quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Presépio em cheio é com o Menino Jesus

 

Na quadra natalícia – e este ano não é exceção –, formulamos votos de Boas Festas para as pessoas que estimamos: os familiares, os/as amigos/as e todas as pessoas a quem devemos solidariedade, mormente, os mais necessitados de liberdade, de pão e de paz. E também gostamos que nos dirijam a nós tais votos.

Por isso, como os demais, gosto dos votos de santo Natal que me formulam e que agradeço, como também faço votos de bom e fraterno Natal – e santo, para quem assim o que desejar – com o desejo das melhores prosperidades no próximo ano, com boas condições de vida, de saúde e de paz, nas veredas do progresso, abjurando de guerras e de pequenos conflitos.

Nesta formulação de votos, incluo todas as pessoas com que a vida me fez cruzar, com alegrias e/ou com preocupações. A vida é o movimento humano que se faz com um pouco de tudo, querendo nós que seja tudo bom, sem erros, sem hesitações, com otimismo e sentido de humor.

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É pena que, muitas vezes, os votos de Feliz Natal e Próspero Ano Novo não passem de um formalismo rotineiro ou exigido pela etiqueta.

O consumismo atual, continuação e exacerbação do das últimas décadas, não prescinde dos motivos tradicionais: presépio, árvore de Natal, Pai Natal, luzes, sinos, estrela, laços, neves, etc. Porém, algumas instâncias oficiais, muitos grupos e empresas andam numa roda-viva de autoafirmação travestida de altruísmo, em ceias e almoços de Natal, na distribuição de prendas a crianças, a jovens e a adultos. As famílias – o Natal ainda é considerado a festa da família; e, no contexto da pandemia, clamava-se que era preciso salvar o Natal – desdobram-se em presenças, que implicam viagens, reuniões, prendas, refeições (típicas do Natal e atípicas). E o consumismo já conseguiu retirar o Natal das famílias. Já se vão privilegiando as instâncias de turismo: hotel, restaurante, desportos na neve e, mesmo, estadas em santuários.

Na época de Natal, cabe tudo: Natal sem idade, em determinados municípios, Perlins, Terra dos Sonhos, lotarias de Natal, cabazes de Natal, etc. E, graças a José Sócrates já não cabe a campanha das eleições autárquicas, que passou para setembro-outubro, período em que alguns autarcas que pretendem a reeleição distribuem géneros alimentícios, apelando ao voto! 

Alguns já não querem chamar “Natal” a esta quadra, por não se reverem no cristianismo, preferindo uma designação supostamente neutra. Ora, o Natal é, evidentemente, uma festividade ou um conjunto de festividades cristãs. Não há como negá-lo. É óbvio que o dinamismo cristão e, consequentemente, o Natal apresentam valores extensivos a não cristãos e até a não crentes, como a solidariedade, a fraternidade universal, a união, a paz, a luta pelas grandes causas, a preocupação ecoeconómica, a aposta na promoção e na defesa dos direitos humanos em todos os povos e grupos populacionais, querendo, para todos, terra, um teto, o trabalho e o pão de cada dia.

Todavia, não podemos fazer tábua rasa da matriz cristã do Natal, a qual, por sua vez, se entrosa com realidades antropológicas anteriores e paralelas ao cristianismo.

Digo-o com o mesmo senso de liberdade com que sustento que, se inseridos, ainda que transitoriamente, num ato cultural ou religioso, por exemplo, do judaísmo, do islamismo ou do hinduísmo, não devemos tentar substituir as suas categorias religiosas e culturais por denominações pretensamente neutras.

Recordo-me de alguém me ter contado que, numa visita a um museu árabe, quando o guia apontou para o relicário cujo conteúdo era um pelo da barba do profeta Maomé, alguns dos visitantes se riram, ficando o cicerone escandalizado. É claro que desvalorizar determinadas categorias culturais em que não nos revemos é um ato de desrespeito, com que não nos quereríamos defrontar, se se rissem, por exemplo, das relíquias de santos/as que veneramos ou, mesmo, do Crucificado, dos nossos andores, das nossas bandeiras, das nossas lanternas e dos nossos pálios processionais. Com efeito, gestos destes entendem-se no seu contexto religioso e cultural.

