Na
quadra natalícia – e este ano não é exceção –, formulamos votos de Boas Festas
para as pessoas que estimamos: os familiares, os/as amigos/as e todas as
pessoas a quem devemos solidariedade, mormente, os mais necessitados de
liberdade, de pão e de paz. E também gostamos que nos dirijam a nós tais votos.
Por
isso, como os demais, gosto dos votos de santo Natal que me formulam e que
agradeço, como também faço votos de bom e fraterno Natal – e santo, para quem
assim o que desejar – com o desejo das melhores prosperidades no próximo ano,
com boas condições de vida, de saúde e de paz, nas veredas do progresso,
abjurando de guerras e de pequenos conflitos.
Nesta
formulação de votos, incluo todas as pessoas com que a vida me fez cruzar, com
alegrias e/ou com preocupações. A vida é o movimento humano que se faz com um
pouco de tudo, querendo nós que seja tudo bom, sem erros, sem hesitações, com
otimismo e sentido de humor.
***
É
pena que, muitas vezes, os votos de Feliz Natal e Próspero Ano Novo não passem
de um formalismo rotineiro ou exigido pela etiqueta.
O
consumismo atual, continuação e exacerbação do das últimas décadas, não
prescinde dos motivos tradicionais: presépio, árvore de Natal, Pai Natal, luzes,
sinos, estrela, laços, neves, etc. Porém, algumas instâncias oficiais, muitos
grupos e empresas andam numa roda-viva de autoafirmação travestida de
altruísmo, em ceias e almoços de Natal, na distribuição de prendas a crianças,
a jovens e a adultos. As famílias – o Natal ainda é considerado a festa da
família; e, no contexto da pandemia, clamava-se que era preciso salvar o Natal
– desdobram-se em presenças, que implicam viagens, reuniões, prendas, refeições
(típicas do Natal e atípicas). E o consumismo já conseguiu retirar o Natal das
famílias. Já se vão privilegiando as instâncias de turismo: hotel, restaurante,
desportos na neve e, mesmo, estadas em santuários.
Na
época de Natal, cabe tudo: Natal sem idade, em determinados municípios,
Perlins, Terra dos Sonhos, lotarias de Natal, cabazes de Natal, etc. E, graças
a José Sócrates já não cabe a campanha das eleições autárquicas, que passou
para setembro-outubro, período em que alguns autarcas que pretendem a reeleição
distribuem géneros alimentícios, apelando ao voto!
Alguns
já não querem chamar “Natal” a esta quadra, por não se reverem no cristianismo,
preferindo uma designação supostamente neutra. Ora, o Natal é, evidentemente,
uma festividade ou um conjunto de festividades cristãs. Não há como negá-lo. É
óbvio que o dinamismo cristão e, consequentemente, o Natal apresentam valores
extensivos a não cristãos e até a não crentes, como a solidariedade, a
fraternidade universal, a união, a paz, a luta pelas grandes causas, a
preocupação ecoeconómica, a aposta na promoção e na defesa dos direitos humanos
em todos os povos e grupos populacionais, querendo, para todos, terra, um teto,
o trabalho e o pão de cada dia.
Todavia,
não podemos fazer tábua rasa da matriz cristã do Natal, a qual, por sua vez, se
entrosa com realidades antropológicas anteriores e paralelas ao cristianismo.
Digo-o
com o mesmo senso de liberdade com que sustento que, se inseridos, ainda que
transitoriamente, num ato cultural ou religioso, por exemplo, do judaísmo, do islamismo
ou do hinduísmo, não devemos tentar substituir as suas categorias religiosas e
culturais por denominações pretensamente neutras.
Recordo-me
de alguém me ter contado que, numa visita a um museu árabe, quando o guia
apontou para o relicário cujo conteúdo era um pelo da barba do profeta Maomé,
alguns dos visitantes se riram, ficando o cicerone escandalizado. É claro que
desvalorizar determinadas categorias culturais em que não nos revemos é um ato
de desrespeito, com que não nos quereríamos defrontar, se se rissem, por
exemplo, das relíquias de santos/as que veneramos ou, mesmo, do Crucificado,
dos nossos andores, das nossas bandeiras, das nossas lanternas e dos nossos
pálios processionais. Com efeito, gestos destes entendem-se no seu contexto
religioso e cultural.
