Neste ano, o dia 1 de dezembro,
em que se comemora o 384.º aniversário da Restauração da independência de
Portugal, marca, em termos eclesiais, o início de novo ano litúrgico, o último –
assinalado com a letra C – de um ciclo de três anos. Neste, aos domingos, na liturgia
dominical, predomina a proclamação de trechos do Evangelho de Lucas, o 3.º
Evangelho.
Como é normal, também este
ano litúrgico se inicia com o Advento (de “adventus”, termo latino que
significa “vinda”), em que a Palavra de
Deus versa a “vinda do Senhor” e nos dá indicações para a sua preparação, na
certeza de que a libertação “está próxima”, o que nos deve encher de esperança
e de alegria e nos desafia à caminhada atenta e vigilante, na escuta de Deus e
na atenção ao próximo.
O profeta Jeremias, na primeira leitura (Jr 33,14-16), anuncia que o Deus
da Aliança garante a Judá que não esqueceu as suas promessas e que vai enviar
um “rebento” da família de David para concretizar a justiça e a paz com que o
Povo sonha.
Quando o futuro do Povo de Deus parece comprometido, Jeremias
garante a fidelidade de Javé às promessas de outrora “à casa de Israel e à casa
de Judá”. Judá tem futuro, porque Deus fará germinar “para David um rebento de
justiça que exercerá o direito e a justiça na Terra”. O termo hebraico “zemah”
(“rebento”), evocando a fecundidade e a vida em abundância, tem conotação
messiânica, pois é o nome tomado por Zacarias para designar o enviado de Deus (o
Messias) que há de vir derrotar o mal, salvar o seu Povo e inaugurar nova era de
vida e de paz infinda.
Deus assegura, pela palavra do profeta, que esse
rebento, o prometido descendente de David, será justo e que a sua tarefa
consistirá em assegurar a “justiça” e o “direito” (“mishpat” e “zedaqa”). A
dupla justiça/direito refere-se ao reto funcionamento dos tribunais, a
instituição responsável pela administração da justiça, que possibilitará a
correta ordem social (“zedaqa”), fundamento da paz, da prosperidade e da
harmonia para todo o tecido social de Judá. Sedecias, com políticas erráticas,
nem garantiu a justiça, nem assegurou a paz. Destruiu a coesão nacional e
arrastou a nação para a catástrofe. Ao invés, o rei que vai chegar restaurará a
justiça, restabelecerá a harmonia social, assegurará o respeito pelos direitos
dos pobres e transmitirá a abundância de vida e de salvação ao Povo de Deus. Então,
Jerusalém poderá viver tranquila, em total segurança; e chamará à cidade santa
“o Senhor é a nossa justiça” (“Javé zidqenû”), pois Deus viverá no meio dela,
assegurando aos seus habitantes vida e paz. Esta promessa, escutada em tempo de
angústia e de desolação, elimina o medo do presente e abre a janela de
esperança no horizonte do Povo.
***
No Evangelho
(Lc 21,25-28.34-36), Jesus, em
Jerusalém, num dos dias que precedem a sua prisão, condenação e morte na cruz,
fala aos discípulos do “dia do Senhor”, em que o mundo velho, prisioneiro do
egoísmo, da maldade e do pecado, cairá e dará lugar a um mundo novo. Esse dia
será, para os discípulos, o dia da libertação, o dia da suma alegria. Porém, enquanto
esperam esse dia, devem manter-se fiéis e vigilantes, escutando Deus e os seus
apelos, atentos às necessidades e sofrimentos dos outros homens e mulheres com
quem caminham na História da vida. Os cristãos são os homens e mulheres do
caminho em conjunto – sinodalidade.
