De acordo
com o relatório “You Feel Like You Are
Subhuman” [Sentes-te como se fosses sub-humano]: O genocídio de Israel contra os palestinianos em Gaza, publicado na madrugada de 5 de dezembro, a Amnistia
Internacional (AI) encontrou, na sua investigação, bases suficientes para
concluir que “Israel cometeu e continua a cometer genocídio contra os Palestinianos
na Faixa de Gaza ocupada”, durante a ofensiva militar na sequência dos ataques
mortais liderados pelo Hamas no Sul de Israel, a 7 de outubro de 2023.
Israel
desencadeou, deliberadamente, a destruição e o inferno contra os Palestinianos
em Gaza, de forma descarada, contínua e totalmente impune, levando a cabo atos
proibidos pela Convenção sobre o Genocídio, com a intenção específica de
destruir os Palestinianos em Gaza. “Estes atos incluem assassinatos, causar
lesões corporais ou mentais graves e infligir deliberadamente aos palestinianos
em Gaza condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física. Mês
após mês, Israel tem tratado os Palestinianos em Gaza como grupo sub-humano
indigno dos direitos humanos e da dignidade, mostrando a intenção de os
destruir fisicamente”, afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da AI, que
sustenta: “As nossas conclusões condenatórias devem servir de alerta para a
comunidade internacional: ‘Isto é genocídio. Tem de acabar já’.”
Considera a
AI que os Estados que transferem armas para Israel sabem que violam a obrigação
de prevenir o genocídio e correm o risco de se tornarem cúmplices do genocídio.
Todos os Estados com influência sobre Israel, em especial, os principais
fornecedores de armas, como os Estados Unidos da América (EUA) e a Alemanha,
mas também mais estados-membros da União Europeia (UE), o Reino Unido e outros,
devem agir para pôr termo imediato às atrocidades de Israel contra os Palestinianos
em Gaza.
Nos últimos
dois meses, a crise agudizou-se, particularmente, na província de Gaza Norte,
onde a população sitiada enfrenta a fome, a deslocação e a aniquilação, entre bombardeamentos
implacáveis e restrições sufocantes à ajuda humanitária que pode salvar vidas.
A este
respeito, afirmou Agnès Callamard: “A nossa investigação revela que, durante
meses, Israel persistiu em cometer atos genocidas, plenamente consciente dos
danos irreparáveis que estava a infligir aos Palestinianos em Gaza. Continuou a
fazê-lo, desafiando os inúmeros avisos sobre a situação humanitária
catastrófica e as decisões juridicamente vinculativas do Tribunal Internacional
de Justiça (TIJ), que ordenavam a Israel que tomasse medidas imediatas para
permitir a prestação de assistência humanitária aos civis em Gaza.”
Ao invés, segundo
o relatório, de cerca de 300 páginas, Israel argumenta, reiteradamente, que as
suas ações em Gaza são legais e justificáveis pelo seu objetivo militar de
erradicar o Hamas. Porém, a intenção genocida pode coexistir com objetivos
militares e não tem de ser a única intenção de Israel. Na verdade, a AI examinou
os atos de Israel em Gaza, de perto e na sua totalidade, considerando a
recorrência e ocorrência simultânea, o impacto imediato e as consequências
cumulativas e mutuamente reforçadoras. Considerou a escala e a gravidade das
vítimas e da destruição ao longo do tempo. E analisou as declarações públicas
dos funcionários, tendo verificado que os atos proibidos foram, muitas vezes,
anunciados ou solicitados, em primeiro lugar, por funcionários de alto nível
responsáveis pelos esforços de guerra.
