perto de Jericó, na região da Pereia (território administrado
por Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande), na margem oriental do rio
Jordão. Aí, João pregava “um batismo de conversão para remissão dos pecados”.
A sua pregação causou forte impacto nas gentes da
Judeia e da Galileia; e muitos vinham até à margem do Jordão escutá-lo. João
denunciava – em linguagem rude e campesina – o pecado e a rebeldia de Israel; e
anunciava a iminente intervenção de Deus no Mundo, para acabar com o mal (“raça
de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para chegar? O machado
já se encontra à raiz das árvores; por isso, toda a árvore que não der bom
fruto será cortada e lançada ao fogo”). A forma de evitar a “ira de Deus” era
converter-se radicalmente, cortar com o pecado e voltar para Deus. Aos que se
dispunham a tal mudança, João propunha o gesto purificador e renovador da
imersão nas águas do Jordão.
O judaísmo antigo conhecia diversos rituais de
purificação pela água. Os essénios, instalados em Kûmran (aldeia situada perto
do lugar onde João batizava) praticava banhos rituais diários de purificação em
piscinas edificadas para o efeito. Porém, o gesto que João propunha era
diferente. Quem aceitava a proposta de conversão, era imerso por João nas águas
vivas do Jordão, confessava os pecados, recebia o perdão de Deus e saía
purificado. Este ritual só se fazia uma vez. A pessoa batizada por João passava
a pertencer à comunidade da nova Aliança e voltava para casa decidida a viver
de uma forma nova, sentindo-se membro do novo Israel, preparada para acolher a
chegada iminente de Deus.
A mudança de vida que João propunha aos que o
procuravam na margem do rio, devia traduzir-se na efetiva mudança de atitudes.
Não basta declarar boas intenções; a conversão tem de manifestar-se em gestos.
Por isso, João dizia-lhes: “Produzi frutos de sincera conversão.”
Todavia, as pessoas, querendo orientações concretas,
perguntavam: “Que devemos fazer?” É a pergunta que Lucas coloca na boca das
pessoas, em diversas situações, a fim de traduzir a disponibilidade para
refazer a própria vida e para acolher a salvação que vem de Deus. Em resposta,
João não pede gestos piedosos ou práticas religiosas especiais, mas coisas
concretas, que apontam no sentido de uma vida mais humana, mais justa e mais
fraterna.
Ao povo, aconselha a “repartir” (“quem tiver duas
túnicas reparta com quem não tem nenhuma; e quem tiver mantimentos faça o
mesmo”). O verbo “repartir” desaloja-nos da vida construída à volta do “ter” e
obriga-nos a olhar para os irmãos que estão ao nosso lado. Não significa dar o
supérfluo ou as sobras, mas partilhar com o próximo, sem cálculo nem hesitação,
o pouco ou o muito que temos. Faz-nos tomar consciência de que os bens –
inclusive os que respondem às necessidades básicas do homem, como a roupa e os
alimentos – são dons de Deus postos à nossa disposição, mas destinados a todos.
Ainda que hajam sido legitimamente adquiridos, os bens que temos pertencem a
todos os filhos e filhas de Deus. “Repartir” significa passar da economia da
posse para a economia do dom.
Aos publicanos, João recomenda que não se aproveitem
da sua condição para explorarem os seus irmãos (“não exijais nada além do que
vos foi prescrito”). Encarregados de recolher os impostos, os publicanos
tendiam a extorquir às pessoas quantias superiores ao estipulado; e a diferença
redundava em seu benefício. Ora, a cupidez que leva à exploração e ao roubo não
é compatível com a vida segundo Deus. O enriquecimento por meios ilícitos e
imorais, a exploração dos pobres, as falcatruas económicas que prejudicam a
comunidade, são crimes que destroem o tecido social.
Aos soldados, João pede que não usem de violência e
que não abusem da força para cometer injustiças (“não pratiqueis violência com
ninguém nem denuncieis injustamente; e contentai-vos com o vosso soldo”). Em
virtude do seu ofício e do poder que as armas lhes conferiam, os soldados
profissionais usavam a força indiscriminadamente. Com facilidade maltratavam as
pessoas, obrigavam-nas a fazer trabalhos não remunerados, extorquiam dinheiro e
outros bens aos camponeses. Ora, a violência, o abuso do poder, a prepotência,
desumanizam o Mundo, subvertem o plano de Deus para o Mundo e trazem aos mais
frágeis sofrimento intolerável.