Os últimos dias da vida terrena de Jesus foram
marcados por diversas controvérsias entre Jesus e os líderes judaicos. Depois
do gesto profético da purificação do templo, tornado “covil de ladrões” pela
cupidez dos negociantes, os sacerdotes, os doutores da Lei e os anciãos do povo
questionaram Jesus sobre a sua autoridade Jesus, que lhes respondeu com a
parábola dos vinhateiros homicidas, comparando-os a uns arrendatários de uma
vinha que sempre se recusaram a dar ao seu senhor os frutos que lhe deviam. Os
representantes do judaísmo oficial também discutiram com Jesus sobre o
pagamento do tributo a César e sobre a ressurreição dos mortos. Vai-se
clarificando, cada vez mais, a ideia de que a proposta de Jesus nunca será
acolhida pelas autoridades religiosas de Israel. A cruz está, pois, no horizonte
próximo de Jesus.
Num desses dias, ao retirar-se do templo para se
dirigir para o Monte das Oliveiras, em resposta ao comentário dos discípulos
sobre a beleza e a riqueza do templo, Jesus avisa que tudo o que estão a
contemplar e a admirar será destruído. Os discípulos, impressionados, pedem-lhe
explicações (“mestre, quando sucederá isso? E qual será o sinal de que estas
coisas estão para acontecer?” – Lc
21,7). Em resposta, Jesus deixa uma longa instrução, o “discurso escatológico”
(cf Lc 21,7-38).
Na versão lucana, o “discurso escatológico” refere
três momentos da História futura: a destruição de Jerusalém (concretizada no
ano 70, quando as tropas romanas, sob o comando de Tito, tomaram Jerusalém e
destruíram o templo), as vicissitudes que os discípulos enfrentarão no seu
caminho histórico e a vinda definitiva do Filho do Homem. Segundo Lucas, Jesus
recorre a imagens estereotipadas de que os pregadores escatológicos da época se
serviam, ao discorrerem sobre o fim dos tempos. O escopo de Lucas é transmitir
aos crentes – da década de 80 do século I e aos de todas as épocas – a força
para viverem o compromisso com Jesus nas dificuldades, incompreensões e perseguições
que a História os obrigará a enfrentar.
Depois de se referir à destruição de Jerusalém e aos
problemas que os discípulos encontrarão no seu caminho, Jesus fala do dia da
intervenção final de Deus na História dos homens, o dia em que o Filho do Homem
virá sobre “uma nuvem, com grande poder e glória”, e não como o menino envolto
em panos e reclinado na manjedoura.
O cenário dessa intervenção é composto com os
elementos que, em diversos textos do Antigo Testamento, são utilizados para falar
do “Dia do Senhor”: escurecimento do Sol, da Lua e das estrelas; temor,
angústia, desfalecimento e espanto dos homens. São elementos apropriados para
veicular a mensagem religiosa a transmitir. O escurecimento do Sol, da Lua e
das estrelas refere-se ao fim do “tempo humano” (marcado pelo ritmo do Sol e da
Lua) e ao início de um tempo novo, que é o eterno “hoje” de Deus; o “temor” do
homem é o “temor” que, no Antigo Testamento, está associado às intervenções de
Deus e a incomodidade que todo o homem sente quando o seu velho e cómodo
“espaço de conforto” desaparece e tem de enfrentar uma realidade nova; “o
rugido e a agitação do mar” sugerem o fim da ordem velha e o regresso da
criação ao caos inicial, quando Deus criou o universo. Não estamos ante uma
descrição pormenorizada do fim do Mundo, mas ante uma forma literária de
sugerir que a intervenção final de Deus na História humana e a vinda do “Filho
do Homem” sobre as nuvens serão o princípio de algo absolutamente novo, de um Mundo
totalmente renovado, de uma nova criação.
Segundo Jesus, o momento da intervenção definitiva de
Deus, o “Dia do Senhor”, será de grande alegria e de felicidade para todos os
filhos e filhas de Deus. A velha ordem do egoísmo, da violência, da arrogância,
da ganância, do pecado, da maldade será definitivamente vencida; e a Humanidade
reencontrar-se-á com a realidade de Deus em toda a sua plenitude. Jesus convida
os discípulos a viverem esse momento como o primeiro instante do tempo novo de
libertação e de graça: “Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e
levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima.” Sim, ver-nos-emos livres
das cadeias que nos amarram às velhas e transitórias realidades do Mundo, para
vivermos a gloriosa liberdade dos filhos de Deus.