“Tendo em
conta o contexto pré-existente de desapropriação, de apartheid e de ocupação militar ilegal em que tais atos foram
cometidos, só pudemos chegar a uma conclusão razoável: A intenção de Israel é a
destruição física dos Palestinianos em Gaza, quer em paralelo, quer como meio
para atingir o objetivo militar de destruir o Hamas”, afirmou a secretária-geral
da AI, vincando: “Os crimes de atrocidade cometidos em 7 de outubro de 2023
pelo Hamas e por outros grupos armados contra Israelitas e contra vítimas de
outras nacionalidades, incluindo assassinatos em massa deliberados e tomada de
reféns, nunca podem justificar o genocídio.”
***
Para a
jurisprudência internacional, o perpetrador não precisa de ser bem-sucedido nas
tentativas de destruir o grupo protegido, no todo ou em parte, para que o
genocídio tenha sido cometido. Basta a prática de atos proibidos com a intenção
de destruir o grupo, como tal.
O relatório examina,
em pormenor, as violações de Israel em Gaza durante nove meses, entre 7 de
outubro de 2023 e o início de julho de 2024. Com efeito, a AI entrevistou 212
pessoas, incluindo vítimas e testemunhas palestinianas, autoridades locais em
Gaza, profissionais de saúde, fez trabalho de campo e analisou vasta gama de
provas visuais e digitais, incluindo imagens de satélite. Estudou declarações
de altos responsáveis governamentais e militares israelitas e de organismos
oficiais israelitas. E, em várias ocasiões, partilhou as conclusões com as
autoridades israelitas, mas não recebeu resposta até à data da publicação.
As ações de
Israel na sequência dos ataques mortais do Hamas colocaram a população de Gaza
à beira do colapso. A sua brutal ofensiva militar matou mais de 42 mil palestinianos,
incluindo mais de 13300 crianças, e feriu mais de 97 mil, até 7 de outubro de
2024, muitos dos quais em ataques diretos ou deliberadamente indiscriminados,
muitas vezes, eliminando famílias inteiras com várias gerações. Causou destruição
sem precedentes, que ocorreu a nível e a velocidade nunca vistos noutro
conflito no século XXI, arrasando cidades inteiras e destruindo infraestruturas
críticas, terras agrícolas e locais culturais e religiosos, e tornando
inabitáveis grandes extensões da Faixa de Gaza.
Mohammed, de
42 anos e pai de três filhos, que fugiu, com a família da cidade de Gaza, para
Rafah, em março de 2024 e foi, de novo, deslocado em maio, descreveu a sua luta
pela sobrevivência: “Aqui, em Deir al-Balah, é como um apocalipse… Temos de
proteger os nossos filhos dos insetos, do calor, e não há água potável, nem
casas de banho, enquanto os bombardeamentos não param. Sentimo-nos como se
fôssemos sub-humanos.”
Israel impôs
condições de vida em Gaza que criaram a mistura mortal de subnutrição, de fome
e de doenças, e expôs os Palestinianos a morte lenta e calculada. Além disso,
submeteu centenas de Palestinianos de Gaza a detenção em regime de
incomunicabilidade, tortura e outros maus-tratos.
Vistos
isoladamente, alguns atos investigados constituem violações graves do direito
internacional humanitário ou do direito internacional dos direitos humanos.
Todavia, se olharmos o quadro mais amplo da campanha militar de Israel e o
impacto cumulativo das suas políticas e atos, a intenção genocida é a única
conclusão razoável possível.
Para
estabelecer a intenção específica de Israel de destruir os Palestinianos em
Gaza, a AI analisou o padrão geral da conduta de Israel em Gaza, passou em
revista as declarações desumanas e genocidas de funcionários governamentais e de
militares israelitas, em especial ao mais alto nível, considerando o contexto
do sistema de apartheid de Israel, o
bloqueio desumano de Gaza e a ilegal ocupação militar do território
palestiniano, que dura há 57 anos.