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Focando-nos no Natal, é de registar como escandaloso que os cristãos, em vez de se fazerem arautos do verdadeiro sentido do Natal, privilegiando a festa, a partilha e a fraternidade universal (com todos e com cada um – é este o significado filosófico-escolástico do termo “universal”), se deixem enredar pelo consumismo, que se espelha no frenesim do barulho, da azáfama, das prendas e prendinhas. E lá vai, até nem se escandalizam que a designação de Natal ceda o passo a outras designações.

Assim, a árvore de Natal, de raiz cristã, em vez dos motivos natalícios acoplado de forma sóbria, parece um expositor de vaidadezinhas; o Pai Natal, cuja tradição remonta a São Nicolau, o bispo de Mira, anónimo dispensador de prendas para as crenças e para as pessoas pobres, é apresentado como o ancião de barbas brancas e de farda vermelha (o povo parece gastar de ser regido por gente de farda), que uma cadeia comercial transfigurou a seu gosto; e o presépio continua, mas, num cantinho, por vezes, para “agradar a gregos e a troianos” (não vão alguns crentes deixar de comprar!). 

Temos um Pai Natal que vem da Lapónia, quando o Natal veio de Belém; temos as prendas transportadas por trenós puxados por renas, quando os presentes levados ao Menino Jesus eram levados nos braços, em burros (mas já não há burros, ente nós!) e em camelos (mas nós somo-lo, visto que pagamos os luxos dos grandes!). Não gostamos de mitos, mas achamos que o Pai Natal entra pelas portas fechadas, sobe a varandas e a telhados ou introduz as prendas pela chaminé. Quando eu me criei, quem punha as prendas no sapato ou no tamanco era o Menino Jesus, que daria um pontapé, aquando do beijo no fim da missa, a quem se tivesse portado mal. Terá o Pai Natal resultado do crescimento mais do que bimilenar do Menino Jesus?!

Depois, falemos do presépio.

O presépio é, originariamente, a manjedoura de animais, no caso do Natal, a manjedoura onde Maria, segundo o texto lucano, colocou o menino, depois de o ter dado à luz e de o ter envolvido em panos. Por extensão, em que as línguas são generosas, o presépio, em ambiente cristão, é todo o cenário bucólico que representa o nascimento de Jesus em Belém.

A parte central é a manjedoura, não raro, substituída pelo berço ou pela caminha. Hoje seria obrigatório o ovo, mas também teria o menino de nascer num hospital.

Ora, bolas! Já me estava a esquecer de que este menino nasceu pobre, fora da sua aldeia, como tantas crianças nascem pobres, ainda hoje, face à hipocrisia dos países ditos civilizados, que esbulham os mais pobres ou os sepultam na guerra, na fome e na migração forçada.  

Obviamente que a manjedoura está dentro duma casota ou cabana (podia ser uma fraga ou lapa), pois o menino nasceu num estábulo ou abrigo de animais, fora da cidade de Belém, “porque não havia lugar na hospedaria”.

Porém, nada disto faria sentido, sem o menino e sem Maria, a mãe, ou sem José, o pai adotivo (quando andei na catequese infantil, dizíamos “pai putativo”, pois toda a gente pensava que José era o pai, e era-o, do ponto de vista legal). E nada faz sentido sem o menino.

Por isso, é estranho que, em alguns lugares, até à meia-noite da consoada, os presépios estejam vazios. Ora, estando lá Maria e José, os pastores, o burro (ou burra) e a vaca, as ovelhas e os magos, bem como tudo o que as comunidades deponham no cenário da Natividade (anjos, luzes, estrelas, sinos, bandas filarmónicas, moinhos, rios, barcos, automóveis, comboios, aviões, pedras, caminhos, capelas, igrejas, padres, bispos, Papas, etc.), mas faltando o menino, o presépio não faz sentido: está vazio!

