“Uma presidência
que cuide da democracia”: um ensaio de Augusto Santos Silva, à procura de um
perfil para Belém, é um ensaio publicado, a 13 de dezembro, na “Revista E”
do Expresso, com abertura de Matilde Fieschi, cuja pena sustenta que, para o ex-secretário de Estado,
ex-ministro (titular de várias pastas) e ex-presidente da Assembleia da República (AR), “a função
presidencial merece um debate”, perguntando: “De quem precisamos agora?”. E
aponta, laconicamente, qualidades dos ex-Presidentes da República (PR), sem
referir Cavaco Silva.
***
Considera o ensaísta que o essencial da magistratura do atual PR “está
transcurso, pelo que não será descortês falar da futura”. Porém, não quer
“tratar de pessoas, mas de perfis”. E, anotando (o que já sabemos), que o PR é
um órgão (ele diz: “cargo”) de soberania “unipessoal”, julga “decisiva a
personalidade a escolher”, pela biografia, pelas ideias, pelas provas dadas e
pelas intenções, de modo que desempenhe “um papel que a Constituição desenha,
em traços largos, mas que também depende bastante do entendimento do titular,
como mostra a sucessão dos cinco Presidentes até agora eleitos em democracia”
(uma no cravo, outra na ferradura).
Depois, sustenta que “a diversidade das interpretações” constitucionais de
cada um dos PR revela a importância de refletir sobre que mandato atribuir à/ao
Presidente, o que, na sua ótica, “exige reflexão e debate público” (“para ser
democrático”), não substituíveis por “concursos de popularidade”, por “imposições
televisivas” ou por “entendimentos de bastidor”.
Ora, sabendo de que tipo de Presidência carece o país, “para o equilíbrio
político do regime” e para a sua “representação cabal”, o ensaísta defende que
é “mais fácil deduzir o perfil desejável”, vindo a encontrar-se, “a seu tempo,
a pessoa certa”. Ora, um item basilar do perfil é o mais alto magistrado “investido
das competências expressamente consagradas na Lei Fundamental, e apenas dessas”,
exercê-las “no quadro do equilíbrio institucional que marca o nosso regime
político”, repartindo “responsabilidades pelo Presidente, [pel]o Parlamento e
[pel]o governo”.
A indispensabilidade do sentido de medida releva, até porque o PR não
responde perante nenhum outro órgão de soberania, não tem “nenhuma oposição
organizada, relaciona-se diretamente com a opinião pública” e “dispõe de amplos
poderes, que incluem a capacidade autodeterminada de dissolver” a AR (Parlamento).
Como a democracia é “um sistema de equilíbrios e limitações cruzadas do poder”,
o supremo órgão unipessoal “deve ser o primeiro a compreendê-lo e a praticá-lo”,
explicita Santos Silva, para quem o escolho inultrapassável é “o egocentrismo” ou
“qualquer inclinação caudilhista”. Portanto, quem se alce a voz do “povo” contra
os “políticos” ou contra a suposta degradação da vida pública, quem se
autoinvista de autoridade suprema sobre as demais instituições (inclusive os
partidos), mostra “incompreensão do papel presidencial”.
O PR “serve a Constituição” e “não tutela o governo”, que “responde
politicamente perante o Parlamento”; “não é colegislador”; não é “a favor [da]
ou contra a política” ou contra “a ação do executivo, mas apoia-o “institucionalmente”,
nos termos da solidariedade entre os órgãos do Estado; não substitui a “oposição”,
nem a avalia, nem se intromete “nos debates parlamentares”, nem interfere, “direta
ou indiretamente, na vida dos partidos”, nem funciona “como comentador
omnipresente dos atos dos outros”. Ao invés, o PR respeita “a vontade do
eleitorado e a composição parlamentar”, evitando ser “fator de instabilidade”.
Pesa “as palavras” e fala “com clareza”, recusando “manipular meios oficiosos e
fontes anónimas”. E recorre “às soluções que a Constituição lhe outorga – a
demissão do governo, a dissolução do Parlamento” – “em último caso”, isto é, “se
nenhuma outra solução menos extrema for possível.
Por outro lado, o PR exerce, plenamente e “com firmeza com firmeza”, os
seus poderes, quando (e só quando) “forem necessários”, o que releva “em
questões de (in)constitucionalidade de leis e [de] decretos-leis, [de] veto
político ou [de] mensagens ao Parlamento e ao país”. E, cabendo-lhe, “sob
proposta do governo, a nomeação do procurador-geral da República, do presidente
do Tribunal de Contas, dos chefes militares ou dos embaixadores”, aí “a
corresponsabilização é de regra”. Com efeito, compete-lhe “assegurar o
cumprimento da Constituição, representar a unidade nacional, exercer o comando
supremo das Forças Armadas [FA], cuidar do regular funcionamento das
instituições”. É este “o núcleo do seu mandato”, em que “se deve concentrar”.
O PR não tem de opinar sobre o concreto das diversas profissões (carreira,
remunerações, etc.), dos valores dos impostos ou do perfil espácio-temporal das
grandes obras públicas.