Antes de
chegar a conclusões, a AI analisou as alegações de Israel de que as suas forças
armadas visavam legalmente o Hamas e outros grupos armados, na Faixa de Gaza, e
que a destruição sem precedentes e a recusa de ajuda eram o resultado da
conduta ilegal do Hamas e de outros grupos armados, como a localização de
combatentes entre a população civil ou o desvio de ajuda. Porém, concluiu que
tais alegações não são credíveis. A presença de combatentes do Hamas perto ou numa
área densamente povoada não isenta Israel das obrigações de tomar todas as
precauções possíveis para poupar os civis e para evitar ataques indiscriminados
ou desproporcionados. Por isso, a investigação concluiu que Israel não o fez
repetidamente, cometendo múltiplos crimes, ao arrepio do direito internacional,
para os quais não há justificação com base nas ações do Hamas, e não encontrou provas
de que o desvio de ajuda explicasse as restrições extremas e deliberadas de
Israel à ajuda humanitária que salva vidas.
Na sua
análise, a AI também considerou argumentos alternativos, como o de que Israel
agia de forma imprudente ou que apenas queria destruir o Hamas e não se importava
se precisava de destruir Palestinianos no processo, mostrando insensível desrespeito
pelas suas vidas e não intenção genocida. No entanto, veja Israel a destruição
de Palestinianos como instrumento para destruir o Hamas ou como subproduto
aceitável deste objetivo, a visão dos Palestinianos como descartáveis e não
dignos de consideração é, por si só, prova de intenção genocida.
Muitos dos
atos ilegais foram precedidos do incitamento à sua execução por funcionários. A
AI analisou 102 declarações, emitidas por funcionários governamentais e
militares israelitas e outros, de 7 de outubro de 2023 a 30 de junho de 2024,
que desumanizavam os Palestinianos, apelavam ou justificavam atos genocidas ou
outros crimes contra eles. E identificou 22 declarações de oficiais superiores
responsáveis pela gestão da ofensiva que pareciam apelar a, ou justificar, atos
genocidas, fornecendo provas diretas da intenção genocida. Esta linguagem era reproduzida,
inclusive por soldados israelitas no terreno, como comprovam os conteúdos
audiovisuais verificados, que mostram soldados a apelar ao “apagamento” de Gaza
ou a torná-la inabitável, e a celebrar a destruição de casas, de mesquitas, de escolas
e de universidades palestinianas.
A AI
documentou os atos genocidas de matar e de causar lesões corporais e mentais
graves aos Palestinianos em Gaza, analisando os resultados das investigações
que realizou sobre 15 ataques aéreos entre 7 de outubro de 2023 e 20 de abril
de 2024 que mataram, pelo menos, 334 civis, incluindo 141 crianças, e feriram
centenas de outros. E não encontrou provas de que qualquer destes ataques tenha
sido dirigido a um objetivo militar. Por exemplo, a 20 de abril de 2024, um
ataque aéreo israelita destruiu a casa da família Abdelal no bairro de
Al-Jneinah, no Leste de Rafah, matando três gerações de Palestinianos,
incluindo 16 crianças, enquanto dormiam.
Embora estes
ataques representem uma fração dos ataques aéreos de Israel, indicam um padrão
mais amplo de repetidos ataques diretos contra civis e objetos civis ou de
ataques deliberadamente indiscriminados e conduzidos de modo a causar número
muito elevado de mortos e feridos na população civil. E o relatório documenta a
forma como Israel infligiu deliberadamente condições de vida aos Palestinianos
em Gaza destinadas a conduzir, a prazo, à sua destruição. Estas condições foram
impostas através de três padrões simultâneos que, repetidamente, agravaram o
efeito dos impactos devastadores uns dos outros: danos e destruição de
infraestruturas de suporte de vida e outros objetos indispensáveis à sobrevivência
da população civil; uso repetido de ordens de evacuação em massa, abrangentes,
arbitrárias e confusas, para deslocar, à força, quase toda a população de Gaza;
e negação e obstrução da prestação de serviços essenciais, assistência
humanitária e outros suprimentos que salvam vidas, em Gaza e dentro dela.
