O Natal é festa de Deus. Com efeito, a encarnação do Verbo de Deus é a
manifestação jubilosa do Deus que Se expande no ser humano, por Si criado à sua
imagem e semelhança. Todavia, as circunstâncias do Mundo, como a desatenção e
as indiferenças dos homens ou a necessidade de cumprir os imperativos – ora
justos, ora caprichosos – das leis humanas – ditaram que o nascimento do Menino
de Belém acontecesse na pobreza de um presépio, porque não havia lugar, na hospedaria,
para os pais e, por consequência para Ele.
E, enquanto os pastores, gente sofrida, avisados pelo anjo (e ouvido o coro
angélico), correram a Belém e os magos – estrangeiros estudiosos – se puseram a
caminho e chegaram tarde, mas a tempo, a sanha herodiana ditou a decisão da
morte do recém-nascido. E, embora os pais, avisados pelo anjo, tivessem fugido
com Ele, para o Egito, a mortandade impendeu sobre os outros meninos de Belém e
arredores.
E a saga da rejeição continuou até à sua morte pela cruz. Enfim, veio para
o que era seu, mas os seus não O receberam. Não obstante, a ressurreição
validou a finalidade redentora da cruz e foi inaugurada uma nova era para a
Humanidade, tantas vezes desfigurada pelos erros humanos, que sepultam tantas
pessoas na pobreza e no sofrimento de tantas modalidades e esmagam, tantos
povos pela opressão e pelo esbulho dos seus recursos.
O Deus sofrido, em razão da maldade humana, transparece na Bíblia e na
doutrina das Igrejas cristãs. E, para o sofrimento dos seres humanos, convoquei
dois textos poéticos (um de Bocage e outro de Manuel Alegre). Espero que nem um
nem outro levem a mal.
Natal Se considero o
triste abatimento Mas súbito me diz o pensamento, Vejo na palha o Redentor chorando, Vejo-O morrer depois, ó pecadores, Manuel Maria Barbosa du Bocage |
Natal agora Neste solstício de inverno ele vai
nascer algures no Mundo entre
ruínas no lugar do não ser ele vai
nascer deitado nas palhinhas entre bombas naufrágios minas cada mulher que foge o traz
no ventre o mesmo coração um só
destino algures no mundo ele vai ser em todos os meninos o
menino. Manuel Alegre |
***
Não serão os melhores poemas de Natal, mas evidenciam o sofrimento humano,
quer o do indivíduo que, em vez de realizar os seus legítimos sonhos, sente a agrura
da vida e até o desespero, quer o daquelas pessoas se sentem a necessidade da
fuga à guerra, à fome e à peste, as quais agora assumem novas vertentes, cada
vez mais iníquas.
No primeiro dos poemas, o poeta sente-se abatido pela desgraça, despedaçado
pela desesperação e fragilizado pelo sofrimento. Porém, a lembrança do Natal
livra-o do sepultamento no fatalismo, pois Jesus, “que trouxe ao Mundo a Lei da Graça” sofreu, nascendo “num
vil presepe”.
E Bocage começa por, em ambiente presepial, ver o Redentor a chorar (Ele,
efetivamente, veio, não para ficar no presépio, mas para nos redimir), visualiza
os pastores prostrados e vislumbra a estrela a guiar os magos (que a tradição
chama reis). Por fim, desligando-se do presépio, transporta-se para o Calvário
a ver o Cristo nascido em Belém morrendo pelos pecadores, que somos nós. E a
apóstrofe que gravita em torno do “ó pecadores”
fá-lo passar à adoração e a tomar como favores os castigos do Céu.
Por seu
turno, Manuel Alegre fixa-se no Natal de agora. É no solstício de inverno que o
Menino nasce, mas pode ser noutro momento do ano. Porém, o inverno está aqui
pela antonomásia da escuridão, do abandono, do sofrimento, das condições sub-humanas.
Com efeito,
hoje, o menino, que nem tem rosto, nem nome, nascerá em lugar incógnito (“algures”)
no Mundo de ruínas e num contexto de não reconhecimento da dignidade humana.
Tantos seres humanos a quem não se reconhece o estatuto de pessoa (“vai nascer …
no lugar do não ser)!
Vai ficar
deitado, não em palhinhas das cerealíferas, mas nas palhinhas das bombas, das
minas (são as guerras a invadir diversos territórios e a perpetrar autênticos
genocídios, porque os outros são marginais, criminosos e terroristas) e dos naufrágios
(mormente os resultantes da migração forçada e explorada por oportunistas do
dinheiro proveniente da desgraça alheia).
E o poeta,
deixando em aberto qualquer outra interpretação, sublinha o sofrimento da mulher
(das muitas mulheres) que tem de fugir com o filho no ventre – é “o mesmo
coração um só destino”, mas para colocar o seu menino entre os outros meninos.
Talvez sem
o querer dizer, está subjacente o teor do texto evangélico, segundo o qual
Jesus Cristo Se identifica naqueles que sofrem e, obviamente, nas crianças para
quem a sorte se tornou em infortúnio. E elas devem ter o berço e o acolhimento que
Jesus não teve. Têm direito a isso!
***
Por fim,
penso que é de refletir na pregação natalícia do Papa São Leão Magno sob o tema
“O Natal do Senhor é o Natal da Paz”:
“O estado de infância, que o Filho de Deus
assumiu, sem considerá-la indigna da sua grandeza, foi-se desenvolvendo com a
idade até chegar ao estado de homem perfeito e, tendo-se consumado o triunfo da
sua paixão e ressurreição, todas as ações próprias do seu estado de
aniquilamento que aceitou por nós tiveram o seu fim e pertencem ao passado.
