quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Um perfil de Presidente da República ignorado até há bem pouco tempo

 

Uma presidência que cuide da democracia”: um ensaio de Augusto Santos Silva, à procura de um perfil para Belém, é um ensaio publicado, a 13 de dezembro, na “Revista E” do Expresso, com abertura de Matilde Fieschi, cuja pena sustenta que, para o ex-secretário de Estado, ex-ministro (titular de várias pastas) e ex-presidente da Assembleia da República (AR), “a função presidencial merece um debate”, perguntando: “De quem precisamos agora?”. E aponta, laconicamente, qualidades dos ex-Presidentes da República (PR), sem referir Cavaco Silva.

***

Considera o ensaísta que o essencial da magistratura do atual PR “está transcurso, pelo que não será descortês falar da futura”. Porém, não quer “tratar de pessoas, mas de perfis”. E, anotando (o que já sabemos), que o PR é um órgão (ele diz: “cargo”) de soberania “unipessoal”, julga “decisiva a personalidade a escolher”, pela biografia, pelas ideias, pelas provas dadas e pelas intenções, de modo que desempenhe “um papel que a Constituição desenha, em traços largos, mas que também depende bastante do entendimento do titular, como mostra a sucessão dos cinco Presidentes até agora eleitos em democracia” (uma no cravo, outra na ferradura).

Depois, sustenta que “a diversidade das interpretações” constitucionais de cada um dos PR revela a importância de refletir sobre que mandato atribuir à/ao Presidente, o que, na sua ótica, “exige reflexão e debate público” (“para ser democrático”), não substituíveis por “concursos de popularidade”, por “imposições televisivas” ou por “entendimentos de bastidor”.

Ora, sabendo de que tipo de Presidência carece o país, “para o equilíbrio político do regime” e para a sua “representação cabal”, o ensaísta defende que é “mais fácil deduzir o perfil desejável”, vindo a encontrar-se, “a seu tempo, a pessoa certa”. Ora, um item basilar do perfil é o mais alto magistrado “investido das competências expressamente consagradas na Lei Fundamental, e apenas dessas”, exercê-las “no quadro do equilíbrio institucional que marca o nosso regime político”, repartindo “responsabilidades pelo Presidente, [pel]o Parlamento e [pel]o governo”.

A indispensabilidade do sentido de medida releva, até porque o PR não responde perante nenhum outro órgão de soberania, não tem “nenhuma oposição organizada, relaciona-se diretamente com a opinião pública” e “dispõe de amplos poderes, que incluem a capacidade autodeterminada de dissolver” a AR (Parlamento). Como a democracia é “um sistema de equilíbrios e limitações cruzadas do poder”, o supremo órgão unipessoal “deve ser o primeiro a compreendê-lo e a praticá-lo”, explicita Santos Silva, para quem o escolho inultrapassável é “o egocentrismo” ou “qualquer inclinação caudilhista”. Portanto, quem se alce a voz do “povo” contra os “políticos” ou contra a suposta degradação da vida pública, quem se autoinvista de autoridade suprema sobre as demais instituições (inclusive os partidos), mostra “incompreensão do papel presiden­cial”.

O PR “serve a Constituição” e “não tutela o governo”, que “responde politicamente perante o Parlamento”; “não é colegislador”; não é “a favor [da] ou contra a política” ou contra “a ação do executivo, mas apoia-o “institucionalmente”, nos termos da solidariedade entre os órgãos do Estado; não substitui a “oposição”, nem a avalia, nem se intromete “nos debates parlamentares”, nem interfere, “direta ou indiretamente, na vida dos partidos”, nem funciona “como comentador omnipresente dos atos dos outros”. Ao invés, o PR respeita “a vontade do eleitorado e a composição parlamentar”, evitando ser “fator de instabilidade”. Pesa “as palavras” e fala “com clareza”, recusando “manipular meios oficiosos e fontes anónimas”. E recorre “às soluções que a Constituição lhe outorga – a demissão do governo, a dissolução do Parlamento” – “em último caso”, isto é, “se nenhuma outra solução menos extrema for possível.

Por outro lado, o PR exerce, plenamente e “com firmeza com firmeza”, os seus poderes, quando (e só quando) “forem necessários”, o que releva “em questões de (in)constitucionalidade de leis e [de] decretos-leis, [de] veto político ou [de] mensagens ao Parlamento e ao país”. E, cabendo-lhe, “sob proposta do governo, a nomeação do procurador-geral da República, do presidente do Tribunal de Contas, dos chefes militares ou dos embaixadores”, aí “a corresponsabilização é de regra”. Com efeito, compete-lhe “assegurar o cumprimento da Constituição, representar a unidade nacional, exercer o comando supremo das Forças Armadas [FA], cuidar do regular funcionamento das instituições”. É este “o núcleo do seu mandato”, em que “se deve concentrar”.