Os contornos específicos das políticas públicas devem ficar reservados, no
dizer de Santos Silva, “ao debate parlamentar e à dialética entre o governo e a
oposição, ou entre o Estado e os parceiros sociais”, até porque, sempre que o
PR em funções alimentou as expectativas sociais sobre tais assuntos, veio a “causar
deceção”, pois “não dispõe dos poderes de governar”; e, “sempre que se deixou
arrastar para a crítica sistemática das decisões ou omissões governamentais, a
sua credibilidade veio, a prazo, a ressentir-se”, porque a Presidência não é “um
contrapoder”.
Colocar, erradamente, o PR ao nível do governo e da AR, atirando-o para o
terreno das medidas políticas de curto e médio alcance, “leva a esquecer as
responsabilidades nucleares do Presidente”. Ora, por ter jurado cumprir e
“fazer cumprir a Constituição”, por ser o comandante supremo das FA, por ser “o
mais alto magistrado da nação” e por zelar “pelo funcionamento das instituições”,
detém “um papel estratégico”, no atingente aos “grandes interesses e objetivos
nacionais”.
A sua influência, “significativa” e exercida “em concertação com os outros
poderes, deve orientar-se por um conjunto de princípios, a saber:
desenvolvimento “real, equitativo e sustentável”; acautelamento das “bases
demográficas e territoriais da nossa existência como nação”; “Estado social que
inclua e proteja”; “coesão social”, em vez das “desigualdades ilegítimas”;
“integração europeia” não “posta em causa”; respeito pelas “alianças que
definem a posição geopolítica”; estar “do lado da paz, da segurança e da
cooperação multilateral”; sentido de pertença e de integração de qualquer
residente no país, bem como das comunidades portuguesas, que vivem nos vários
continentes, como “parte do todo que formamos”; salvaguarda dos “direitos,
liberdades e garantias”; e administração imparcial e tempestiva da justiça.
Ora, isto é avesso à redução do múnus presidencial “ao plano protocolar e
de representação nacional”, ainda que importante, e a “uma visão idealizada”.
Trata-se, antes, de “tarefas concretas as que o Presidente desempenha em todas
as áreas da soberania”; “nas áreas da política económica e social” atinentes ao
“desenvolvimento do país”, segundo “os preceitos constitucionais”; e nos domínios
“existenciais”, que “respeitam a Portugal como nação, da relação com as
comunidades e com os migrantes à língua e à cultura, passando pela liberdade
religiosa”.
Porque os PR eleitos em democracia deixaram contributos relevantes, “ninguém
começará do zero”. E Santos Silva foca a inteligência estratégica e a experiência
do Mundo de Mário Soares, o sentido ético e institucional de Jorge Sampaio (esquece
que exigiu a demissão intempestiva de ministros e dissolveu a AR com maioria
partidária), a afetividade de Marcelo Rebelo de Sousa (que já cansa) e o
desprendimento de Ramalho Eanes (esquece que patrocinou a criação de um partido,
a partir de Belém). Porque não fala de Cavaco Silva, o presidente mais
institucionalista, que o atual já superou, em declarações banais, em
inexatidões e em contradições?
Tem razão, ao indicar que o nosso tempo precisa de “uma ação pautada pelo
sentido de medida” e da “inteligência do compromisso”; da “defesa intransigente
da democracia e do Estado de Direito”; e da capacidade de mobilizar “as
energias disseminadas pelo tecido social”.
Não sustento, com o ensaísta, que “a Presidência não é um cargo executivo”.
Ao invés, penso que está no topo do poder executivo, pois, além de executar (promulgando
e mandando publicar leis e decretos-leis) e de poder vetar diplomas, nomeia o primeiro-ministro
e, sob proposta, os outros membros do governo, os chefes militares, o procurador-geral
da República, o presidente do Tribunal de Contas e os diplomatas. Porém,
entendo que não tem “funções executivas”, no sentido operacional da expressão. É
claro, entra no campo da sua missão facilitar a ação do governo e da AR, “respeitando
as competências de cada um e a dialética política própria de uma democracia” e
favorecendo os processos de concertação “caraterísticos da poliarquia
democrática: entre Estado, regiões autónomas e autarquias; entre Estado e
parceiros sociais; entre Estado, sociedade civil e empresas”. Deve “usar de
inteligência estratégica”, ao atuar “na frente europeia”, “na ação externa” e “na
relação com as comunidades”.
Segundo Santos Silva, o PR tem, como árbitro e moderador, “uma função de
pedagogia cívica, de conciliação de interesses legítimos, mas plurais, de
convocação para a ação, de antecipação de tendências futuras, que faz com que a
sua atitude e presença institucional, a sua proximidade às pessoas e a sua
palavra, pública e privada, sejam fundamentais”. É a magistratura de
influência, que deve ser exercida “com inteligência e sentido de medida, não se
encerrando no palácio, mas não deixando trivializar a presença e a opinião”. Como
representa a nação no seu conjunto, ao PR compete velar pela garantia das liberdades
e dos direitos “a todas as pessoas e grupos”, pela livre expressão da pluralidade
dos interesses e pela democraticidade dos processos deliberativos. Além disso, “tem
de ser a voz primeira e constante em favor da matriz humanista e cosmopolita de
Portugal e o garante principal da nossa escolha fundadora, no 25 de Abril”: a
democracia.