Porém, a festa de hoje renova, para nós, os primeiros instantes da vida sagrada
de Jesus, nascido da Virgem Maria. E, enquanto adoramos o nascimento de nosso
Salvador, celebramos também o nosso nascimento.
Efetivamente,
a geração de Cristo é a origem do povo cristão; o Natal da Cabeça [da Igreja –
Cristo] é também o natal do Corpo [Igreja, povo de Deus].
Embora cada
um tenha sido chamado num momento determinado para fazer parte do povo do
Senhor, e todos os filhos da Igreja sejam diversos na sucessão dos tempos, a
totalidade dos fiéis, saída da fonte batismal, crucificada com Cristo na sua
Paixão, ressuscitada na sua Ressurreição e colocada à direita do Pai na sua
Ascensão, também nasceu com ele neste Natal.
Todo o homem
que, em qualquer parte do Mundo, acredita e é regenerado em Cristo, liberta-se
do vínculo do pecado original e, renascendo, torna-se um homem novo. Já não
pertence à descendência do seu pai segundo a carne, mas à linhagem do Salvador,
que Se fez Filho do homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus. Se Ele
não tivesse descido até nós na humildade da natureza humana, ninguém poderia,
por seus próprios méritos, chegar até Ele.
Por isso, a
grandeza desse dom exige de nós uma reverência digna do seu valor. Pois, como
nos ensina o santo Apóstolo, nós não recebemos o espírito do mundo,
mas recebemos o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos os dons da graça
que Deus nos concedeu (1Cor
2,12). O único modo de honrar dignamente o Senhor é oferecer-Lhe o que Ele
mesmo nos deu.
Ora, no
tesouro das liberalidades de Deus, que podemos encontrar de mais próprio para
celebrar esta festa do que a paz, que o canto dos anjos anunciou, em primeiro
lugar, no nascimento do Senhor? É a paz que gera os filhos de Deus e alimenta o
amor; ela é a mãe da unidade, o repouso dos bem-aventurados e a morada da
eternidade; a sua função própria e o seu benefício especial é unir a Deus os
que ela separa do Mundo.
Assim,
aqueles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo
1,13) ofereçam ao Pai a concórdia dos filhos que amam a paz, e todos os membros
da família adotiva de Deus se encontrem naquele que é o Primogénito da nova
criação, que não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que O
enviou. Pois a graça do Pai não adotou como herdeiros pessoas que vivem
separadas pela discórdia ou oposição, mas unidas nos mesmos sentimentos e no
mesmo amor. É preciso que tenham um coração unânime os que foram recriados
segundo a mesma imagem. O Natal do Senhor é o natal da paz. Como diz o
Apóstolo, Cristo é a nossa paz, ele que de dois povos fez um só (cf
Ef 2,14); judeus ou gentios, num
só Espírito, temos acesso junto ao Pai (Ef 2,18).”
***
O Natal
leva-nos a tomar consciência da nossa dignidade de seres humanos e de cristãos.
São Leão Magno dá testemunho dessa realidade, com o apelo: “Reconhece, ó
cristão, a tua dignidade!”
“Hoje, amados
filhos, nasceu o nosso Salvador. Alegremo-nos. Não pode haver tristeza no dia
em que nasce a vida; uma vida que, dissipando o temor da morte, nos enche de
alegria, com a promessa da eternidade.
Ninguém
está excluído da participação nesta felicidade. A causa da alegria é comum a
todos, porque Nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado
ninguém isento de culpa, veio libertar a todos. Exulte o justo, porque se
aproxima da vitória; rejubile o pecador, porque lhe é oferecido o perdão; reanime-se
o pagão, porque é chamado à vida.
Quando
chegou a plenitude dos tempos, fixada pelos insondáveis desígnios divinos, o
Filho de Deus assumiu a natureza do homem para reconciliá-lo com o seu criador,
de modo que o demónio, autor da morte, fosse vencido pela mesma natureza que
antes vencera.
Eis porque,
no nascimento do Senhor, os anjos cantam jubilosos: Glória a deus nas
alturas; e anunciam: Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14). Eles veem a Jerusalém celeste
ser formada de todas as nações do Mundo. Diante dessa obra inexprimível do amor
divino, como não devem alegrar-se os homens, em sua pequenez, quando os anjos,
em sua grandeza, assim se rejubilam?
Amados
filhos, demos graças a Deus Pai, por seu Filho, no Espírito Santo; pois, na
imensa misericórdia com que nos amou, compadeceu-se de nós. E, quando
estávamos mortos por causa das nossas faltas, Ele deu-nos a vida com Cristo (Ef 2,5) para que fôssemos Nele uma nova
criação, nova obra de suas mãos. Despojemo-nos, portanto, do velho homem com seus
atos; e, tendo sido admitidos a participar do nascimento de Cristo, renunciemos
às obras da carne.
Toma
consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza
divina, não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição.
Lembra-te de que cabeça e de corpo és membro. Recorda-te que foste arrancado do
poder das trevas e levado para a luz e o reino de Deus. Pelo sacramento do
batismo te tornaste templo do Espírito Santo. Não expulses com más ações tão
grande hóspede, não recaias sob o jugo do demónio, porque o preço da tua
salvação é o sangue de cristo.”
2024.12.31 – Louro de
Carvalho
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