O governo do presidente
sírio, Bashar-al-Assad, caiu na
madrugada de 8 de dezembro, pondo fim ao domínio de pouco menos de 54 anos da
família Assad, depois de a ofensiva rebelde surpresa ter varrido as áreas
controladas pelo poder instituído e chegado à capital, em apenas 10 dias.
O
acontecimento encerrou, dramaticamente, a luta do presidente, de quase 14 anos,
para se manter no poder, num país dilacerado por devastadora guerra civil, que
se tornou campo de batalha por procuração para algumas forças regionais e
internacionais.
A queda de
Assad contrasta, fortemente, com os seus primeiros meses, como improvável
presidente da Síria, em 2000, quando muitos esperavam que o oftalmologista, de
34 anos, com formação ocidental, fosse um reformador, após três décadas de
controlo férreo do pai, Hafez Assad. Porém, em março de 2011, ao eclodirem os
protestos, Assad recorreu às táticas do antecessor para os tentar reprimir. E,
quando a revolta virou a guerra civil, recorreu aos seus militares para
bombardear as cidades controladas pela oposição, com o apoio do Irão e da Rússia.
E grupos internacionais de defesa dos direitos humanos acusaram de tortura
generalizada e de execuções extrajudiciais os centros de detenção geridos pelo
governo.
A guerra civil
custou quase 500 mil vidas e obrigou metade da população, que era, antes da
guerra, de 23 milhões de pessoas, a fugir das suas casas, procurando refúgio em
países vizinhos, como a Jordânia, a Turquia, o Iraque e o Líbano, com muitos a
seguirem para a Europa.
Até há pouco
tempo, parecia que Assad estava prestes a estabilizar a sua posição. A guerra
tinha-se instalado em linhas da frente congeladas, com o governo a recuperar a
maior parte do território. Entretanto, os grupos da oposição controlavam o
Noroeste e as forças curdas o Nordeste.
Apesar das
sanções ocidentais, os países vizinhos passaram a aceitar o controlo de Assad. A
Liga Árabe restabeleceu a adesão da Síria, em 2023 e, em maio deste ano, a Arábia
Saudita nomeou o seu primeiro embaixador na Síria em 12 anos, após ter cortado
relações com Damasco. Porém, a situação geopolítica mudou de súbito, quando
grupos da oposição baseados no Noroeste da Síria lançaram uma ofensiva surpresa
nos fins de novembro. As forças governamentais desmoronaram-se, enquanto os aliados
de Assad, distraídos com outros conflitos, como a guerra da Rússia na Ucrânia e
as guerras que envolvem Israel e os grupos militantes apoiados pelo Irão
(Hezbollah e Hamas), não estavam dispostos a intervir em força. E o paradeiro
de Assad, não era claro no dia 6, entre relatos de que tinha deixado o país
quando os insurgentes tomaram o controlo da capital síria, é agora o território
russo, onde o presidente Vladimir Putin o acolheu.
Bashar
chegou ao poder, em 2000, por reviravolta do destino. O pai preparava Basil, o
irmão mais velho, para sucessor, mas Basil morreu, em 1994, num acidente de
viação, em Damasco. Bashar saiu da sua clínica de oftalmologia em Londres,
recebeu treino militar e foi elevado ao posto de coronel, para estabelecer as
suas credenciais e, assim, poder um dia governar. E, quando Hafez Assad morreu,
em 2000, o parlamento baixou a idade presidencial de 40 para 34 anos e a
elevação de Bashar foi selada por um referendo nacional, no qual ele era o único
candidato. Assim, pôde suceder a Hafez, militar de longa data, que governou o
país durante quase 30 anos, em que estabeleceu uma economia centralizada e
manteve controlo tão sufocante sobre a dissidência que os Sírios até receavam
até fazer piadas sobre política com os amigos.
O pai, seguindo
uma ideologia secular de anulação das diferenças sectárias sob o nacionalismo
árabe e a imagem de resistência a Israel, aliou-se à liderança clerical xiita,
no Irão, selou o domínio sírio sobre o Líbano e criou uma rede de grupos
militantes palestinianos e libaneses.
Bashar, a princípio,
tinha um comportamento calmo e gentil. O seu único cargo oficial antes de ser
presidente foi o de diretor da Sociedade Síria de Computadores. A esposa, Asma
al-Akhras, de origem britânica com quem casou, meses depois de assumir o cargo,
era atraente e elegante.
O casal, que
teve três filhos, evitava as armadilhas do poder. Vivia num apartamento no
bairro nobre de Abu Rummaneh, em Damasco, em vez de mansão palaciana, como
outros líderes árabes.
Ao assumir o
poder, Assad libertou os presos políticos e permitiu uma discussão mais aberta.
