segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Quais serão as consequências da queda do governo sírio?

 

O governo do presidente sírio, Bashar-al-Assad, caiu na madrugada de 8 de dezembro, pondo fim ao domínio de pouco menos de 54 anos da família Assad, depois de a ofensiva rebelde surpresa ter varrido as áreas controladas pelo poder instituído e chegado à capital, em apenas 10 dias.

O acontecimento encerrou, dramaticamente, a luta do presidente, de quase 14 anos, para se manter no poder, num país dilacerado por devastadora guerra civil, que se tornou campo de batalha por procuração para algumas forças regionais e internacionais.

A queda de Assad contrasta, fortemente, com os seus primeiros meses, como improvável presidente da Síria, em 2000, quando muitos esperavam que o oftalmologista, de 34 anos, com formação ocidental, fosse um reformador, após três décadas de controlo férreo do pai, Hafez Assad. Porém, em março de 2011, ao eclodirem os protestos, Assad recorreu às táticas do antecessor para os tentar reprimir. E, quando a revolta virou a guerra civil, recorreu aos seus militares para bombardear as cidades controladas pela oposição, com o apoio do Irão e da Rússia. E grupos internacionais de defesa dos direitos humanos acusaram de tortura generalizada e de execuções extrajudiciais os centros de detenção geridos pelo governo.

A guerra civil custou quase 500 mil vidas e obrigou metade da população, que era, antes da guerra, de 23 milhões de pessoas, a fugir das suas casas, procurando refúgio em países vizinhos, como a Jordânia, a Turquia, o Iraque e o Líbano, com muitos a seguirem para a Europa.

Até há pouco tempo, parecia que Assad estava prestes a estabilizar a sua posição. A guerra tinha-se instalado em linhas da frente congeladas, com o governo a recuperar a maior parte do território. Entretanto, os grupos da oposição controlavam o Noroeste e as forças curdas o Nordeste.

Apesar das sanções ocidentais, os países vizinhos passaram a aceitar o controlo de Assad. A Liga Árabe restabeleceu a adesão da Síria, em 2023 e, em maio deste ano, a Arábia Saudita nomeou o seu primeiro embaixador na Síria em 12 anos, após ter cortado relações com Damasco. Porém, a situação geopolítica mudou de súbito, quando grupos da oposição baseados no Noroeste da Síria lançaram uma ofensiva surpresa nos fins de novembro. As forças governamentais desmoronaram-se, enquanto os aliados de Assad, distraídos com outros conflitos, como a guerra da Rússia na Ucrânia e as guerras que envolvem Israel e os grupos militantes apoiados pelo Irão (Hezbollah e Hamas), não estavam dispostos a intervir em força. E o paradeiro de Assad, não era claro no dia 6, entre relatos de que tinha deixado o país quando os insurgentes tomaram o controlo da capital síria, é agora o território russo, onde o presidente Vladimir Putin o acolheu.

Bashar chegou ao poder, em 2000, por reviravolta do destino. O pai preparava Basil, o irmão mais velho, para sucessor, mas Basil morreu, em 1994, num acidente de viação, em Damasco. Bashar saiu da sua clínica de oftalmologia em Londres, recebeu treino militar e foi elevado ao posto de coronel, para estabelecer as suas credenciais e, assim, poder um dia governar. E, quando Hafez Assad morreu, em 2000, o parlamento baixou a idade presidencial de 40 para 34 anos e a elevação de Bashar foi selada por um referendo nacional, no qual ele era o único candidato. Assim, pôde suceder a Hafez, militar de longa data, que governou o país durante quase 30 anos, em que estabeleceu uma economia centralizada e manteve controlo tão sufocante sobre a dissidência que os Sírios até receavam até fazer piadas sobre política com os amigos.

O pai, seguindo uma ideologia secular de anulação das diferenças sectárias sob o nacionalismo árabe e a imagem de resistência a Israel, aliou-se à liderança clerical xiita, no Irão, selou o domínio sírio sobre o Líbano e criou uma rede de grupos militantes palestinianos e libaneses.

Bashar, a princípio, tinha um comportamento calmo e gentil. O seu único cargo oficial antes de ser presidente foi o de diretor da Sociedade Síria de Computadores. A esposa, Asma al-Akhras, de origem britânica com quem casou, meses depois de assumir o cargo, era atraente e elegante.

O casal, que teve três filhos, evitava as armadilhas do poder. Vivia num apartamento no bairro nobre de Abu Rummaneh, em Damasco, em vez de mansão palaciana, como outros líderes árabes.