***
Focando-nos
no Natal, é de registar como escandaloso que os cristãos, em vez de se fazerem
arautos do verdadeiro sentido do Natal, privilegiando a festa, a partilha e a
fraternidade universal (com todos e com cada um – é este o significado
filosófico-escolástico do termo “universal”), se deixem enredar pelo
consumismo, que se espelha no frenesim do barulho, da azáfama, das prendas e
prendinhas. E lá vai, até nem se escandalizam que a designação de Natal ceda o
passo a outras designações.
Assim,
a árvore de Natal, de raiz cristã, em vez dos motivos natalícios acoplado de
forma sóbria, parece um expositor de vaidadezinhas; o Pai Natal, cuja tradição
remonta a São Nicolau, o bispo de Mira, anónimo dispensador de prendas para as
crenças e para as pessoas pobres, é apresentado como o ancião de barbas brancas
e de farda vermelha (o povo parece gastar de ser regido por gente de farda),
que uma cadeia comercial transfigurou a seu gosto; e o presépio continua, mas,
num cantinho, por vezes, para “agradar a gregos e a troianos” (não vão alguns
crentes deixar de comprar!).
Temos
um Pai Natal que vem da Lapónia, quando o Natal veio de Belém; temos as prendas
transportadas por trenós puxados por renas, quando os presentes levados ao
Menino Jesus eram levados nos braços, em burros (mas já não há burros, ente
nós!) e em camelos (mas nós somo-lo, visto que pagamos os luxos dos grandes!).
Não gostamos de mitos, mas achamos que o Pai Natal entra pelas portas fechadas,
sobe a varandas e a telhados ou introduz as prendas pela chaminé. Quando eu me
criei, quem punha as prendas no sapato ou no tamanco era o Menino Jesus, que
daria um pontapé, aquando do beijo no fim da missa, a quem se tivesse portado
mal. Terá o Pai Natal resultado do crescimento mais do que bimilenar do Menino
Jesus?!
Depois,
falemos do presépio.
O
presépio é, originariamente, a manjedoura de animais, no caso do Natal, a
manjedoura onde Maria, segundo o texto lucano, colocou o menino, depois de o
ter dado à luz e de o ter envolvido em panos. Por extensão, em que as línguas
são generosas, o presépio, em ambiente cristão, é todo o cenário bucólico que
representa o nascimento de Jesus em Belém.
A
parte central é a manjedoura, não raro, substituída pelo berço ou pela caminha.
Hoje seria obrigatório o ovo, mas também teria o menino de nascer num hospital.
Ora,
bolas! Já me estava a esquecer de que este menino nasceu pobre, fora da sua
aldeia, como tantas crianças nascem pobres, ainda hoje, face à hipocrisia dos
países ditos civilizados, que esbulham os mais pobres ou os sepultam na guerra,
na fome e na migração forçada.
Obviamente
que a manjedoura está dentro duma casota ou cabana (podia ser uma fraga ou
lapa), pois o menino nasceu num estábulo ou abrigo de animais, fora da cidade
de Belém, “porque não havia lugar na hospedaria”.
Porém,
nada disto faria sentido, sem o menino e sem Maria, a mãe, ou sem José, o pai
adotivo (quando andei na catequese infantil, dizíamos “pai putativo”, pois toda
a gente pensava que José era o pai, e era-o, do ponto de vista legal). E nada
faz sentido sem o menino.
Por
isso, é estranho que, em alguns lugares, até à meia-noite da consoada, os
presépios estejam vazios. Ora, estando lá Maria e José, os pastores, o burro
(ou burra) e a vaca, as ovelhas e os magos, bem como tudo o que as comunidades
deponham no cenário da Natividade (anjos, luzes, estrelas, sinos, bandas
filarmónicas, moinhos, rios, barcos, automóveis, comboios, aviões, pedras,
caminhos, capelas, igrejas, padres, bispos, Papas, etc.), mas faltando o
menino, o presépio não faz sentido: está vazio!
