quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

“Acabaram-se os compadrios, os lóbis e as cunhas”

 

A asserção bombástica da Ministra da Cultura na Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, da Assembleia da República (AR), onde tentou justificar-se quanto à exoneração da presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), Francisca Carneiro Fernandes, só tem paralelo como o brado de António Guterres, pouco depois de tomar posse como chefe do XIII Governo Constitucional, em 1995: “No jobs for the boys!” E os “boys” continuaram e continuam.

Porém, a proclamação de Dalila Rodrigues é mais verrinosa, porque não se dirige apenas ao sistema vigente, ao arrepio da boa gestão pública e da ética política, mas visa diretamente o seu antecessor, que acusa de ter promovido o assalto ao poder no CCB, o que faz lembrar as acusações de assalto ao poder, da parte da direita política, no caso das comissões administrativas dos municípios e das comissões de gestão das escolas e de outros serviços públicos, alegadamente constituídas por elementos filocomunistas.   

Todos os governos, sobretudo, a partir de 1987, colocaram nos lugares de topo e intermédios (até os CAE – centros de área educativa), elementos ligados ao partido do poder. E as razões invocadas eram, quase invariavelmente, as mesmas: os anteriores titulares dos cargos eram incompetentes e os novos primavam por currículo exemplar de capacidades e de adequação ao cargo. E negava-se o que todos sabíamos ser a verdadeira motivação: a razão não era de político-partidária, mas de competência. Porém, as coincidências eram demasiadas! Verdade seja dita, excecionalmente, alguns intérpretes político-partidários, embora poucos, lá deixavam deslizar a língua para a verdade e sentenciavam que o governo tinha a legitimidade e a obrigação de colocar à frente dos serviços indivíduos que dessem garantia de executar o projeto político do governo.           

O governo atual, embora sustentado por uma base parlamentar das mais minoritárias da nossa História Constitucional, assumiu esta prática, com afã e com pressa. Todavia, os titulares das respetivas pastas ministeriais entraram numa de inovação nos motivos das diversas escolhas. A título de exemplo, a ministra da Administração Interna substituiu o diretor da Polícia de Segurança Pública (PSP), com o objetivo de proceder a uma reestruturação na corporação; a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social substituiu a provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) por causa da sua gestão errática e por não haver um plano de reestruturação; a ministra da Saúde forçou a demissão do diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde, exigindo-lhe um complexo relatório de avaliação do plano de reformas em curso e por não haver um plano para o verão que se avizinhava; e, agora, a ministra da Cultura acusa a ex-presidente do CCB de “falta de capacidade” para cumprir orientações da tutela e porque é preciso dar novo rumo à Cultura, sem deixar de fazer acusações de assalto ao poder por parte do anterior ministro.

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A 29 de novembro, a horas de completar um ano no cargo, Francisca Carneiro Fernandes, nomeada pelo ex-ministro Pedro Adão e Silva, por ter “experiência em gestão de equipamentos culturais e proximidade às artes performativas”, saiu da presidência do CCB, deixando para trás a missão de aproximar as artes plásticas das artes performativas. Dalila Rodrigues alegou a intenção de “imprimir nova orientação à gestão”, ou seja, “garantir que a fundação [CCB] assegura um serviço de âmbito nacional, participando num novo ciclo da vida cultural portuguesa”. Porém, 15 dias antes, desmentira a intenção de substituir a presidente do CCB.

Francisca Fernandes sucedeu a Elísio Summavielle, que presidiu ao CCB durante sete anos, tendo saído, há menos de um ano, da presidência da Performart, da “Ágora – Cultura e Desporto do Porto”, empresa municipal de gestão da programação cultural do Porto e da administração do Teatro Nacional de São João. E o novo responsável pela gestão do CCB é Nuno Vassallo e Silva, historiador de arte, que foi diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian e do Museu de São Roque e diretor-geral do Património Cultural, tendo ainda exercido as funções de secretário de Estado da Cultura no segundo governo de Passos Coelho.