Ao assumir o poder, Assad libertou os presos políticos e permitiu uma discussão mais aberta. Na primavera de Damasco, surgiram salões para intelectuais, onde os sírios falavam de arte, de cultura e de política, de forma impossível no regime do pai. Porém, depois de mil intelectuais terem assinado uma petição pública, em 2001, a apelar à democracia multipartidária e a maiores liberdades, e de outros terem tentado formar um partido político, a polícia secreta encerrou os salões e prendeu dezenas de ativistas.

Em vez da abertura política, o presidente virou-se para as reformas económicas. Levantou as restrições económicas, permitiu a entrada de bancos estrangeiros, abriu as portas às importações e deu poder ao setor privado. Damasco e outras cidades, há muito atoladas na monotonia, viram o advento de centros comerciais, de novos restaurantes e de bens de consumo, com o turismo a crescer. A nível externo, o líder manteve-se fiel à linha traçada pelo pai, baseada na aliança com o Irão e na política de insistência na devolução total dos Montes Golã, anexados por Israel, embora, na prática, nunca tenha confrontado militarmente Israel.

Em 2005, sofreu duro golpe com a perda do controlo de décadas da Síria sobre o Líbano, após o assassinato do antigo primeiro-ministro Rafik Hariri. Com muitos libaneses a acusarem Damasco de estar por detrás do assassínio, a Síria teve de retirar as suas tropas do país e chegou ao poder um governo pró-americano. Ao mesmo tempo, o mundo árabe dividiu-se em dois campos – um dos países sunitas aliados dos Estados Unidos da América (EUA), como a Arábia Saudita e o Egito, e o outro da Síria e do Irão, liderado pelos xiitas, com ligações ao Hezbollah e aos militantes palestinianos. Ao longo de todo o processo, Assad apoiou-se, largamente, na mesma base de poder do pai: a seita alauita, ramo do Islão xiita que representa cerca de 10% da população.

Muitos dos cargos no governo foram atribuídos a gerações mais jovens das mesmas famílias que tinham trabalhado para o pai. Também foi atraída a nova classe média surgida das suas reformas, incluindo proeminentes famílias de comerciantes sunitas. Além disso,  Assad deu altos cargos à própria família. Maher, o irmão mais novo, chefiava a Guarda Presidencial de elite e liderou a repressão contra a revolta. Bushra, a irmã era uma voz forte no seu círculo íntimo, juntamente com o marido, o vice-ministro da Defesa Assef Shawkat, até este ser morto num atentado bombista, em 2012. Rami Makhlouf, primo de Bashar, tornou-se o maior empresário do país, liderando um império financeiro antes de os dois se desentenderem e Makhlouf ser afastado. E a esposa de Bashar também desempenhou cada vez mais funções-chave, antes de ter anunciado, em maio, que estava a ser submetida a tratamento contra a leucemia e se ter afastado da ribalta.

Quando os protestos irromperam na Tunísia e no Egito e derrubaram os seus governantes, Assad rejeitou a possibilidade de o mesmo suceder no país, insistindo que o regime estava mais em sintonia com o povo. Depois de a primavera Árabe ter chegado à Síria, as forças de segurança do regime reprimiram, brutalmente, o país e Assad negou, sistematicamente, estar a enfrentar uma revolta popular, culpando os “terroristas apoiados por estrangeiros” de quererem desestabilizar o regime. A sua retórica tocou em muitos grupos minoritários da Síria, incluindo cristãos, drusos e xiitas, bem como em alguns sunitas que temiam a iminência de um governo de extremistas sunitas. Ironicamente, em 26 de fevereiro de 2011 – dois dias após o egípcio Hosni Mubarak ser deposto por manifestantes e pouco antes de a vaga de protestos da primavera Árabe chegar à Síria – Assad enviou, por correio eletrónico, uma piada a gozar com a recusa de Mubarak em deixar o poder.

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A queda de Assad foi saudada como boa notícia. Todavia, o facto de o movimento vir comandado da Al-Qaeda e de os múltiplos grupos armados que assumiram o controlo da Síria terem diferentes agendas ideológicas e diferentes dependências em relação a potências regionais e internacionais, torna nebulosas as perspetivas de transição pacífica do poder. E a questão é: “Quem governará o país e o que acontecerá com os aliados de Assad em Teerão, em Beirute e em Moscovo, mas também com os inimigos mais ferozes, e que destino pode esperar a Síria, agora?”

O Líbano está preocupado com os problemas internos, com a devastadora guerra israelita que custou a vida a cerca de quatro mil pessoas e com o Hezbollahantigo aliado de Assad, exausto pela guerra que travou contra Telavive e que terminou com o anúncio de um frágil cessar-fogo de 60 dias, repetidamente violado. Com a mudança de Damasco, a linha de abastecimento do Irão ao Hezbollah através da Síria será cortada ou muito dificultada.