A
explicação que algumas pessoas dão é que o menino só nasceu à meia-noite de 24
para 25 de dezembro. Por isso, só então é colocado no berço. Ora bem: Também
não estavam lá Maria, José, pastores, magos, luzes, sinos, anjos e magos. Os
pastores chegaram depois, avisados por um anjo; os anjos cantaram, depois de os
pastores serem avisados; estes foram a correr ao presépio; e os magos vieram
mais tarde e foram, não ao presépio, mas à casa onde o menino já estava com
Maria e com José, segundo o texto mateano. Os magos são representados no
presépio, porque este cenário é a matriz material do Natal cristão. A
manjedoura é o primeiro expositor do menino para contemplação, visualização e
adoração, Por outro lado, antecipa a doação deste menino para alimento
espiritual dos crentes e cimento de coesão da comunidade eclesial.
Sendo
natural que se tratava de um abrigo de animais, é natural que por lá
pernoitasse a vaca. Alguma literatura apócrifa refere que o dono da vaca ficara
aborrecido por o casal adventício ter ocupado o estábulo e não queria que o seu
animal assistisse àquele parto; mas o animal, caprichosamente, não cedeu à
vontade do dono e, tendo ficado, forneceu o alimento àquela família pobre,
embora de linhagem. Por outro lado, como Maria se fez transportar num burro (ou
burra, segundo algumas tradições), é provável que este animal por ali ficasse
também, constituindo o burro e a vaca a primeira companhia de Jesus, já que a
última foi de dois ladroes (o mau e o bom).
Alguns
sustentam que Bento XVI tirou a vaca e o burro do presépio. Não é assim. O que
ele escreveu é que os Evangelhos (e isso é verdade) não mencionam a presença
dos animais no presépio, mas não negou a presença deles, até porque isso
responde à profecia da paz universal em que participarão todos os seres criados.
Efetivamente,
os cristãos devem saber que o menino é a figura central e insubstituível do
presépio, obviamente acompanhado de mãe e de pai. Os demais surgem por missão
(anjos), por curiosidade e por admiração (pastores) e por fruto de pesquisa (os
sábios do Oriente ou magos – os Evangelhos não lhes chamam reis, mas apenas
magos).
Todavia,
é conveniente representar o presépio total, principalmente, as figuras
insubstituíveis, e não aos pedaços. É claro, para fazer sobressair as figuras
principais, posso prescindir de algumas ou de todas as outras, como posso, no
mesmo cenário físico de Natal, fazer um presépio com as figuras centrais em
maior relevo, no cruzamento estratégico do cenário, e quatro mais pequenos, nos
quatro pontos cardeais, a significar que, de Belém, Cristo irradiou para os
quatro cantos da Terra, ou seja, para todo o Mundo. E também se podem adicionar
ao presépio elementos da História pré-cristã (Cristo vem remir também os
antigos crentes), da História da Igreja e do Mundo, bem como elementos típicos
da respetiva comunidade (a Misericórdia de Santa Maria da Feira integra num
presépio as fogaceiras e a própria igreja da Misericórdia)
Enfim,
um bom presépio, com uma adequada visita guiada pode ocasionar uma frutífera
lição de catequese. Tentei fazê-lo e diversas ocasiões em paróquias de que fui
responsável. Todavia, sempre quis o presépio todo, na sua unidade e
diversidade.
Gostei
de saber que há meninas que gostariam de ser a vaquinha e meninos que gostariam
de ser o burro, para com a sua respiração aquecerem o Menino Jesus e para
estarem perto dele.
É
bom que os cristãos aprendam, vivam e ensinem a lição do presépio, não se
prendam com questiúnculas, com prendinhas e com fotos e selfies, nem falem do
alto da sua sobranceria, pois a Verdade, para os crentes, é Jesus Cristo.
“Quid
Veritas est?” (que é a verdade), perguntava-lhe Pilatos. Jesus calou-se, mas
podia responder: “Est Vir qui adest” (É o Homem que está aqui presente).
2024.12.19 – Louro de Carvalho
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