quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Reabriu ao culto a catedral de Notre Dame, “mais bela do que nunca”

 

Cinco anos após o incêndio iniciado depois das 18h00 de 15 de abril de 2019, segunda-feira da Semana Santa, quase destruindo a catedral de Notre-Dame – no dizer do historiador Jacques Hillairet, “la maison du People” (a casa do povo) –, o templo reabriu ao culto, a 7 de dezembro, por força de projecto de hercúleo restauro, que uniu arquitetos, cientistas, artesãos especializados e trabalhadores indiferenciados (ao todo, mais de dois mil, de mais de 250 empresas), o que suscitou generalizado coro de emoções.

Ao longo de seis meses, serão celebradas missas comemorativas, incluindo um serviço dedicado aos bombeiros e aos trabalhadores que “ressuscitaram” Notre-Dame das cinzas.

Além de ícone religioso e símbolo cultural, Notre-Dame é também elo da indústria turística de Paris. Empresas como a Fat Tire Tours sempre acolheram muitos pedidos turísticos para visita a Notre-Dame. As visitas guiadas às torres da catedral, que passam ao lado das filas de entrada, com visitas a outros monumentos nos arredores, sempre foram uma das suas ofertas mais populares. E a Context Travel, empresa B Corp certificada, cuja oferta inclui visitas culturais guiadas por especialistas em mais de 60 cidades, planeia melhorar, de modo inovador, a experiência tradicional, após a reabertura. Com efeito, está apostada numa oferta híbrida: visita guiada ao exterior, combinada com áudio-guia digital narrado por um especialista académico. Graças ao áudio-guia, os visitantes podem explorar o majestoso interior da catedral ao seu próprio ritmo – e fora das horas de maior congestionamento, se assim o desejarem – sendo, acompanhados pela voz de um especialista.

É impressionante o número previsto de visitantes. Antes do incêndio, o monumento medievo recebia cerca de 12 milhões de pessoas, por ano. Após a reabertura, o número aumentará para 15 milhões. Os diversos estudos indicam que gostariam de visitar Notre-Dame, todos os dias, cerca de 40 mil pessoas, o dobro dos visitantes diários de Versalhes ou do Louvre. E Notre-Dame não é tão grande. A entrada em Notre-Dame sempre foi gratuita. Agora, o visitante deve reservar horário, dias antes da visita. Pode aceder à catedral sem bilhete, mas tem de esperar na fila, duas a três horas. Nos primeiros seis meses, o acesso à catedral estará limitado a indivíduos, não sendo permitidas visitas de grupo. Além disso, a catedral vai lançar uma aplicação para telemóvel com informação didática em três idiomas (no futuro, serão seis).

O fogo destruiu o pináculo, que caiu e dois terços do telhado e danificou o interior da igreja, incluindo o sótão, as abóbodas e o teto. O teto em chumbo derreteu e as chamas consumiram as vigas em carvalho do teto. Porém, nunca na sua História de 860 anos, a catedral foi completamente restaurada, pois a construção inicial demorou 170 anos, entre a primeira e a última pedra, tendo o edifício já sofrido alterações e escurecido em alguns sítios. Agora, o edifício está restaurado, com luminosidade excecional. A luz gloriosa – ampliada por altíssimas abóbodas e vitrais – é fundamental para o estilo arquitetónico gótico, uma inovação do século XII copiada em toda a Europa. E, depois de ter sido esfregada a fuligem e sujidade acumuladas ao longo dos séculos, o calcário brilhará, acentuado pelo ocre original que foi reaplicado nas abóbadas de cruzaria. Efetivamente, tudo foi reavivado, desde os afrescos e o pavimento em xadrez, aos sinos, que foram removidos para serem limpos e restaurados na fundição normanda onde foram fundidos originalmente. E o novo sistema de iluminação de alta tecnologia contribui para o esplendor, pois tem instalado um conjunto programável de 1550 focos LED, cujos tons e intensidades variarão, consoante a época do ano e o serviço a decorrer na catedral, “um espaço vivo”.

O novo circuito de visitas criará o que o reitor Olivier Ribadeau Dumas chama “coerência”, com dimensão educativa. Ao entrar pela porta central do Juízo Final, os visitantes deslocar-se-ão em sentido horário, observando pinturas e esculturas que retratam episódios do Antigo Testamento e cenas cronológicas de vida de Cristo, seguidas da Ressurreição. O percurso, de caráter simbólico, guia o visitante “da escuridão do Norte para a luz do Sul”. O ponto alto é a Coroa de Espinhos, preciosa relíquia que estava guardada na sala do Tesouro e, agora, fica exposta no novo relicário desenhado por Sylvain Dubuisson e alojado na capela axial.

Notre-Dame tem mostrado a evolução das artes decorativas, ao longo da História. A rica coleção de pinturas, tapeçarias e objets d’art foi alvo de minuciosos restauros. Por exemplo, o tapete cerimonial do coro – encomendado por Charles X, no século XIX, e o maior tecido em França, até então – foi restaurado na Manufacture des Gobelins, histórica fábrica de tapetes pertencente ao Mobilier National (depósito nacional de mobiliário). Como os carpinteiros e os pedreiros que trabalharam na catedral em si, estes artesãos perpetuam um multissecular savoir-faire .

A intercambiante sucessão de presenças artísticas e arquitetónicas é exemplificada pela enorme cruz em ouro fabricada por Marc Couturier e instalada em 1996, erguendo-se sobre a pietá rodeada por estátuas de Luís XIII e de Luís XIV, do século XIX. E o cenário de fundo, a contemplar este conjunto, é arquitetura do século XII.

A par destes tesouros históricos, os visitantes admirarão criações de artistas contemporâneos. O mobiliário litúrgico, concebido pelo designer Guillaume Bardet, inclui a fonte batismal, o altar e a cathedra do arcebispo. Dos vários concorrentes ao concurso de design, lançado pela arquidiocese, Bardet foi o único a propor bronze, para criar acentuado contraste com a pedra.

Desenhadas por Ionna Vautrin, as 1500 novas cadeiras foram fabricadas na oficina Bosc, na região de Landes. O carvalho reflete a floresta do telhado da catedral e as costas baixas tornam as cadeiras menos distrativas, sustentando o arcebispo de Paris que são confortáveis, o que é bom num templo, pois gostamos de nos sentar e de meditar.

A criação contemporânea também estará evidente no programa especial de concertos sazonais. Foi pedido a compositores famosos a criação de música original para comemorar a reabertura, incluindo Thierry Escaich, que prepara um Te Deum a interpretar em junho de 2025.

Porém, a construção do exterior da catedral continuará. Com efeito, a cidade está a investir cerca de 50 milhões de euros num projeto para criar aproximadamente dois metros quadrados de espaço verde numa zona amiga dos peões. Numa conferência de imprensa, em outubro, no Hotel de Ville (câmara municipal), a presidente da câmara, Anne Hidalgo, explicou o objetivo de “mostrar melhor o legado e de responder aos desafios causados pelas alterações climáticas”. E o arquiteto paisagista belga Bas Smets venceu o concurso internacional para redesenhar a envolvente da catedral, incluindo a criação de um microclima, utilizando vegetação e um elemento aquático. Com dimensões semelhantes ao interior, o adro em calcário será redesenhado como clareira entre as árvores – com mais 160 árvores – para dar sombra no verão.

O que foi, outrora, um parque de estacionamento subterrâneo será um passeio coberto, a lembrar as famosas passagens do século XIX. Também haverá um centro de visitantes, com livraria, casas de banho e café. Acima de tudo, haverá uma ligação direta ao rio Sena e à cripta arqueológica (menos conhecida) que contém vestígios galo-romanos descobertos nas escavações da Île de la Cité – o coração histórico de Paris. O tráfego automóvel será reduzido na rua que atravessa a ilha frente à catedral, ficando limitado a autocarros, a táxis e a veículos de residentes.

Acima de tudo, o projeto – a arrancar no outono de 2025 e cuja conclusão da primeira fase está prevista para 2027 – melhorará o acolhimento ao visitante. Guillaume Normand, vice-reitor da catedral, equipara-o a uma melhor experiência espiritual, sugerindo um momento transformador no interior da catedral. E, assim, no ponto de partida de todas as estradas francesas, rumo a outras cidades, este adro será restaurado como local de encontro para parisienses e turistas, um centro de convívio na ilha do Sena, onde Paris nasceu. E Notre-Dame – que era lugar onde se libertavam servos, se organizavam banquetes, os pobres encontravam refúgio, eram redigidos contratos e concedidas oferendas, antes de partir em viagem – será devolvida ao povo.