A Turquia tentou distanciar-se dos avanços dos grupos armados e frisou não estar envolvida na operação, apesar do apoio à oposição, desde o início da revolta contra o regime de Assad, e do acolhimento a figuras da oposição e ao Exército Nacional Sírio. Porém, não é seguro podermos esperar solução para o dilema dos cerca de três milhões de refugiados sírios na Turquia.

Israel ocupou os Montes Golã, durante mais de 57, anos antes de anunciar a sua anexação, que Washington reconheceu na anterior administração de Donald Trump, apesar das claras resoluções internacionais que consideram os Montes Golã um território ocupado. Agora, a queda do regime serve os interesses de Israel, sobretudo se surgir um regime virado para dentro e preocupado com os problemas internos, não reivindicando o direito a reclamar os montes Golã ou a chegar às margens do lago Tiberíades.

O Irão perdeu um aliado vital na região árabe, quase o único à exceção do Iraque. Os interesses convergiam entre o regime islâmico que emergiu da revolução liderada por Khomeini, que derrubou o Xá em 1979, e o regime nacionalista secular liderado pelo Partido Baath, chefiado por Assad. Hafez al-Assad apoiou Teerão na guerra contra o Iraque, na década de 1980. Esse apoio continuou sob o governo do filho, especialmente, durante a guerra civil.

Teerão, que está a perder o seu aliado em Damasco, parece estar a adotar uma posição cautelosa, em relação a estes acontecimentos, preocupado com outros desafios e questões, nomeadamente, a crescente hostilidade entre o país e Israel e os EUA. Com o dossiê nuclear por resolver e com as sanções norte-americanas e internacionais ainda no panorama, a República Islâmica está apreensiva, quanto à próxima etapa.

A Rússia continua a ser um dos principais intervenientes na Síria e a saída de Bashar al-Assad contitui rude golpe para Moscovo, que tem instalações militares no país.

Rússia de Putin tem prestado significativo apoio militar ao regime, desde 2015, com, pelo menos, quatro mil soldados no país. Este apoio, sob a bandeira da luta contra o Estado Islâmico e contra os grupos extremistas, tem sido crucial para manter o regime de Bashar al-Assad. A queda do regime significará que Moscovo deixa de ter um ponto de apoio na Síria, dada a profunda hostilidade dos grupos armados. Do ponto de vista geoestratégico, seria um rude golpe para o presidente Vladimir Putin, que trava guerra contra a Ucrânia e contra o Ocidente, há quase três anos. Estes desenvolvimentos podem ser um fator de resolução da questão ucraniana e influenciar o conflito entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e os países ocidentais, por um lado, e a Rússia, por outro.

Agora que os grupos armados liderados pelo grupo militante Hayat Tahrir al-Sham (antigo al-Nusra) assumiram o controlo da Síria, e com as suas diferentes agendas ideológicas e com a associação de alguns deles a potências regionais e internacionais, o cenário é nebuloso.

Ninguém afirma que o país não será dividido ou que não haverá transição democrática do poder. A Síria pode não evitar um destino semelhante ao da Líbia, desde a revolta contra o regime de Kadhafi, a 17 de fevereiro de 2011. De facto, a Líbia está dividida entre um governo reconhecido internacionalmente, sediado em Tripoli, a Oeste, e um governo a Leste, liderado pelo marechal Khalifa Haftar, no contexto de polarização regional e internacional. Todas as tentativas para sarar o fosso entre os desavindos e pôr fim à rivalidade de que resultaram centenas de mortos, dois governos, dois bancos centrais, forças armadas e milícias diferentes, infraestruturas degradadas e uma economia em colapso, apesar da vasta riqueza petrolífera país, têm sido vãs.

Outro receio é o cenário registado no Afeganistão, controlado pelos talibãs desde 15 de agosto de 2021, com a imposição de um regime islâmico de linha dura, após a retirada dos EUA e de outras forças internacionais. E pode o Hayat Tahrir al-Sham, ponta de lança no derrube do regime de Assad, assumir o controlo dos mecanismos do governo num país multiconfessional e multiétnico, povoado por curdos, alauitas, drusos, xiitas e sunitas, além dos cristãos que integram o tecido demográfico da Síria, visto que os seus antepassados foram os primeiros a abraçar o cristianismo e a seguir o ensino de Jesus. Com efeito, a cidade de Maaloula, a 50 quilómetros da capital, é a mais antiga cidade cristã da Síria e os seus habitantes ainda falam aramaico, a língua de Jesus.

Resta saber se a realidade desmentirá estes receios, com a transferência pacífica de poder, em que o país sarará das feridas da guerra civil e virará a página de 54 anos de totalitarismo.

2024.12.09 – Louro de Carvalho

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