Os frutos de conversão que João pede referem-se a atitudes
e a comportamentos para com o próximo. A melhor forma de prepararmos o caminho
para o Senhor que vem é cuidarmos das nossas atitudes para com os irmãos, é
construirmos uma sociedade mais justa, solidária e fraterna.
As pessoas que escutavam a pregação escatológica de
João interrogavam-se sobre o que aconteceria depois de João ter cumprido a sua
missão; como se processaria a intervenção de Deus na História, se apareceria “o
Messias” de Deus, para concretizar a restauração definitiva de Israel, e se o
“Messias” que o Povo esperava estaria, de algum modo, ligado à figura de João.
É destas questões que trata a segunda parte do Evangelho desta dominga.
João acreditava que, quando saísse de cena, iria
chegar outra figura, enviada por Deus, para concretizar a intervenção final de
Deus na História. João não lhe chamava “Messias”, para não acirrar a expetativa
messiânica do Povo. Referia-se-lhe como “o mais forte do que eu”, dizendo de si
próprio que não era digno de lhe “desatar as correias das sandálias”.
Desatar a correia das sandálias era tarefa de
escravos. A expressão traduz a consideração de João pel’O que há de vir e que é
“o mais forte”, O que Deus iria encarregar de uma tarefa superlativa na
História da Salvação, o mediador encarregado de concluir o processo que João
começara.
Provavelmente, João pensava que “o mais forte”,
enviado por Deus, iria trazer um batismo purificador, que teria duplo efeito:
queimaria a palha – isto é, tudo o que é mau, que não serve para nada – “num
fogo que não se apaga” e derramaria sobre os homens o Espírito da verdade.
O batismo “com o Espírito Santo e com o fogo” inundaria o Israel renovado com a
força transformadora de Deus; e o Povo, vivificado pelo Espírito de Deus,
conheceria a existência nova, a era definitiva de justiça, de paz e de vida plena.
Para Lucas, este anúncio de João concretizar-se-á plenamente no dia de
Pentecostes.
***
Na segunda
leitura (Fl 4,4-7), Paulo pede
aos cristãos de Filipos que se alegrem, porque “o Senhor está próximo”.
Conscientes dessa proximidade, os cristãos caminham pela vida serenos e
confiantes, distribuindo gestos de bondade e de generosidade, na constante escuta
de Deus, dos seus desafios, esperando o Senhor.
Nas recomendações de Paulo aos cristãos de Filipos, na
parte final da carta, sobressai o insistente convite à alegria: “Alegrai-vos
sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos”. O vocábulo usado por Paulo
(o verbo “khairô”) leva-nos à “alegria” (“khara”) que “ilumina” a noite do
nascimento de Jesus, quando o anjo comunica aos pastores de Belém a “boa
notícia”. É, pois, uma alegria que resulta da presença salvadora do Senhor
Jesus no meio dos homens. Cônscios dessa presença, os membros da comunidade
cristã devem viver na alegria e irradiar uma alegria que transforma a noite do
Mundo em aurora de esperança.
O apóstolo recomenda, ainda, aos Filipenses: que testemunhem
a bondade que aprenderam com Jesus; que confiem no amor de Deus e que não vivam
sobressaltados, distraídos pelas coisas do Mundo e pelos valores efémeros; que
cultivem a intimidade e o diálogo com Deus, apresentando-Lhe as dificuldades
que encontram no caminho e agradecendo-Lhe os seus dons e o seu amor.
Sobre essa existência serena e comprometida deve
pairar a certeza de que o Senhor vem (“o Senhor está próximo”). O cristão vive
da esperança. Quando se vive, tendo no horizonte a certeza da próxima vinda do
Senhor, caminha-se confiante, alegre e com o coração cheio de paz.
***
Em domingo “Gaudete”,
respondemos ao brado do convite à alegria com um hino de Isaías (Is
12,2-3.4bcd.5-6), em modo responsorial, sob o refrão “Povo do Senhor, exulta e canta de alegria”.
“Deus é o meu Salvador, tenho confiança e nada temo.
O Senhor é a minha força e o meu louvor. Ele é a minha
salvação.
“Tirareis água com alegria das fontes da salvação. Agradecei
ao Senhor, invocai o seu nome;
Anunciai aos povos a grandeza das suas obras, proclamai
a todos que o seu nome é santo.
“Cantai ao Senhor, porque Ele fez maravilhas, anunciai-as
em toda a terra.
Entoai cânticos de alegria, habitantes de Sião, porque
é grande no meio de vós o Santo de Israel.”
2024.12.16 – Louro de Carvalho
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