O PR não tem de opinar sobre o concreto das diversas profissões (carreira, remunerações, etc.), dos valores dos impostos ou do perfil espácio-temporal das grandes obras públicas.

Os contornos específicos das políticas públicas devem ficar reservados, no dizer de Santos Silva, “ao debate parlamentar e à dialética entre o governo e a oposição, ou entre o Estado e os parceiros sociais”, até porque, sempre que o PR em funções alimentou as expectativas sociais sobre tais assuntos, veio a “causar deceção”, pois “não dispõe dos poderes de governar”; e, “sempre que se deixou arrastar para a crítica sistemática das decisões ou omissões governamentais, a sua credibilidade veio, a prazo, a ressentir-se”, porque a Presidência não é “um contrapoder”.

Colocar, erradamente, o PR ao nível do governo e da AR, atirando-o para o terreno das medidas políticas de curto e médio alcance, “leva a esquecer as responsabilidades nucleares do Presidente”. Ora, por ter jurado cumprir e “fazer cumprir a Constituição”, por ser o comandante supremo das FA, por ser “o mais alto magistrado da nação” e por zelar “pelo funcionamento das instituições”, detém “um papel estratégico”, no atingente aos “grandes interesses e objetivos nacionais”.

A sua influência, “significativa” e exercida “em concertação com os outros poderes, deve orien­tar-se por um conjunto de princípios, a saber: desenvolvimento “real, equitativo e sustentável”; acautelamento das “bases demográficas e territoriais da nossa existência como nação”; “Estado social que inclua e proteja”; “coesão social”, em vez das “desigualdades ilegítimas”; “integração europeia” não “posta em causa”; respeito pelas “alianças que definem a posição geopolítica”; estar “do lado da paz, da segurança e da cooperação multilateral”; sentido de pertença e de integração de qualquer residente no país, bem como das comunidades portuguesas, que vivem nos vários continentes, como “parte do todo que formamos”; salvaguarda dos “direitos, liberdades e garantias”; e administração imparcial e tempestiva da justiça.

Ora, isto é avesso à redução do múnus presidencial “ao plano protocolar e de representação nacional”, ainda que importante, e a “uma visão idealizada”. Trata-se, antes, de “tarefas concretas as que o Presidente desempenha em todas as áreas da soberania”; “nas áreas da política económica e social” atinentes ao “desenvolvimento do país”, segundo “os preceitos constitucionais”; e nos domínios “existenciais”, que “respeitam a Portugal como nação, da relação com as comunidades e com os migrantes à língua e à cultura, passando pela liberdade religiosa”.

Porque os PR eleitos em democracia deixaram contributos relevantes, “ninguém começará do zero”. E Santos Silva foca a inteligência estratégica e a experiência do Mundo de Mário Soares, o sentido ético e institucional de Jorge Sampaio (esquece que exigiu a demissão intempestiva de ministros e dissolveu a AR com maioria partidária), a afetividade de Marcelo Rebelo de Sousa (que já cansa) e o desprendimento de Ramalho Eanes (esquece que patrocinou a criação de um partido, a partir de Belém). Porque não fala de Cavaco Silva, o presidente mais institucionalista, que o atual já superou, em declarações banais, em inexatidões e em contradições?

Tem razão, ao indicar que o nosso tempo precisa de “uma ação pautada pelo sentido de medida” e da “inteligência do compromisso”; da “defesa intransigente da democracia e do Estado de Direito”; e da capacidade de mobilizar “as energias disseminadas pelo tecido social”.

Não sustento, com o ensaísta, que “a Presidência não é um cargo executivo”. Ao invés, penso que está no topo do poder executivo, pois, além de executar (promulgando e mandando publicar leis e decretos-leis) e de poder vetar diplomas, nomeia o primeiro-ministro e, sob proposta, os outros membros do governo, os chefes militares, o procurador-geral da República, o presidente do Tribunal de Contas e os diplomatas. Porém, entendo que não tem “funções executivas”, no sentido operacional da expressão. É claro, entra no campo da sua missão facilitar a ação do governo e da AR, “respeitando as competências de cada um e a dialética política própria de uma democracia” e favorecendo os processos de concertação “caraterísticos da poliarquia democrática: entre Estado, regiões autónomas e autarquias; entre Estado e parceiros sociais; entre Estado, sociedade civil e empresas”. Deve “usar de inteligência estratégica”, ao atuar “na frente europeia”, “na ação externa” e “na relação com as comunidades”.

Segundo Santos Silva, o PR tem, como árbitro e moderador, “uma função de pedagogia cívica, de conciliação de interesses legítimos, mas plurais, de convocação para a ação, de antecipação de tendências futuras, que faz com que a sua atitude e presença institucional, a sua proximidade às pessoas e a sua palavra, pública e privada, sejam fundamentais”. É a magistratura de influência, que deve ser exercida “com inteligência e sentido de medida, não se encerrando no palácio, mas não deixando trivializar a presença e a opinião”. Como representa a nação no seu conjunto, ao PR compete velar pela garantia das liberdades e dos direitos “a todas as pessoas e grupos”, pela livre expressão da pluralidade dos interesses e pela democraticidade dos processos deliberativos. Além disso, “tem de ser a voz primeira e constante em favor da matriz humanista e cosmopolita de Portugal e o garante principal da nossa escolha fundadora, no 25 de Abril”: a democracia.

