terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Natal: festa sofrida de Deus ao encontro do homem que sofre

 

O Natal é festa de Deus. Com efeito, a encarnação do Verbo de Deus é a manifestação jubilosa do Deus que Se expande no ser humano, por Si criado à sua imagem e semelhança. Todavia, as circunstâncias do Mundo, como a desatenção e as indiferenças dos homens ou a necessidade de cumprir os imperativos – ora justos, ora caprichosos – das leis humanas – ditaram que o nascimento do Menino de Belém acontecesse na pobreza de um presépio, porque não havia lugar, na hospedaria, para os pais e, por consequência para Ele.

E, enquanto os pastores, gente sofrida, avisados pelo anjo (e ouvido o coro angélico), correram a Belém e os magos – estrangeiros estudiosos – se puseram a caminho e chegaram tarde, mas a tempo, a sanha herodiana ditou a decisão da morte do recém-nascido. E, embora os pais, avisados pelo anjo, tivessem fugido com Ele, para o Egito, a mortandade impendeu sobre os outros meninos de Belém e arredores.   

E a saga da rejeição continuou até à sua morte pela cruz. Enfim, veio para o que era seu, mas os seus não O receberam. Não obstante, a ressurreição validou a finalidade redentora da cruz e foi inaugurada uma nova era para a Humanidade, tantas vezes desfigurada pelos erros humanos, que sepultam tantas pessoas na pobreza e no sofrimento de tantas modalidades e esmagam, tantos povos pela opressão e pelo esbulho dos seus recursos.

O Deus sofrido, em razão da maldade humana, transparece na Bíblia e na doutrina das Igrejas cristãs. E, para o sofrimento dos seres humanos, convoquei dois textos poéticos (um de Bocage e outro de Manuel Alegre). Espero que nem um nem outro levem a mal.

Natal

Se considero o triste abatimento
Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.

Mas súbito me diz o pensamento,
Para aplacar-me a dor que me traspassa,
Que Este que trouxe ao Mundo a Lei da Graça,
Teve num vil presepe o nascimento.

Vejo na palha o Redentor chorando,
Ao lado a Mãe, prostrados os pastores,
A milagrosa estrela os reis guiando.

Vejo-O morrer depois, ó pecadores,
Por nós, e fecho os olhos, adorando
Os castigos do Céu como favores.

Manuel Maria Barbosa du Bocage

Natal agora

Neste solstício de inverno ele vai nascer

algures no Mundo entre ruínas

no lugar do não ser ele vai nascer

deitado nas palhinhas entre

bombas naufrágios minas

cada mulher que foge o traz no ventre

o mesmo coração um só destino

algures no mundo ele vai ser

em todos os meninos o menino.

 

Manuel Alegre

 

 

***

Não serão os melhores poemas de Natal, mas evidenciam o sofrimento humano, quer o do indivíduo que, em vez de realizar os seus legítimos sonhos, sente a agrura da vida e até o desespero, quer o daquelas pessoas se sentem a necessidade da fuga à guerra, à fome e à peste, as quais agora assumem novas vertentes, cada vez mais iníquas.

No primeiro dos poemas, o poeta sente-se abatido pela desgraça, despedaçado pela desesperação e fragilizado pelo sofrimento. Porém, a lembrança do Natal livra-o do sepultamento no fatalismo, pois Jesus, “que trouxe ao Mundo a Lei da Graça” sofreu, nascendo “num vil presepe”.

E Bocage começa por, em ambiente presepial, ver o Redentor a chorar (Ele, efetivamente, veio, não para ficar no presépio, mas para nos redimir), visualiza os pastores prostrados e vislumbra a estrela a guiar os magos (que a tradição chama reis). Por fim, desligando-se do presépio, transporta-se para o Calvário a ver o Cristo nascido em Belém morrendo pelos pecadores, que somos nós. E a apóstrofe que gravita em torno do “ó pecadores” fá-lo passar à adoração e a tomar como favores os castigos do Céu.

Por seu turno, Manuel Alegre fixa-se no Natal de agora. É no solstício de inverno que o Menino nasce, mas pode ser noutro momento do ano. Porém, o inverno está aqui pela antonomásia da escuridão, do abandono, do sofrimento, das condições sub-humanas.

Com efeito, hoje, o menino, que nem tem rosto, nem nome, nascerá em lugar incógnito (“algures”) no Mundo de ruínas e num contexto de não reconhecimento da dignidade humana. Tantos seres humanos a quem não se reconhece o estatuto de pessoa (“vai nascer … no lugar do não ser)!

Vai ficar deitado, não em palhinhas das cerealíferas, mas nas palhinhas das bombas, das minas (são as guerras a invadir diversos territórios e a perpetrar autênticos genocídios, porque os outros são marginais, criminosos e terroristas) e dos naufrágios (mormente os resultantes da migração forçada e explorada por oportunistas do dinheiro proveniente da desgraça alheia).

E o poeta, deixando em aberto qualquer outra interpretação, sublinha o sofrimento da mulher (das muitas mulheres) que tem de fugir com o filho no ventre – é “o mesmo coração um só destino”, mas para colocar o seu menino entre os outros meninos.

Talvez sem o querer dizer, está subjacente o teor do texto evangélico, segundo o qual Jesus Cristo Se identifica naqueles que sofrem e, obviamente, nas crianças para quem a sorte se tornou em infortúnio. E elas devem ter o berço e o acolhimento que Jesus não teve. Têm direito a isso!   

