O Natal, vivido à maneira mais cristã ou ao
estilo mais social, é a festa da Família e da proximidade das pessoas que se
conhecem, porque a vida proporcionou esse conhecimento, com o qual se forjaram
simpatias.
Assim, para lá dos votos de “Feliz Natal” ou de “Boas
Festas”, multiplicam-se as prendas, as viagens, as reuniões de família, as
festas de coletividades, as apresentações de cumprimentos institucionais, os
cabazes para os pobres e as confraternizações com os sem-abrigo.
Pena é que o Natal não aconteça todos os dias,
porque, todos os dias, é preciso comer e beber, recolher-se sob um teto e ter
roupa para se resguardar das intempéries e poder apresentar-se junto das outras
pessoas. É mau viver a sós em ilha; e bom é viver em rede.
Não obstante, muitas famílias não se reencontram
fisicamente na quadra natalícia. É o trabalho inadiável de serviço à saúde, à
segurança pública, à defesa militar, à proteção civil ou aos cultos.
Há também as desavenças pessoais e familiares,
como há a obrigação de cada um estar, na consoada, integrado fisicamente no
núcleo familiar a que pertence. Contudo, nos tempos que correm, é sempre viável
uma mensagem, um postal, um telefonema, um e-mail
ou um dos outros canais hodiernos de comunicação. Enfim, o Natal há de ser
tempo de reconciliação, se necessário, e há de ser sempre tempo de proximidade,
muito embora as guerras se esqueçam de fazer tréguas ou as violem, se as fazem.
E o Natal há de ser espaço contra a agressividade e contra o anticivismo.
Há muitos cuja noite de Natal é ensombrada pelo
luto dos que morrem, pela azáfama do cuidado de enfermos, pelos atropelamentos
e outros acidentes na via pública, alguns fatais.
E há aquelas pessoas cuja necessidade as obrigou
a ir demasiado longe e que têm dificuldade em regressar ao torrão natal,
ficando, muitas vezes a meio do caminho que oferece mais pedras do que piso transitável,
mais poeira ou neve do que bermas ou clareiras.
***
Esta reflexão natalícia convoca-me à transcrição irresistível
de “Natal”, de Miguel Torga, inserido nos Novos
Contos da Montanha, esperando que Torga não leve a mal.
“De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se
aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste
ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o
favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma
pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à
caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma
côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer
porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas
ações é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o
sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que, só dando ao canelo
por muito largo, conseguia viver.
E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas, se o mundo fosse de
outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o
certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente,
ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a
caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa… E a
verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o
do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas
conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a
respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia, ao menos,
dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o
corpo e matar o sono naquele santuário coletivo da fome, podiam. O problema
estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado.
Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima
atrasara-se na jornada, em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas
pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar
conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão
ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o
coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia.
Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que
começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que
pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte
quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino!
Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara.
Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo… Areias,
queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a
Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia
no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa…
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a
chuva de pétalas. Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um
moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não
se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam
penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se,
e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora
esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura. Vá lá! Do mal o
menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a
resolver na ocasião devida… Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá
fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas
estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se.
Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos
todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a
escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e
também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus
parecia sorrir-lhe. Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também. Contente
daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o
andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso,
evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o
ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo,
desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que
regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água
na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do
bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da
primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência,
ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na
talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não
esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a
para junto da fogueira. “Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a
ironia de um patriarca, – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e
eu, embora indigno, faço de S. José”.”
***
Como o velho Garrinchas, há muitos que a família ou os amigos já não
esperam. A distância e a velhice separam as pessoas para nunca mais se
encontrarem. Hoje, a solidão e o abandono, o desprezo e a subvalorização
vitimam muitas pessoas. São deixados em hospitais, na rua, no seu tugúrio ou no
cantinho da casa, escancarados à pobreza.
Para vergonha da sociedade dita civilizada, ainda se tolera a mendicidade e
são pagos salários de miséria. Reza-se pouco e manda-se rezar muito, sabendo
que a reza não mata a fome e leva os orantes por esmola a não ligarem ao
sentido das orações. As boas ações é que nos salvam!
E aqueles a quem é pedida a esmola, aqueles a quem se estende a mão e que
olham com desprezo ou com indiferença o pobre, bem podiam lembrar-se de que as
orações e ladainhas não salvam, se deixamos que os corações refilem com a fome,
com o frio ou com a falta de teto.
Aliás, o apóstolo Tiago adverte: “Se
um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o alimento de cada
dia, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’, sem lhes
dar o necessário para o corpo, de que lhes servem as vossas palavras? Assim
também a fé: se não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2,15-17).
Contra a petulância e a vaidade dos ricos, que esmagam
o pobre, o apóstolo, é contundente: “E agora, vós, ó ricos, chorai e
lamentai-vos, por causa das desgraças que estão para vir sobre vós. As vossas
riquezas apodreceram e as vossas vestes estão carcomidas pela traça, o vosso
ouro e a vossa prata corroeram-se, e será a sua corrosão a dar testemunho
contra vós e a devorar as vossas carnes como um fogo. Andastes a acumular
tesouros nestes dias, que são os últimos! Eis que já clama o salário dos
trabalhadores que ceifaram as vossas terras, e que vós retivestes; os gritos
dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Vivestes luxuosamente
na terra e entregastes-vos aos prazeres: engordastes para o dia da matança! Condenastes
e matastes o justo, e ele não vos opôs resistência” (Tg 5,1-6).
Não tenhamos ilusões. O critério de julgamento da parte do Deus que há de
vir nos últimos dias não assenta nas muitas orações ou nos muitos atos de culto,
mas na atenção efetiva e afetiva ao próximo. E o próximo é todo/a aquele/a que
tem fome e sede, que é estrangeiro/a, que anda nu/a, que está doente ou que
está na prisão. O crente, a quem o culto ajuda na fé, deve ver nestas pessoas a
pessoa do próprio Cristo. Mateus é claro no estabelecimento doss critérios.
Vejamos:
“Então
o rei dirá aos da sua direita: ‘Vinde, benditos do meu Pai; herdai o reino
preparado para vós desde a fundação do Mundo. Pois tive fome e destes-me de
comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e acolhestes-me, estava
nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e fostes ter
comigo’. Então responder-lhe-ão os justos, dizendo: ‘Senhor, quando é que te
vimos com fome e te alimentámos, ou com sede e te demos de beber? Quando é que
te vimos estrangeiro e te acolhemos, ou nu e te vestimos? Quando é que te vimos
doente ou na prisão e fomos ter contigo?’ E, respondendo, o rei lhes dirá: ‘Ámen
vos digo: quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim
o fizestes’. Então dirá também aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos,
para o fogo eterno, preparado para o Diabo e para os seus anjos, pois tive fome
e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era estrangeiro e
não me acolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não me
visitastes.’ Então eles responderão, dizendo: ‘Senhor, quando é que te vimos
com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou doente, ou na prisão e não te
servimos?’ Então responder-lhes-á, dizendo: ‘Ámen vos digo: quantas vezes o não
fizestes a um destes mais pequenos, também a mim o não fizestes.’ Estes
partirão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna” (Mt 25,34-46).
Desejando, a toda a gente um Natal
feliz, de saúde, de paz e de alegria, espero que seja de partilha, de conforto,
de atenção aos mais necessitados e de reconciliação, se necessária. E a dádiva
deve começar pelos necessitados de ao pé da porta, para que não tenham de ir
pedir socorro demasiado longe, entre estranhos. Talvez seja oportuno repensar a
imigração com óculos de Natal!
2024.12.24 – Louro de Carvalho
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