Ele não é o legislador, mas “cabe-lhe suscitar, incentivar, acompanhar as
reformas, alertando, sem tréguas, para a corrosão da consciência social”,
resultante do atraso na justiça, do afastamento entre partidos e cidadãos, ou da
corrupção nos negócios ou assuntos públicos. E deve usar a sua palavra e função
para defender “a institucionalidade democrática, combatendo qualquer forma de
discriminação”, “o incitamento ao ódio e o culto da violência”.
“Perniciosa” para o funcionamento da sociedade “é a ideia de que esta
responde a um comando único”, que imponha a “ordem” e endireite “o rumo do país”.
E sustenta (bem) o ensaísta que “todos os populismos e caudilhismos cultivam
esta ilusão”, da qual resulta a deceção, pois “ninguém é ‘Chefe’ omnipotente
numa sociedade aberta”. Com efeito, o poder está repartido pelo Presidente,
pelo Parlamento, pelo governo (órgãos separados, mas interdependentes) e pelos
tribunais, que são independentes. Ao mesmo tempo, “as regiões autónomas e as
autarquias têm competências e recursos próprios, a comunicação social é livre,
as universidades são autónomas, os grandes corpos do Estado têm uma natureza
própria” e as FA não podem ser tratadas como direções-gerais, nem os diplomatas
como amanuenses.
Na sociedade civil, empresas, sindicatos, organizações não-governamentais,
confissões religiosas, partidos e demais associações políticas “constituem uma
comunidade rica na sua diversidade e vibração”, que “nenhum uniformismo ou
comando central pode diminuir”.
Para Santos Silva, o PR, “porque tem a legitimidade da eleição direta,
porque é supra partes e centra o essencial da sua missão no plano da regulação,
da arbitragem, da moderação e da influência”, cabe-lhe “liderar o esforço nacional
de mobilização das energias sociais e de convergência dos seus propósitos e
efeitos principais”.
E há uma condição essencial: “não hesitar nos interesses e [nas] escolhas
fundamentais do nosso país, como a democracia e o Estado de Direito, a Europa,
a Aliança Atlântica, o mundo de língua portuguesa, o primado do poder político
sobre o poder económico, a subordinação dos militares ao poder civil, a
liberdade de crença, [de] culto, [de] opinião, a não discriminação por nenhum
critério, o humanismo e cosmopolitismo da gente portuguesa”.
Para Santos Silva, a mulher ou o homem a eleger para Presidente “há de ter
uma sólida experiência política, quer interna, quer no plano europeu e
internacional”. Deve conhecer “a sociedade portuguesa – a Geografia e o
território, a História e o posicionamento geopolítico, a economia, os costumes
e as instituições”, bem como amar “a língua e a cultura portuguesa”, não lhe
sendo estranhas “a literatura, as artes e o património”, e ser “uma ou um
democrata liberal, adversário corajoso de todos os preconceitos e de qualquer
tipo de populismo”, “sem falsa roupagem de apolítico” ou de “salvador, chefe ou
profeta”, mas como “alguém disponível para cooperar com os outros e para nos
convidar a todos a sermos mais unidos, produtivos, determinados”.
***
É, globalmente, interessante ensaio em causa do 15.º presidente da AR (ou
14.º, se não incluirmos na contagem o presidente da Assembleia Constituinte),
do que se respigaram as ideias gerais e que só peca por tardio.
Fiquei sem saber se o texto se refere mais ao potencial candidato militar
ou ao atual PR. Àquele, cidadão como os demais, uma vez passado à reserva, aponta-se
o lançamento da pré-candidatura a partir de um cargo de poder, a chefia da
Armada. Porém, Ramalho Eanes fê-lo a partir da chefia do Exército, sem a deixar
previamente; Mário Soares fora primeiro-ministro; Jorge Sampaio era presidente
da Câmara de Lisboa; Cavaco Silva fora primeiro-ministro e perdeu, aquando da primeira
vez; e Rebelo de Sousa saltou desde a Comunicação Social (TVI, RTP e TVI).
Ao atual PR tudo foi permitido, até por outros órgãos de soberania:
comentar tudo e todos; chamar a capítulo ministros, em público, exigir
demissões, ameaçar governantes pelo putativo mau desempenho; promulgar diplomas
feridos de inconstitucionalidade; promulgar diplomas e voltar atrás. E onde
estava Santos Silva e a generalidade dos constitucionalistas, com exceção de bem
poucos, como Vital Moreira, que publicou, no blogue “Causa nossa”, 50 rubricas “O
que o Presidente não deve fazer”? Acordaram, a 23 de abril de 2023. Muito tarde!
2024.12.18 – Louro de Carvalho
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