***

Por fim, penso que é de refletir na pregação natalícia do Papa São Leão Magno sob o tema “O Natal do Senhor é o Natal da Paz”:

 “O estado de infância, que o Filho de Deus assumiu, sem considerá-la indigna da sua grandeza, foi-se desenvolvendo com a idade até chegar ao estado de homem perfeito e, tendo-se consumado o triunfo da sua paixão e ressurreição, todas as ações próprias do seu estado de aniquilamento que aceitou por nós tiveram o seu fim e pertencem ao passado. Porém, a festa de hoje renova, para nós, os primeiros instantes da vida sagrada de Jesus, nascido da Virgem Maria. E, enquanto adoramos o nascimento de nosso Salvador, celebramos também o nosso nascimento.

Efetivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão; o Natal da Cabeça [da Igreja – Cristo] é também o natal do Corpo [Igreja, povo de Deus].

Embora cada um tenha sido chamado num momento determinado para fazer parte do povo do Senhor, e todos os filhos da Igreja sejam diversos na sucessão dos tempos, a totalidade dos fiéis, saída da fonte batismal, crucificada com Cristo na sua Paixão, ressuscitada na sua Ressurreição e colocada à direita do Pai na sua Ascensão, também nasceu com ele neste Natal.

Todo o homem que, em qualquer parte do Mundo, acredita e é regenerado em Cristo, liberta-se do vínculo do pecado original e, renascendo, torna-se um homem novo. Já não pertence à descendência do seu pai segundo a carne, mas à linhagem do Salvador, que Se fez Filho do homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus. Se Ele não tivesse descido até nós na humildade da natureza humana, ninguém poderia, por seus próprios méritos, chegar até Ele.

Por isso, a grandeza desse dom exige de nós uma reverência digna do seu valor. Pois, como nos ensina o santo Apóstolo, nós não recebemos o espírito do mundo, mas recebemos o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos os dons da graça que Deus nos concedeu (1Cor 2,12). O único modo de honrar dignamente o Senhor é oferecer-Lhe o que Ele mesmo nos deu.

Ora, no tesouro das liberalidades de Deus, que podemos encontrar de mais próprio para celebrar esta festa do que a paz, que o canto dos anjos anunciou, em primeiro lugar, no nascimento do Senhor? É a paz que gera os filhos de Deus e alimenta o amor; ela é a mãe da unidade, o repouso dos bem-aventurados e a morada da eternidade; a sua função própria e o seu benefício especial é unir a Deus os que ela separa do Mundo.

Assim, aqueles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1,13) ofereçam ao Pai a concórdia dos filhos que amam a paz, e todos os membros da família adotiva de Deus se encontrem naquele que é o Primogénito da nova criação, que não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que O enviou. Pois a graça do Pai não adotou como herdeiros pessoas que vivem separadas pela discórdia ou oposição, mas unidas nos mesmos sentimentos e no mesmo amor. É preciso que tenham um coração unânime os que foram recriados segundo a mesma imagem. O Natal do Senhor é o natal da paz. Como diz o Apóstolo, Cristo é a nossa paz, ele que de dois povos fez um só (cf Ef 2,14); judeus ou gentios, num só Espírito, temos acesso junto ao Pai (Ef 2,18).”

***

O Natal leva-nos a tomar consciência da nossa dignidade de seres humanos e de cristãos. São Leão Magno dá testemunho dessa realidade, com o apelo: “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade!”

“Hoje, amados filhos, nasceu o nosso Salvador. Alegremo-nos. Não pode haver tristeza no dia em que nasce a vida; uma vida que, dissipando o temor da morte, nos enche de alegria, com a promessa da eternidade.

Ninguém está excluído da participação nesta felicidade. A causa da alegria é comum a todos, porque Nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado ninguém isento de culpa, veio libertar a todos. Exulte o justo, porque se aproxima da vitória; rejubile o pecador, porque lhe é oferecido o perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida.

Quando chegou a plenitude dos tempos, fixada pelos insondáveis desígnios divinos, o Filho de Deus assumiu a natureza do homem para reconciliá-lo com o seu criador, de modo que o demónio, autor da morte, fosse vencido pela mesma natureza que antes vencera.

Eis porque, no nascimento do Senhor, os anjos cantam jubilosos: Glória a deus nas alturas; e anunciam: Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14). Eles veem a Jerusalém celeste ser formada de todas as nações do Mundo. Diante dessa obra inexprimível do amor divino, como não devem alegrar-se os homens, em sua pequenez, quando os anjos, em sua grandeza, assim se rejubilam?

Amados filhos, demos graças a Deus Pai, por seu Filho, no Espírito Santo; pois, na imensa misericórdia com que nos amou, compadeceu-se de nós. E, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, Ele deu-nos a vida com Cristo (Ef 2,5) para que fôssemos Nele uma nova criação, nova obra de suas mãos. Despojemo-nos, portanto, do velho homem com seus atos; e, tendo sido admitidos a participar do nascimento de Cristo, renunciemos às obras da carne.

Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza divina, não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição. Lembra-te de que cabeça e de corpo és membro. Recorda-te que foste arrancado do poder das trevas e levado para a luz e o reino de Deus. Pelo sacramento do batismo te tornaste templo do Espírito Santo. Não expulses com más ações tão grande hóspede, não recaias sob o jugo do demónio, porque o preço da tua salvação é o sangue de cristo.”

2024.12.31 – Louro de Carvalho

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