***

Há mais de 800 anos que Notre-Dame se encontra no centro da vida francesa e é o palco de eventos históricos, tanto religiosos como seculares. Em 1239, o rei Luís IX ou São Luís, entregou a Coroa de Espinhos de Jesus à catedral. Em 1944, enquanto balas alemãs eram disparadas em todas as direções, o general Charles de Gaulle assistiu ali à missa para comemorar a libertação de Paris. E Notre-Dame escapou praticamente ilesa às bombas e aos incêndios que assolaram outras catedrais. Uma ilha de estabilidade no mar de instabilidade tornou-se um dos monumentos mais visitados do Mundo e um local sagrado para milhões de pessoas.

Nunca houve dúvidas de que Notre-Dame seria reconstruída, mas houve-as sobre a forma que iria assumir. O presidente francês, Emmanuel Macron, vincando que a catedral seria restaurada, “mais bela do que nunca”, estabeleceu o ambicioso objetivo de concluir as obras até 2024, financiadas com os 846 milhões de euros de doações recebidas após o acidente. E sugeriu fazer algo estruturalmente novo. Os arquitetos apresentaram ideias rebuscadas como um telhado de vidro ou um pináculo de cristal. Ficaram horrorizados os conservacionistas, incluindo Philippe Villeneuve, o arquiteto-chefe dos monumentos históricos, que já estava a renovar outras partes de Notre-Dame, aquando do incêndio. Acrescentar um pináculo moderno seria como fazer rinoplastia à Mona Lisa. Já restaurar Notre-Dame tal como dantes, com calcário, carvalho e chumbo, seria, segundo o historiador da arquitetura Jean-Michel Leniaud, ato catártico – uma forma de limpar a memória sombria daquela noite e lamentar a perda das estruturas originais. E Notre-Dame foi reconstruída como era antes do incêndio e como fora deixada no século XIX por Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, pioneiro do restauro.

Porém, qualquer pessoa que a tenha visitado achar-lhe-á o interior transfigurado. Paredes, janelas com vitrais, pinturas e esculturas foram limpas e restauradas, em simultâneo, pela primeira vez, desde o século XIX. E, embora o edifício seja propriedade do Estado, que o gere, enquanto monumento histórico protegido, parte do mobiliário interior gravemente danificado não era histórico e pertencia à arquidiocese de Paris. O clero procedeu à redecoração completa. O custo foi pequeno, comparado com o restauro geral, mas terá grande efeito na experiência dos visitantes.

Numa fundição no vale do Rhône, sob a batuta de Bardet, que optou pelo bronze e por formas minimalistas, simples e imutáveis, para evocar a ideia de intemporalidade, na sala da fornalha, dois trabalhadores decantavam bronze fundido, embranquecido pela alta temperatura, numa série de moldes. Secções incompletas da nova pia batismal estavam dispostas no chão. O altar erguia-se na sala seguinte, à espera de ser polido. Agora, o enorme altar em bronze parece fixado no solo, mas as laterais curvas evocam um par de braços levantados, em apelo aos fiéis e ao grande número de turistas não familiarizados com o catolicismo ou sequer com o cristianismo.

Nas capelas laterais, as pinturas sumptuosamente renovadas das paredes, que remontam ao restauro feito por Viollet-le-Duc. Embora as pinturas religiosas oitocentistas que adornavam as paredes destas capelas tenham sobrevivido, foram cuidadosamente limpas e restauradas.

No topo do teto abobadado, o anjo dourado enfeita o óculo, um anel em pedra. A queda do pináculo, que perfurou o teto, causou danos colossais. Porém, os trabalhadores fecharam o enorme buraco e reconstruíram o óculo.

No sótão da nave, encontra-se nova “floresta” de vigas triangulares em carvalho. Os operários recorreram a técnicas antigas para reproduzir o telhado original. Cortaram as enormes madeiras à mão, utilizando machados tradicionais forjados à mão, e fixaram as vigas numa treliça complexa com juntas de caixa e espiga. A estrutura inclui a proteção contra incêndios. As vigas resistentes ao fogo utilizadas no cruzeiro foram pensadas para isolar o pináculo e os braços do transepto da nave e do coro para que um incêndio nunca mais se espalhe pelo sótão. Se as chamas deflagrarem ali, nebulizadores dispostos ao longo do sótão contê-las-ão, até os bombeiros subirem.

Um dos adornos recentes, sobrevivente do incêndio, é a grande cruz que erguida na extremidade oriental do coro, instalada em 1994. Feita em madeira e revestida com folha de chumbo, permaneceu envolta numa capa protetora, enquanto os técnicos desmontavam os andaimes.