A explicação que algumas pessoas dão é que o menino só nasceu à meia-noite de 24 para 25 de dezembro. Por isso, só então é colocado no berço. Ora bem: Também não estavam lá Maria, José, pastores, magos, luzes, sinos, anjos e magos. Os pastores chegaram depois, avisados por um anjo; os anjos cantaram, depois de os pastores serem avisados; estes foram a correr ao presépio; e os magos vieram mais tarde e foram, não ao presépio, mas à casa onde o menino já estava com Maria e com José, segundo o texto mateano. Os magos são representados no presépio, porque este cenário é a matriz material do Natal cristão. A manjedoura é o primeiro expositor do menino para contemplação, visualização e adoração, Por outro lado, antecipa a doação deste menino para alimento espiritual dos crentes e cimento de coesão da comunidade eclesial.     

Sendo natural que se tratava de um abrigo de animais, é natural que por lá pernoitasse a vaca. Alguma literatura apócrifa refere que o dono da vaca ficara aborrecido por o casal adventício ter ocupado o estábulo e não queria que o seu animal assistisse àquele parto; mas o animal, caprichosamente, não cedeu à vontade do dono e, tendo ficado, forneceu o alimento àquela família pobre, embora de linhagem. Por outro lado, como Maria se fez transportar num burro (ou burra, segundo algumas tradições), é provável que este animal por ali ficasse também, constituindo o burro e a vaca a primeira companhia de Jesus, já que a última foi de dois ladroes (o mau e o bom).

Alguns sustentam que Bento XVI tirou a vaca e o burro do presépio. Não é assim. O que ele escreveu é que os Evangelhos (e isso é verdade) não mencionam a presença dos animais no presépio, mas não negou a presença deles, até porque isso responde à profecia da paz universal em que participarão todos os seres criados.

Efetivamente, os cristãos devem saber que o menino é a figura central e insubstituível do presépio, obviamente acompanhado de mãe e de pai. Os demais surgem por missão (anjos), por curiosidade e por admiração (pastores) e por fruto de pesquisa (os sábios do Oriente ou magos – os Evangelhos não lhes chamam reis, mas apenas magos).

Todavia, é conveniente representar o presépio total, principalmente, as figuras insubstituíveis, e não aos pedaços. É claro, para fazer sobressair as figuras principais, posso prescindir de algumas ou de todas as outras, como posso, no mesmo cenário físico de Natal, fazer um presépio com as figuras centrais em maior relevo, no cruzamento estratégico do cenário, e quatro mais pequenos, nos quatro pontos cardeais, a significar que, de Belém, Cristo irradiou para os quatro cantos da Terra, ou seja, para todo o Mundo. E também se podem adicionar ao presépio elementos da História pré-cristã (Cristo vem remir também os antigos crentes), da História da Igreja e do Mundo, bem como elementos típicos da respetiva comunidade (a Misericórdia de Santa Maria da Feira integra num presépio as fogaceiras e a própria igreja da Misericórdia)

Enfim, um bom presépio, com uma adequada visita guiada pode ocasionar uma frutífera lição de catequese. Tentei fazê-lo e diversas ocasiões em paróquias de que fui responsável. Todavia, sempre quis o presépio todo, na sua unidade e diversidade.

Gostei de saber que há meninas que gostariam de ser a vaquinha e meninos que gostariam de ser o burro, para com a sua respiração aquecerem o Menino Jesus e para estarem perto dele. 

É bom que os cristãos aprendam, vivam e ensinem a lição do presépio, não se prendam com questiúnculas, com prendinhas e com fotos e selfies, nem falem do alto da sua sobranceria, pois a Verdade, para os crentes, é Jesus Cristo.

“Quid Veritas est?” (que é a verdade), perguntava-lhe Pilatos. Jesus calou-se, mas podia responder: “Est Vir qui adest” (É o Homem que está aqui presente). 

2024.12.19 – Louro de Carvalho

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