Ele não é o legislador, mas “cabe-lhe suscitar, incentivar, acompanhar as reformas, alertando, sem tréguas, para a corrosão da consciência social”, resultante do atraso na justiça, do afastamento entre partidos e cidadãos, ou da corrupção nos negócios ou assuntos públicos. E deve usar a sua palavra e função para defender “a institucionalidade democrática, combatendo qualquer forma de discriminação”, “o incitamento ao ódio e o culto da violência”.

“Perniciosa” para o funcionamento da sociedade “é a ideia de que esta responde a um comando único”, que imponha a “ordem” e endireite “o rumo do país”. E sustenta (bem) o ensaísta que “todos os populismos e caudilhismos cultivam esta ilusão”, da qual resulta a deceção, pois “ninguém é ‘Chefe’ omnipotente numa sociedade aberta”. Com efeito, o poder está repartido pelo Presidente, pelo Parlamento, pelo governo (órgãos separados, mas interdependentes) e pelos tribunais, que são independentes. Ao mesmo tempo, “as regiões autónomas e as autarquias têm competências e recursos próprios, a comunicação social é livre, as universidades são autónomas, os grandes corpos do Estado têm uma natureza própria” e as FA não podem ser tratadas como direções-gerais, nem os diplomatas como amanuenses.

Na socie­dade civil, empresas, sindicatos, organizações não-governamentais, confissões religiosas, partidos e demais associações políticas “constituem uma comunidade rica na sua diversidade e vibração”, que “nenhum uniformismo ou comando central pode diminuir”.

Para Santos Silva, o PR, “porque tem a legitimidade da eleição direta, porque é supra partes e centra o essencial da sua missão no plano da regulação, da arbitragem, da moderação e da influência”, cabe-lhe “liderar o esforço nacio­nal de mobilização das energias sociais e de convergência dos seus propósitos e efeitos principais”.

E há uma condição essencial: “não hesitar nos interesses e [nas] escolhas fundamentais do nosso país, como a democracia e o Estado de Direito, a Europa, a Aliança Atlântica, o mundo de língua portuguesa, o primado do poder político sobre o poder económico, a subordinação dos militares ao poder civil, a liberdade de crença, [de] culto, [de] opinião, a não discriminação por nenhum critério, o humanismo e cosmopolitismo da gente portuguesa”.

Para Santos Silva, a mulher ou o homem a eleger para Presidente “há de ter uma sólida experiência política, quer interna, quer no plano europeu e internacional”. Deve conhecer “a sociedade portuguesa – a Geo­grafia e o território, a História e o posicionamento geopolítico, a economia, os costumes e as instituições”, bem como amar “a língua e a cultura portuguesa”, não lhe sendo estranhas “a literatura, as artes e o património”, e ser “uma ou um democrata liberal, adversário corajoso de todos os preconceitos e de qualquer tipo de populismo”, “sem falsa roupagem de apolítico” ou de “salvador, chefe ou profeta”, mas como “alguém disponível para coo­perar com os outros e para nos convidar a todos a sermos mais unidos, produtivos, determinados”.

***

É, globalmente, interessante ensaio em causa do 15.º presidente da AR (ou 14.º, se não incluirmos na contagem o presidente da Assembleia Constituinte), do que se respigaram as ideias gerais e que só peca por tardio.

Fiquei sem saber se o texto se refere mais ao potencial candidato militar ou ao atual PR. Àquele, cidadão como os demais, uma vez passado à reserva, aponta-se o lançamento da pré-candidatura a partir de um cargo de poder, a chefia da Armada. Porém, Ramalho Eanes fê-lo a partir da chefia do Exército, sem a deixar previamente; Mário Soares fora primeiro-ministro; Jorge Sampaio era presidente da Câmara de Lisboa; Cavaco Silva fora primeiro-ministro e perdeu, aquando da primeira vez; e Rebelo de Sousa saltou desde a Comunicação Social (TVI, RTP e TVI).   

Ao atual PR tudo foi permitido, até por outros órgãos de soberania: comentar tudo e todos; chamar a capítulo ministros, em público, exigir demissões, ameaçar governantes pelo putativo mau desempenho; promulgar diplomas feridos de inconstitucionalidade; promulgar diplomas e voltar atrás. E onde estava Santos Silva e a generalidade dos constitucionalistas, com exceção de bem poucos, como Vital Moreira, que publicou, no blogue “Causa nossa”, 50 rubricas “O que o Presidente não deve fazer”? Acordaram, a 23 de abril de 2023. Muito tarde!

2024.12.18 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário