sábado, 28 de dezembro de 2024

Em contexto de Natal, a festa dos Santos Inocentes, mártires

 

A 28 de dezembro, na oitava da Solenidade do Natal, celebra-se a festa dos Santos Inocentes, os meninos que foram mortos, em Belém de Judá, às ordens do ímpio rei Herodes, para que perecesse com eles o Menino Jesus que os Magos adoraram. Foram honrados como mártires desde os primeiros séculos da Igreja e como primícias de todos os que derramariam o sangue por Deus e pelo Cordeiro.

“Ainda não falam e já confessam a Cristo. Ainda não podem mover os seus membros para travar batalha e já alcançam a palma da vitória”, disse, uma vez, São Quodvultdeus (do século V), ao exortar os fiéis sobre os Santos Inocentes, as crianças que morreram por Cristo.

De acordo com o relato evangélico de Mateus, o rei Herodes mandou matar, em Belém e em seus arredores, os meninos menores de dois anos, ao sentir-se enganado pelos Reis Magos, os quais retornaram aos seus países por outro caminho, para não lhe revelarem onde estava o Messias.

A festa para venerar estes meninos que morreram como mártires foi instituída no século IV. A tradição oriental recorda-os a 29 de dezembro, enquanto a tradição latina os recorda no dia 28.

São Quodvultdeus, padre da Igreja do século V e bispo de Cartago (Norte da África), fez um sermão sobre este lamentável feito, em que perorava: “Que temes, Herodes, ao ouvir dizer que nasceu o Rei? Ele não veio para te destronar, mas para vencer o demónio. Tu, porém, não o compreendes; por isso, perturbas-te e enfureces-te, e, para que não escape aquele único Menino que buscas, convertes-te em cruel assassino de tantas crianças.”

O santo pregador acrescenta: “Nem as lágrimas das mães, nem o lamento dos pais pela morte de seus filhos, nem os gritos e gemidos das crianças te comovem. Matas o corpo das crianças, porque o temor te matou o coração.”

“As crianças, sem o saberem, morrem por Cristo; os pais choram os mártires que morrem. Àqueles que ainda não podiam falar, Cristo os faz suas dignas testemunhas”, enfatizou São Quodvultdeus.

Nasceu um menino que é o grande rei. Os magos chegam de longe e vêm adorar e presentear aquele que reina no Céu e na Terra. Ao anunciarem os magos o nascimento de um rei, Herodes perturba-se, pois não quer perder o seu reino, e quer matar o recém-nascido.  

Porém, se tivesse acreditado nele, poderia reinar com segurança, nesta terra, e para sempre, na outra vida, pois aquele que é fonte de graça – pequenino e grande – apavora o trono herodiano, mas realiza os seus desígnios, liberta as almas do cativeiro e recebe como filhos adotivos os filhos dos que eram seus inimigos. Essas crianças morrem pelo Cristo, sem saberem, enquanto os seus pais choram os mártires que morrem. Cristo faz daqueles que ainda não falam suas legítimas testemunhas. Eis como reina aquele que veio para reinar. Eis como já começa a conceder a liberdade aquele que veio para libertar e a dar a salvação aquele que veio para salvar.

O Martírio dos Santos Inocentes replica a passagem do livro do Êxodo (Ex 1,8-16.22), sobre a “matança dos meninos hebreus no Egito”, como segue:

“Naqueles dias,  surgiu um novo rei no Egito, que não conhecera José, e disse ao seu povo: ‘Olhai como o povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte do que nós. Vamos agir com prudência, em relação a ele, para impedir que continue crescendo e, em caso de guerra, se una aos nossos inimigos, combata contra nós e acabe por sair do país.’

Estabeleceram inspetores de obras, para que o oprimissem com trabalhos penosos; e foi assim que ele construiu para o Faraó as cidades-entrepostos de Pitom e Ramsés. Porém, quanto mais o oprimiam, tanto mais Ele se multiplicava e crescia.

Obcecados pelo medo dos filhos de Israel, os Egípcios impuseram-lhes dura escravidão. E tornaram-lhes a vida amarga pelo pesado trabalho da preparação do barro e dos tijolos, com toda a espécie de trabalhos dos campos e com outros serviços que os levavam a fazer à força.

O rei do Egito disse às parteiras dos Hebreus, uma das quais se chamava Sefra e a outra Fua: ‘Quando assistirdes as mulheres hebreias e chegar o tempo do parto, se for menino, matai-o, se for menina, deixai-a viver.’ Então, o Faraó deu esta ordem a todo o seu povo: ‘Lançai ao rio Nilo todos os meninos hebreus recém-nascidos, mas poupai a vida das meninas.’.”

***

A propósito da festa dos Santos Inocentes, o padre Sergio Román publicou, no SIAME (Serviço Informativo da Arquidiocese do México), um artigo em que salienta informações sobre estes mártires, cujas mortes se repercutem na sociedade hodierna, a saber:

1. A narrativa. Herodes disse aos Magos do Oriente que estava muito interessado no rei que tinha acabado de nascer e pediu-lhes que o informassem sobre este rei, quando regressassem, para também ir adorá-lo. A estrela guiou os Magos até à criança e, cumprida a sua missão, os magos voltaram para os seus países de origem por outros caminhos, pois um anjo os avisara, em sonhos, que Herodes queria matar Jesus.

Desapontado com os Magos e furioso, Herodes mandou matar todos os meninos menores de dois anos, com o desejo de acabar com aquele Rei nascido em Belém, que, supostamente, colocava em perigo o seu próprio reinado. Assim, perpetrou um genocídio fora de tempo de guerra: a matança dos inocentes. A Igreja recorda-os, no dia 28 de dezembro, unidos ao Natal, porque eles não morreram por Cristo, mas no lugar de Cristo.

2. “Herodes, o Grande”. Assim se fazia aclamar aquele rei da Palestina, fantoche do Império Romano. Foi grande, porque soube ganhar guerras e conquistar terras para o seu reino, mas também pelos seus crimes: casou-se com Mariana, filha do sumo-sacerdote Hircano II. Temeroso de que desejavam o seu reino, mandou matar o genro, José; Salomé; o sumo-sacerdote Hircano II; a sua esposa Mariana; os irmãos dela, Aristóbulo e Alexandra; os seus próprios filhos, Aristóbulo, Alexander e Antípatro.

Quando ficou enfermo, mandou prender todas as personalidades importantes de Jericó, com a ordem de que, assim que morresse, os matassem a flechadas. Porém, quando Herodes morreu, esta ordem não foi cumprida. Com esses dados, podemos compreender que, para ele, foi fácil mandar matar os Santos Inocentes. Quantos foram? Hoje, sabe-se que Belém não devia ter mais de mil habitantes e que a este número corresponderia uma população de 20 meninos.

Enfim, como tantos ditadores, Herodes era cruel, porque inseguro e tímido.

3. A gruta de Belém. Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que deu a paz aos cristãos, no século IV, construiu uma Basílica sobre a gruta de Belém, onde o Menino Jesus nasceu. Essa Basílica, reconstruída, ainda existe e guarda, na sua cripta, a preciosa gruta onde uma estrela de prata marca o lugar do santo nascimento. “Aqui nasceu Jesus Cristo de Maria, a Virgem”, diz a inscrição em latim. A gruta de Belém é um sistema de cavernas que se estendem debaixo da antiga basílica e do templo católico de Santa Catarina. Numa dessas cavernas foram encontrados restos de crianças enterradas. O primeiro pensamento foi que eram os restos dos Santos Inocentes, mas os caixões correspondiam a uma época muito posterior. Em todo o caso, a caverna foi dedicada à memória dos Santos Inocentes.

Porém, segundo o texto evangélico mateano, os magos já não foram adorar o Menino no presépio onde nascera, segundo Lucas, mas numa casa.

4. Ain Karen. Trata-se de uma cidade perto de Jerusalém. Segundo a tradição, é o lugar da “Visitação” e do nascimento de João Batista. Este era mais velho do que Jesus apenas seis meses e existe a lenda de que também, ao ser vítima de Herodes, por ser perseguida por soldados assassinos, Isabel mãe procurou e encontrou uma rocha no monte, atrás da qual ocultou o seu pequeno João, antes que os soldados a alcançassem.

Quando os soldados a alcançaram, procuraram até atrás da rocha, mas não viram nada. Quando saíram, Isabel correu para a buscar o seu menino e descobriu que a rocha tinha aberto um espaço para dar lugar, no seu interior, ao pequeno perseguido e, assim, salvou João Batista. Na Basílica da Visitação, sobre o monte, guarda-se uma estranha rocha que recorda esta narrativa.

5. Os santos inocentes de hoje. A celebração litúrgica deve recordar-nos, não apenas o facto histórico daquelas crianças assassinadas no lugar de Cristo, mas também o acontecimento diário de todos os inocentes perseguidos e assassinados entre nós. Os seres humanos são capazes de monstruosidades que nos envergonham. Seguimos assassinando por motivos religiosos, políticos, económicos e, cada vez que denunciamos um desses crimes, clamamos indignados “Nunca mais!”, para, em seguida, repetirmos o episódio macabro.

Quantas crianças deixamos morrer à fome, ao frio (sem roupa e sem teto), em doenças, como crianças-soldados ou como escudo humano em tempo de guerra! Quantas crianças são objeto de tráfico humano, de abuso sexual, de maus-tratos, de trabalhos forçados! Quantas crianças estão impedidas de acederem à escola, a serviços de saúde, ou de viverem numa família, partilhando o conforto de uma casa! Quantas crianças são vítimas de disputas familiares!       

Não permaneçamos indiferentes ante esses genocídios, despertemos em nós a solidariedade e unamos nossas vozes e nossas ações às desses inocentes que seguem morrendo no lugar de Cristo.

Uns morrem de uma vez, ao passo que outros morrem lentamente, por penúria de tudo.

***

Não vale a pena condenar ao Herodes de há 2024 anos. O poema de Miguel Torga “HISTÓRIA ANTIGA” deve ser lido, tendo em atenção os muitos Herodes dos dias de hoje que tornam as crianças vítimas do poder repressivo, da ambição económica, do domínio geoestratégico, da violência, do hedonismo (na família, na Igreja, na escola, no desporto, no grupo informal).

HISTÓRIA ANTIGA

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

 

2024.12.28 – Louro de Carvalho

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