Israel impôs
cerco total a Gaza, cortando a eletricidade, a água e o combustível. Nos nove
meses analisados, Israel manteve um bloqueio sufocante e ilegal, controlou
rigorosamente o acesso às fontes de energia, não facilitou acesso humanitário
significativo no interior de Gaza e obstruiu a importação e a entrega de bens
essenciais e de ajuda humanitária, em especial, nas zonas a Norte de Wadi Gaza.
Assim, exacerbou a crise humanitária existente. Tal situação, combinada com os danos
causados às habitações, a hospitais, a instalações de abastecimento de água e
saneamento e a terrenos agrícolas de Gaza, bem como com as deslocações forçadas
em massa, provocou níveis catastróficos de fome e levou à propagação de doenças
a ritmo alarmante. O impacto foi severo nas crianças pequenas e nas mulheres
grávidas ou a amamentar, com consequências, a longo prazo, para a sua saúde.
Israel teve,
repetidamente, a oportunidade de melhorar a situação humanitária em Gaza, mas recusou-se
a tomar medidas que estavam ao seu alcance, como a abertura de pontos de acesso
suficientes a Gaza, o levantamento de restrições rigorosas à entrada de Gaza ou
a obstrução à entrega de ajuda em Gaza, enquanto a situação se agravava.
Através das repetidas
ordens de evacuação, Israel deslocou cerca de 1,9 milhões de palestinianos –
90% da população de Gaza – para bolsas de terra cada vez mais reduzidas e
inseguras, em condições desumanas, algumas das quais até 10 vezes. As múltiplas
vagas de deslocações forçadas deixaram muitos sem emprego e traumatizados. De
facto, cerca de 70% dos residentes de Gaza são refugiados ou descendentes de refugiados
cujas cidades e aldeias foram etnicamente limpas por Israel, durante a Nakba de
1948. Apesar de as condições serem impróprias para a vida humana, os Israelitas
recusam tomar medidas que teriam protegido os civis deslocados e assegurado a
satisfação das necessidades básicas, revelando que as suas ações foram
deliberadas.
Não deixam
que os deslocados regressem às suas casas ou se desloquem temporariamente para
outras partes do Território Palestiniano Ocupado ou de Israel, negando aos Palestinianos
o direito de regresso, ao abrigo do direito internacional, às zonas de onde
foram deslocados em 1948.
***
Para Agnès
Callamard, o “fracasso sísmico e vergonhoso” da comunidade internacional em
pressionar Israel a pôr fim às atrocidades em Gaza, primeiro, atrasando os
apelos a um cessar-fogo e, depois, prosseguindo as transferências de armas,
mancha a nossa consciência coletiva. Os governos têm de deixar de fingir que
são impotentes para pôr fim a este genocídio, possibilitado por décadas de
impunidade das violações do direito internacional, por parte de Israel.
Os mandados
de captura do Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o primeiro-ministro,
Benjamin Netanyahu, e o antigo ministro da Defesa, Yoav Gallant, por crimes de
guerra e por crimes contra a Humanidade, oferecem esperança real de justiça, há
muito esperada, para as vítimas. Os Estados devem mostrar respeito pela decisão
do tribunal e pelos princípios universais do direito internacional, prendendo e
entregando os procurados pelo TPI.
Por isso, a
AI pede ao Gabinete do Procurador do TPI que considere, urgentemente, a possibilidade
de adicionar o genocídio à lista de crimes que está a investigar e que todos os
Estados utilizem todas as vias legais para levar os autores à justiça; apela à
libertação incondicional de todos os reféns civis e à responsabilização do
Hamas e de outros grupos armados palestinianos responsáveis pelos crimes cometidos
a 7 de outubro; e pede ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que imponha
sanções específicas aos responsáveis israelitas e do Hamas, mais implicados em
crimes à luz do direito internacional.
“Vemos,
ouvimos e lemos. Não podemos ignorar!” – escrevia Sophia de Mello Breyner.
2024.12.05 – Louro de Carvalho
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