O Ministério da Cultura discordou da orientação seguida pela anterior tutela do CCB, nomeadamente, a realização do festival FeLiCidade, no âmbito dos 50 anos do 25 de Abril, em vez de maior aposta nas comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões, questão omissa no comunicado, de três páginas, que anuncia a exoneração de Francisca Fernandes.

Os restantes membros do conselho de administração da Fundação CCB mantêm-se em funções, mas a vogal Madalena Reis concorreu a diretora do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).

A substituição do diretor do MNAA está também envolta em polémica, já que o atual responsável, Joaquim Caetano, não se apresentou a concurso, por discordar da orientação da Museus e Monumentos de Portugal – empresa pública que gere o património nacional museológico, que prevê a despromoção do que foi criado como sendo o único museu de âmbito verdadeiramente nacional. Também Simonetta Luz Afonso, presidente do júri que vai escolher o diretor do MNAA, se afastou do cargo de diretora do Instituto Português de Museus (IPM), por discordar da orientação da tutela. A atual administradora da Fundação Medeiros e Almeida assumiu ter desistido do cargo por não concordar com a “perda de estatuto do MNAA”. 

Mal chegou ao Ministério da Cultura, Dalila Rodrigues substituiu as lideranças da Museus e Monumentos de Portugal e do Instituto Património Cultural (IPC). Assim, Pedro Sobrado foi afastado da MMP e regressou à direção da administração do Teatro Nacional de São João (TNSJ), antes de completar um ano em funções, tendo sido substituído pelo ex-diretor do Museu do Azulejo, Alexandre Nobre Pais. À frente do IPC ficou João Soalheiro, cuja gestão mereceu uma investigação da Inspeção Geral das Atividades Culturais (IGAC), por alegada acusação de comportamentos autoritários, tendo o processo sido arquivado.

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Antes de Dalila Rodrigues entrar na AR, onde esteve a 11 de dezembro, a explicar aos deputados o rumo que pretende dar ao CCB, Francisca Fernandes deu a conhecer o despacho de impugnação do seu afastamento. E a ministra respondeu com acusações de “compadrio”, de “cunhas” e de “assalto ao poder”, da parte do seu antecessor, Pedro Adão e Silva.

A ex-presidente do CCB invoca “a ilegalidade da exoneração”, com o facto de a governante “alegar como fundamento a falta de capacidade da ex-presidente do CCB para garantir o cumprimento das orientações e objetivos transmitidos pela tutela”. E, sustenta, em comunicado à comunicação social, que o argumento invocado é totalmente falso, pois a ministra nunca lhe transmitiu “quaisquer indicações ou objetivos que possam assim dar-se como incumpridos”, sendo “impossível alegar falta de capacidade para cumprir orientações que nunca existiram”.

Também estranha que, “sendo a Fundação CCB, dirigida por um órgão colegial, a tutela tenha concluído pelo incumprimento de apenas um dos três membros do Conselho de Administração que estava em funções”.

O comunicado revela que a ex-presidente da Fundação CCB teve só duas reuniões com a ministra, explicando que “um dos encontros foi, a 28 de maio, com todo o Conselho de Administração, e uma segunda reunião com o todo o Conselho de Administração e o Conselho Diretivo, no dia 5 de setembro, com vista à apresentação deste último”. “Em nenhuma destas reuniões foram dadas quaisquer orientações escritas ou verbais”, conclui Francisca Fernandes.

O ambiente da comissão parlamentar foi de elevada tensão, com os deputados das várias bancadas a reagirem em permanência, quer às declarações de Dalila Rodrigues, quer a dos pares dos diferentes partidos. Foi Maria Begonha, deputada do Partido Socialista (PS), a começar, questionando a ministra da Cultura sobre o rumo que pretende dar ao CCB. E Dalila Rodrigues respondeu, dizendo que “acabou o tempo das cunhas e dos compadrios”, que resultaram do que disse ser um “assalto ao poder” efetuado pelo anterior ministro da Cultura.

Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda (BE), recordou as inúmeras manifestações de desconforto com o afastamento de Francisca Fernandes, ao que a governante retorquiu, afirmando que o CCB deve servir ao país e estar aberto a todas às comunidades, independentemente da sua geografia e grau de aproximação ao poder. Depois, explicitou que o CCB não pode programar para um “nicho”, cabendo à tutela ter uma palavra na orientação de um serviço, é público. “É difícil de entender esse desígnio para quem estiver de má vontade”, atirou.

“O trabalho que estava a ser realizado no CCB não correspondia ao desejado”, frisou a titular da pasta da Cultura, assegurando que, na reunião com a ex-presidente do CCB, esta não foi capaz de enunciar o plano estratégico para o centro cultural.

“Se a senhora deputada continuar a interromper-me, eu calo-me”, afirmou Dalila Rodrigues, cruzando os braços, a interromper o discurso à deputada Maria Begonha, que, ante o fulminante olhar da presidente da comissão, a socialista Edite Estrela, cessou os comentários que acompanhavam todas as declarações da ministra. “É fundamental garantir que haverá uma equipa com sentimento de missão”, garantiu Dalila Rodrigues, assumindo estar em causa a discordância da ministra, da nomeação urgente de Aida Tavares para a direção artística do CCB, sem concurso público, decisão de Francisca Fernandes que mereceu a discordância da vogal Madalena Reis.

Dalila Rodrigues explicou que está aberta a que o novo presidente, Nuno Vassallo e Silva, forme nova equipa, mas disse que os dois vogais cessam mandatos em março e que o novo presidente tomará posse em janeiro e que, por isso, não poderia ter afastado todos em simultâneo.

Quanto às manifestações de apoio a Francisca Fernandes, a ministra desvalorizou, dizendo que, na festa de Natal, a seguir à tomada de posse, em 2023, a ex-presidente do CCB anunciou um aumento salarial, o que pode colocar em risco a sustentabilidade da instituição. Mas, acrescentou Dalila Rodrigues, é “a melhor forma de se tornar popular entre as equipas”.

Filipa Pinto, deputada do Livre, clarificou que não foi aumento salarial, mas atualização da inflação prevista no orçamento do CCB, e desmentiu a ministra, ao dizer que, a 19 de novembro, havia sido enviado um plano de atividades, questionando que orientação tinha transmitido a ministra a Francisca Fernandes. Mas Dalila Rodrigues disse que o documento não foi por ela aprovado, classificando-o de “penoso, em alguns momentos”.

“O Partido Socialista deixou o país abandonado. Não há diálogo, não há compromisso, há uma cultura de exclusão”, acusou Dalila Rodrigues, insistindo na tese da “cunha e do compadrio” para salientar a relação do CCB com o anterior ministro da Cultura. E mencionou o anterior presidente Elísio Summavielle para dizer que foi afastado por ter recusado contratar Aida Tavares.

“Eu exijo-lhe respeito”, repetiu Dalila Rodrigues à socialista Maria Begonha. E Edite Estrela interveio para pacificar os ânimos, acrescentando que os comentários também vinham do social-democrata Carlos Reis e vincando que lhe cabe presidir ao funcionamento da comissão.

As diferenças ideológicas entre os deputados tornaram-se evidentes. Maria Begonha acusou Dalila Rodrigues de “hipocrisia” e disse que o PS considera necessário chamar Francisca Fernandes à AR para o “contraditório”. “Preocupa-me que se tente diabolizar essas administrações”, afirmou Joana Mortágua, citando a ligação de Dalila Rodrigues e Madalena Reis, vogal que se mantém em funções. “Gostaríamos que o CCB voltasse aos tempos dos ‘Dias da Música’ e à formação de públicos para a música clássica”, afirmou o deputado social-democrata Carlos Reis, recusando que o PSD tenha objeções às artes performativas.

Dalila Rodrigues distanciou-se dos partidos, afirmando-se independente, com o único compromisso (com o atual governo) de “ter boas políticas públicas”, pois serve o país, não um partido. Esquecendo que o governo é de partido, faz lembrar o político que foi ministro (um ano), primeiro-ministro (10 anos) e Presidente da República (10 anos) e que dizia que não era político.

Todos os nomeados, agora, para a Cultura passaram por concurso público?

2024.12.12 – Louro de Carvalho

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