Mantém-se a varanda de pedra que Viollet-le-Duc encheu de criaturas grotescas. O novo pináculocópia fiel da criação intrincada de Viollet-le-Duc, elaborada a partir dos seus desenhos. A exceção é o galo (símbolo da França) em latão dourado que, agora, se encontra sobre ele e que se pode ver a reluzir ao Sol.

As vigas resistentes ao fogo utilizadas no cruzeiro isolam o pináculo e os braços do transepto da nave e do coro para que um incêndio nunca mais se espalhe pelo sótão.

O pináculo, colocado no sítio em dezembro de 2023, contém no seu interior as relíquias de dois santos parisienses e um rolo de texto com o nome dos dois mil trabalhadores que participaram no restauro. O galo é símbolo da identidade francesa, de esperança e ressurreição; e, como Villeneuve lhe pôs asas flamejantes, simboliza a catedral que renasce das cinzas.

O órgão, na varanda adjacente à parede frontal, sobreviveu ao fogo, mas foi desmontado e limpo e os afinadores passaram meses a calibrar, um a um, os seus oito mil tubos. De costas viradas para os tubos imponentes, estão as paredes e abóbadas da nave. Os vitrais brilham nas janelas altas. As paredes de pedra ficaram cremosas e luminosas. Com pormenores em folhas de ouro e nervuras delicadamente pintadas de bordô, as abóbadas estão impecáveis.

O “peeling brutal” das paredes – com a aplicação de um spray de látex, que extraiu o chumbo ao ser removido – deixou as paredes tão brancas que algumas pessoas acharão que a catedral perdeu algo do sagrado. Todavia, para as autoridades da Igreja, o sagrado deriva, sobretudo, do que se passa no interior: “A catedral é, acima de tudo, um local de culto, que foi construído para a glória de Deus”, disse Monsenhor Ribadeau Dumas.

Depois do incêndio, o clero discutiu sobre a criação de um pequeno espaço no coro onde os católicos assistem à missa em comunhão, longe dos visitantes. Porém, decidiram o oposto. Todas as missas serão celebradas no altar principal da nave, sem barreiras que impeçam os turistas de deambular. Privilegia-se a demonstração da fé, em vez da tranquilidade da oração.

As capelas laterais passaram de uma miscelânea de representações para uma “via do peregrino”, com relato coerente da fé católica. Logo à entrada, no centro da fachada ocidental, os visitantes deslocam-se pelo corredor norte, onde cada capela é dedicada a um profeta veterotestamentário. O espaço em redor do coro conta a vida, morte e ressurreição de Jesus. E, nas capelas sul da nave, um santo representa um valor específico do Catolicismo.

Na abside, no extremo oriental, os visitantes passam junto a uma das relíquias mais valiosas da cristandade: a Coroa de Espinhos. O arquiteto Sylvain Dubuisson desenhou um novo relicário para expor a coroa, de modo a dar destaque a “algo de uma incrível humildade”. O artefacto é uma grinalda de juncos secos entretecidos, da qual os espinhos já foram há muito removidos.

A solução de Dubuisson foi um retábulo em cedro com cerca de 3,5 metros de altura e 2,5 metros de largura. No centro, encontra-se um hemisfério de vidro, cuja superfície curva foi pintada de azul-escuro e iluminada de modo a superfície não ser percetível. A coroa está suspensa no interior.

A reabilitação da Notre-Dame passou também por soldar pequenas peças de chumbo às áreas acima do coro. O telhado é composto de painéis de chumbo finos, montados em tábuas de carvalho. A água da chuva será filtrada para remover quaisquer resíduos de chumbo.

Ao entrar em Notre-Dame, a primeira coisa que o visitante vê é a fonte batismal em bronze, o portal para a fé católica. O novo altar é visível no cruzeiro, sob o novo pináculo.

A 7 de dezembro, o Estado, na presença de cerca de 50 chefes de Estado e de milhares de convidados, devolveu a catedral restaurada ao arcebispo de Paris, que bateu à porta com o báculo, para esta se reabrir para o Mundo. E o órgão tocou um hino de agradecimento. E, a 8 de dezembro, a catedral celebrou a liturgia da Imaculada Conceição, com o povo.

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Se os construtores medievais se ufanavam de edificar para a eternidade, os restauradores podem clamar que reedificam para a eternidade, mas pela congregação das pessoas.

2024.12.11 – Louro de Carvalho

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