E até lá, na perspetiva de Jesus, os discípulos não
podem viver de olhos exclusivamente postos no céu, num angelismo alienante,
isolados da realidade do Mundo, alheios ao compromisso com a construção do
Reino de Deus na Terra; e não podem viver preguiçosamente acomodados e
agarrados aos velhos hábitos e preconceitos, prisioneiros do egoísmo e dos
vícios, indiferentes à sorte dos irmãos. O que Jesus espera dos discípulos é
que caminhem pela História atentos e vigilantes, “orando em todo o tempo”.
“Vigiar” é viver atento ao que nos rodeia, estar preparado para fazer o que
deve ser feito, tomar nota dos desafios de Deus e não perder nenhuma
oportunidade de colaborar no projeto de Deus para o Mundo e para os homens. A
oração autêntica faz com que os discípulos se aproximem de Deus, se inteirem do
seu desígnio de Deus, escutem os seus apelos, vejam os acontecimentos do Mundo
com os olhos de Deus e ganhem força para viverem segundo Deus. É assim que os
verdadeiros discípulos preparam a vinda do Senhor.
***
Na segunda
leitura (1Ts 3,12 – 4,2),
Paulo convida os cristãos de Tessalónica – e os cristãos de todos os lugares e
épocas – a esperarem a vinda do Senhor, sem se deixarem tentar pela
mediocridade e pela acomodação. O amor fraterno, “uns para com os outros e para
com todos”, será a marca distintiva dos discípulos que esperam com fidelidade a
vinda de Jesus.
A Primeira Carta aos Tessalonicenses é, com toda a
probabilidade, o primeiro escrito do Novo Testamento. Apareceu na primavera-verão
do ano 50 ou do ano 51.
Os dois primeiros versículos do trecho em referência
encerram a primeira parte da Carta, mas os outros dois versículos já pertencem
à segunda parte. No conjunto, podem ser entendidos como uma espécie de voto”
pelo qual Paulo augura aos cristãos de Tessalónica que possam crescer, cada vez
mais, na fé e no compromisso com o Evangelho.
Paulo ficou verdadeiramente feliz
com as notícias que Timóteo lhe trouxe da comunidade cristã de Tessalónica.
Sentiu-se edificado e revigorado pela forma como os Tessalonicenses viviam a fé
e o compromisso cristão. Não obstante, formula um voto: que os cristãos de
Tessalónica façam por continuar a crescer no amor. Ora, o modelo do amor que
devem ter uns pelos outros é o amor que Deus tem por nós, e que os Tessalonicenses
conhecem pelo testemunho de Paulo. Esse amor deve ser recíproco (“uns para com
os outros”) e universal (“para com todos”). Esse é o caminho que leva à
santidade. É vivendo assim que se prepara convenientemente a vinda do Senhor
Jesus Cristo. Cristo, quando chegar, deve encontrá-los irrepreensíveis e
santos, dando uns aos outros o testemunho do amor. De resto, os cristãos de
Tessalónica devem ter consciência de que o caminho que são chamados a percorrer
ainda não está concluído. Paulo não tem dúvidas de que eles têm procurado,
genuinamente, agradar a Deus, mas é preciso “progredir sempre”, dando, cada dia,
mais um passo em frente e renovando a cada momento a opção por Deus e o compromisso
com o Evangelho. É deste modo que se caminha para a santificação, se prepara e
se espera a visita de Deus à nossa vida.
***
O Papa Francisco, antes da recitação
do Angelus com os peregrinos reunidos
na Praça de São Pedro, comentando este Evangelho, partiu da referência lucana
às convulsões cósmicas, à angústia e ao medo na Humanidade, para fazer
sobressair a palavra de esperança formulada por Jesus aos seus discípulos: “Tende
bom ânimo e levantai a cabeça, porque a libertação está para chegar até vós.”