Na primavera de Damasco, surgiram salões para intelectuais, onde os sírios falavam
de arte, de cultura e de política, de forma impossível no regime do pai. Porém,
depois de mil intelectuais terem assinado uma petição pública, em 2001, a apelar
à democracia multipartidária e a maiores liberdades, e de outros terem tentado
formar um partido político, a polícia secreta encerrou os salões e prendeu
dezenas de ativistas.
Em vez da
abertura política, o presidente virou-se para as reformas económicas. Levantou
as restrições económicas, permitiu a entrada de bancos estrangeiros, abriu as
portas às importações e deu poder ao setor privado. Damasco e outras cidades,
há muito atoladas na monotonia, viram o advento de centros comerciais, de novos
restaurantes e de bens de consumo, com o turismo a crescer. A nível externo, o
líder manteve-se fiel à linha traçada pelo pai, baseada na aliança com o Irão e
na política de insistência na devolução total dos Montes Golã, anexados por
Israel, embora, na prática, nunca tenha confrontado militarmente Israel.
Em 2005,
sofreu duro golpe com a perda do controlo de décadas da Síria sobre o Líbano,
após o assassinato do antigo primeiro-ministro Rafik Hariri. Com muitos
libaneses a acusarem Damasco de estar por detrás do assassínio, a Síria teve de
retirar as suas tropas do país e chegou ao poder um governo pró-americano. Ao
mesmo tempo, o mundo árabe dividiu-se em dois campos – um dos países sunitas
aliados dos Estados Unidos da América (EUA), como a Arábia Saudita e o Egito, e
o outro da Síria e do Irão, liderado pelos xiitas, com ligações ao Hezbollah e
aos militantes palestinianos. Ao longo de todo o processo, Assad apoiou-se,
largamente, na mesma base de poder do pai: a seita alauita, ramo do Islão xiita
que representa cerca de 10% da população.
Muitos dos
cargos no governo foram atribuídos a gerações mais jovens das mesmas famílias
que tinham trabalhado para o pai. Também foi atraída a nova classe média
surgida das suas reformas, incluindo proeminentes famílias de comerciantes
sunitas. Além disso, Assad deu altos
cargos à própria família. Maher, o irmão mais novo, chefiava a Guarda
Presidencial de elite e liderou a repressão contra a revolta. Bushra, a irmã era
uma voz forte no seu círculo íntimo, juntamente com o marido, o vice-ministro
da Defesa Assef Shawkat, até este ser morto num atentado bombista, em 2012. Rami
Makhlouf, primo de Bashar, tornou-se o maior empresário do país, liderando um
império financeiro antes de os dois se desentenderem e Makhlouf ser afastado. E
a esposa de Bashar também desempenhou cada vez mais funções-chave, antes de ter
anunciado, em maio, que estava a ser submetida a tratamento contra a leucemia e
se ter afastado da ribalta.
Quando os
protestos irromperam na Tunísia e no Egito e derrubaram os seus governantes,
Assad rejeitou a possibilidade de o mesmo suceder no país, insistindo que o
regime estava mais em sintonia com o povo. Depois de a primavera Árabe ter
chegado à Síria, as forças de segurança do regime reprimiram, brutalmente, o
país e Assad negou, sistematicamente, estar a enfrentar uma revolta popular,
culpando os “terroristas apoiados por estrangeiros” de quererem desestabilizar
o regime. A sua retórica tocou em muitos grupos minoritários da Síria, incluindo
cristãos, drusos e xiitas, bem como em alguns sunitas que temiam a iminência de
um governo de extremistas sunitas. Ironicamente, em 26 de fevereiro de 2011 –
dois dias após o egípcio Hosni Mubarak ser deposto por manifestantes e pouco
antes de a vaga de protestos da primavera Árabe chegar à Síria – Assad enviou,
por correio eletrónico, uma piada a gozar com a recusa de Mubarak em deixar o
poder.
***
A queda de Assad foi saudada como boa notícia. Todavia, o facto de o
movimento vir comandado da Al-Qaeda e de os múltiplos grupos armados que
assumiram o controlo da Síria terem diferentes agendas ideológicas e diferentes
dependências em relação a potências regionais e internacionais, torna nebulosas
as perspetivas de transição pacífica do poder. E a questão é: “Quem governará o país e o que acontecerá com os aliados de
Assad em Teerão, em Beirute e em Moscovo, mas também com os inimigos mais
ferozes, e que destino pode esperar a Síria, agora?”
O Líbano está
preocupado com os problemas internos, com a devastadora guerra israelita que
custou a vida a cerca de quatro mil pessoas e com o Hezbollah, antigo aliado de Assad, exausto
pela guerra que travou contra Telavive e que terminou com o anúncio de um
frágil cessar-fogo de 60 dias, repetidamente violado. Com a mudança de Damasco,
a linha de abastecimento do Irão ao Hezbollah através da Síria será cortada ou
muito dificultada.
A Turquia
tentou distanciar-se dos avanços dos grupos armados e frisou não estar
envolvida na operação, apesar do apoio à oposição, desde o início da revolta
contra o regime de Assad, e do acolhimento a figuras da oposição e ao Exército
Nacional Sírio. Porém, não é seguro podermos esperar solução para o dilema dos
cerca de três milhões de refugiados sírios na Turquia.
Israel
ocupou os Montes Golã, durante mais de 57, anos antes de anunciar a sua
anexação, que Washington reconheceu na anterior administração de Donald Trump,
apesar das claras resoluções internacionais que consideram os Montes Golã um
território ocupado. Agora, a queda do regime serve os interesses de
Israel, sobretudo se surgir um regime virado para dentro e preocupado com os problemas
internos, não reivindicando o direito a reclamar os montes Golã ou a chegar às
margens do lago Tiberíades.
O Irão perdeu um aliado
vital na região árabe, quase o único à exceção do Iraque. Os interesses convergiam entre o regime islâmico
que emergiu da revolução liderada por Khomeini, que derrubou o Xá em
1979, e o regime nacionalista secular liderado pelo Partido Baath, chefiado por
Assad. Hafez al-Assad apoiou
Teerão na guerra contra o Iraque, na década de 1980. Esse apoio continuou sob o governo do filho, especialmente, durante
a guerra civil.
Teerão, que está a perder o seu aliado em Damasco, parece estar a adotar uma posição cautelosa, em
relação a estes acontecimentos, preocupado com outros desafios e questões,
nomeadamente, a crescente hostilidade entre o país e Israel e os EUA. Com o
dossiê nuclear por resolver e com
as sanções norte-americanas e internacionais ainda no panorama, a
República Islâmica está apreensiva,
quanto à próxima etapa.
A Rússia
continua a ser um dos principais intervenientes na Síria e a saída de Bashar al-Assad contitui rude
golpe para Moscovo, que tem instalações militares no país.
A Rússia de Putin tem prestado significativo apoio
militar ao regime, desde 2015, com, pelo menos, quatro mil soldados no
país. Este apoio, sob a bandeira da luta contra o Estado Islâmico e contra os
grupos extremistas, tem sido crucial para manter o regime de Bashar al-Assad. A
queda do regime significará que Moscovo
deixa de ter um ponto de apoio na Síria, dada a profunda
hostilidade dos grupos armados. Do ponto de vista geoestratégico, seria um rude
golpe para o presidente Vladimir Putin, que trava guerra contra a Ucrânia e
contra o Ocidente, há quase três anos. Estes desenvolvimentos podem ser um
fator de resolução da questão ucraniana e influenciar o conflito entre a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e os países ocidentais, por um lado, e a
Rússia, por outro.
Agora
que os grupos armados liderados
pelo grupo militante Hayat Tahrir al-Sham (antigo al-Nusra) assumiram o
controlo da Síria, e com as suas diferentes agendas ideológicas e com a
associação de alguns deles a potências regionais e internacionais, o cenário é
nebuloso.
Ninguém
afirma que o país não será dividido ou que não haverá transição democrática do
poder. A Síria pode não evitar um destino
semelhante ao da Líbia, desde a revolta contra o regime de Kadhafi,
a 17 de fevereiro de 2011. De facto, a Líbia está dividida entre um governo reconhecido internacionalmente,
sediado em Tripoli, a Oeste, e um governo a Leste, liderado pelo marechal
Khalifa Haftar, no contexto de polarização regional e internacional. Todas as
tentativas para sarar o fosso entre os desavindos e pôr fim à rivalidade de que
resultaram centenas de mortos, dois
governos, dois bancos centrais, forças armadas e milícias diferentes, infraestruturas
degradadas e uma economia em colapso, apesar da vasta riqueza petrolífera país,
têm sido vãs.
Outro receio
é o cenário registado no
Afeganistão, controlado pelos talibãs desde 15 de agosto de 2021,
com a imposição de um regime islâmico de linha dura, após a retirada dos EUA e
de outras forças internacionais. E pode o Hayat Tahrir al-Sham, ponta de lança
no derrube do regime de Assad, assumir o controlo dos mecanismos do governo num
país multiconfessional e multiétnico, povoado por curdos, alauitas, drusos,
xiitas e sunitas, além dos cristãos que integram o tecido demográfico da Síria,
visto que os seus antepassados foram os primeiros a abraçar o cristianismo e a
seguir o ensino de Jesus. Com efeito, a
cidade de Maaloula, a 50 quilómetros da capital, é a mais antiga cidade cristã
da Síria e os seus habitantes ainda falam aramaico, a língua de
Jesus.
Resta saber
se a realidade desmentirá estes receios, com a transferência pacífica de poder,
em que o país sarará das feridas da guerra civil e virará a página de 54 anos de totalitarismo.
2024.12.09 – Louro de Carvalho
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