terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A noite de Natal é de solidão para muitas pessoas

 

O Natal, vivido à maneira mais cristã ou ao estilo mais social, é a festa da Família e da proximidade das pessoas que se conhecem, porque a vida proporcionou esse conhecimento, com o qual se forjaram simpatias.  

Assim, para lá dos votos de “Feliz Natal” ou de “Boas Festas”, multiplicam-se as prendas, as viagens, as reuniões de família, as festas de coletividades, as apresentações de cumprimentos institucionais, os cabazes para os pobres e as confraternizações com os sem-abrigo.

Pena é que o Natal não aconteça todos os dias, porque, todos os dias, é preciso comer e beber, recolher-se sob um teto e ter roupa para se resguardar das intempéries e poder apresentar-se junto das outras pessoas. É mau viver a sós em ilha; e bom é viver em rede.

Não obstante, muitas famílias não se reencontram fisicamente na quadra natalícia. É o trabalho inadiável de serviço à saúde, à segurança pública, à defesa militar, à proteção civil ou aos cultos.

Há também as desavenças pessoais e familiares, como há a obrigação de cada um estar, na consoada, integrado fisicamente no núcleo familiar a que pertence. Contudo, nos tempos que correm, é sempre viável uma mensagem, um postal, um telefonema, um e-mail ou um dos outros canais hodiernos de comunicação. Enfim, o Natal há de ser tempo de reconciliação, se necessário, e há de ser sempre tempo de proximidade, muito embora as guerras se esqueçam de fazer tréguas ou as violem, se as fazem. E o Natal há de ser espaço contra a agressividade e contra o anticivismo.

Há muitos cuja noite de Natal é ensombrada pelo luto dos que morrem, pela azáfama do cuidado de enfermos, pelos atropelamentos e outros acidentes na via pública, alguns fatais.

E há aquelas pessoas cuja necessidade as obrigou a ir demasiado longe e que têm dificuldade em regressar ao torrão natal, ficando, muitas vezes a meio do caminho que oferece mais pedras do que piso transitável, mais poeira ou neve do que bermas ou clareiras.

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Esta reflexão natalícia convoca-me à transcrição irresistível de “Natal”, de Miguel Torga, inserido nos Novos Contos da Montanha, esperando que Torga não leve a mal.  

“De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas ações é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que, só dando ao canelo por muito largo, conseguia viver.

E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas, se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa… E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia, ao menos, dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário coletivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada, em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo… Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa…

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura. Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida… Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira. “Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia de um patriarca, – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José”.”

***

Como o velho Garrinchas, há muitos que a família ou os amigos já não esperam. A distância e a velhice separam as pessoas para nunca mais se encontrarem. Hoje, a solidão e o abandono, o desprezo e a subvalorização vitimam muitas pessoas. São deixados em hospitais, na rua, no seu tugúrio ou no cantinho da casa, escancarados à pobreza.

Para vergonha da sociedade dita civilizada, ainda se tolera a mendicidade e são pagos salários de miséria. Reza-se pouco e manda-se rezar muito, sabendo que a reza não mata a fome e leva os orantes por esmola a não ligarem ao sentido das orações. As boas ações é que nos salvam!

E aqueles a quem é pedida a esmola, aqueles a quem se estende a mão e que olham com desprezo ou com indiferença o pobre, bem podiam lembrar-se de que as orações e ladainhas não salvam, se deixamos que os corações refilem com a fome, com o frio ou com a falta de teto.

Aliás, o apóstolo Tiago adverte: “Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o alimento de cada dia, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’, sem lhes dar o necessário para o corpo, de que lhes servem as vossas palavras? Assim também a fé: se não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2,15-17).

Contra a petulância e a vaidade dos ricos, que esmagam o pobre, o apóstolo, é contundente: “E agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos, por causa das desgraças que estão para vir sobre vós. As vossas riquezas apodreceram e as vossas vestes estão carcomidas pela traça, o vosso ouro e a vossa prata corroeram-se, e será a sua corrosão a dar testemunho contra vós e a devorar as vossas carnes como um fogo. Andastes a acumular tesouros nestes dias, que são os últimos! Eis que já clama o salário dos trabalhadores que ceifaram as vossas terras, e que vós retivestes; os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Vivestes luxuosamente na terra e entregastes-vos aos prazeres: engordastes para o dia da matança! Condenastes e matastes o justo, e ele não vos opôs resistência” (Tg 5,1-6).  

Não tenhamos ilusões. O critério de julgamento da parte do Deus que há de vir nos últimos dias não assenta nas muitas orações ou nos muitos atos de culto, mas na atenção efetiva e afetiva ao próximo. E o próximo é todo/a aquele/a que tem fome e sede, que é estrangeiro/a, que anda nu/a, que está doente ou que está na prisão. O crente, a quem o culto ajuda na fé, deve ver nestas pessoas a pessoa do próprio Cristo. Mateus é claro no estabelecimento doss critérios. Vejamos:

Então o rei dirá aos da sua direita: ‘Vinde, benditos do meu Pai; herdai o reino preparado para vós desde a fundação do Mundo. Pois tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e fostes ter comigo’. Então responder-lhe-ão os justos, dizendo: ‘Senhor, quando é que te vimos com fome e te alimentámos, ou com sede e te demos de beber? Quando é que te vimos estrangeiro e te acolhemos, ou nu e te vestimos? Quando é que te vimos doente ou na prisão e fomos ter contigo?’ E, respondendo, o rei lhes dirá: ‘Ámen vos digo: quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes’. Então dirá também aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e para os seus anjos, pois tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era estrangeiro e não me acolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não me visitastes.’ Então eles responderão, dizendo: ‘Senhor, quando é que te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou doente, ou na prisão e não te servimos?’ Então responder-lhes-á, dizendo: ‘Ámen vos digo: quantas vezes o não fizestes a um destes mais pequenos, também a mim o não fizestes.’ Estes partirão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna” (Mt 25,34-46).

Desejando, a toda a gente um Natal feliz, de saúde, de paz e de alegria, espero que seja de partilha, de conforto, de atenção aos mais necessitados e de reconciliação, se necessária. E a dádiva deve começar pelos necessitados de ao pé da porta, para que não tenham de ir pedir socorro demasiado longe, entre estranhos. Talvez seja oportuno repensar a imigração com óculos de Natal!   

2024.12.24 – Louro de Carvalho

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