Com efeito, a preocupação do Mestre é que os corações “não fiquem pesados”, mas
que “esperem, vigilantemente, a vinda do Filho do Homem”.
E o Pontífice aponta que muitos
contemporâneos de Jesus, confrontados com os acontecimentos catastróficos que veem
ao redor – perseguições, conflitos, calamidades naturais – são dominados pela
angústia e creem que o fim do Mundo está prestes a chegar, o que leva os seus
corações a ficarem “pesados de medo”. Porém, Jesus quer libertá-los das
ansiedades e das falsas convicções, indicando como estarem preparados no coração,
como lerem os acontecimentos do projeto de Deus, que opera a salvação nas circunstâncias
mais dramáticas da História. Por isso, sugere que olhem para o Céu, para
compreenderem as coisas da Terra: “Levantai-vos e erguei a cabeça!”
Também para nós é importante o conselho: “Não se
sobrecarreguem os vossos corações.” Todos nós, em tantos momentos da vida, nos
perguntamos: “Como ter um coração “leve”, um coração desperto, livre? Um
coração que não se deixa esmagar pela tristeza?” E a tristeza é má conselheira.
De facto, pode acontecer que as ansiedades, os medos e as preocupações com a
vida pessoal ou com tudo o que está a acontecer no Mundo pesem sobre nós como pedras
e nos levem ao desânimo. Se as preocupações pesam no coração e nos levam a
fechar-nos em nós mesmos, Jesus convida-nos a levantar a cabeça, a confiar no
seu amor que nos quer salvar e que se torna próximo em todas as situações da
nossa existência, para nos dar espaço.
Então, perguntemo-nos, como exorta o Papa: “O meu
coração está sobrecarregado pelo medo, pelas preocupações, pela ansiedade pelo
futuro? Sei observar os acontecimentos do quotidiano e as circunstâncias da História
com os olhos de Deus, na oração, com um horizonte mais amplo? Ou prefiro
deixar-me tocar pelo desânimo?” E invoquemos “a Virgem Maria, que, também nos momentos
de provação, Se mostrou pronta a acolher o projeto de Deus”.
***
O Advento acena-nos com as palavras proféticas da paz,
do direito e da justiça. E Jesus pretende qua a nossa justiça exceda a dos fariseus.
As palavras dos profetas que apontam o novo rebento antecipam a missão de Jesus,
que recusou a força dos exércitos para implantar no Mundo o reino da Verdade.
No entanto, o Mundo, 21 séculos depois, continua asfixiado e destruído pelas
guerras, o direito interno em cada país e o direito internacional são a bola de
trapos que uns atiram contra os outros e a justiça dos Estados privilegia os
ricos e poderosos, não se faz a favor dos pobres, mas contra os pobres e a
favor dos poderosos e ricos. E as guerras continuam e recrudescem.
Falhou o projeto de Deus? Erraram os profetas? Foi
inútil o sangue redentor de Cristo? Não.
A causa do falhanço está na atitude da Igreja ao longo
do tempo. Deixou eclipsar, tantas vezes, o ímpeto reformista, que deve ser
permanente, para se envolver em guerras e lutas pelo poder, substituindo-se aos
Estados, deu as mãos aos ricos e poderosos e esqueceu os pobres; de perseguida
passou, tantas vezes, a perseguidora; em vez de servir, aproveitou-se do seu
estatuto para mandar e quis reinar à maneira mundana; em vez da tolerância do
diálogo e da procura da verdade, assumiu-se como senhora e dona da verdade; em
vez de discípula de Cristo, pensou em ser mestra dos homens, substituindo-se a
Cristo.
Por isso, a Igreja – laicado e hierarquia – precisa de
uma eminentíssima, urgente e permanente reforma de doutrina (não da verdade: não
se reforma Cristo, a verdade suprema) e dos costumes. E é necessário que todos
e cada um se empenhem nessa reforma de vida.
2024.12.01 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário