Não
se pode dizer que o ano de 2024 tenha piorado, em termos da prestação dos
serviços de Saúde. Todavia, há situações que seriam caricatas, se não fossem
dramáticas, a fazer do ano prestes a chegar ao fim um tempo longo das más
experiências no campo da Saúde, em especial, no atinente ao Serviço Nacional de
Saúde (SNS). Dos grandes serviços privados nem é bom falar, pois a necessidade
de faturar fala mais alto do que a atenção às necessidades das pessoas.
Antes
de mais, é de ressalvar que este apontamento rejeita qualquer intuito de
generalização, como salienta que o subscritor tem sido bem atendido, quer no
SNS, quer nos serviços privados a que tem recorrido. Mais ainda: o nosso SNS,
globalmente, funciona bem para as pessoas que a ele têm acesso. A dificuldade
está, muitas vezes, em aceder (os famosos P-1). Quanto ao atendimento, tudo
depende de quem encontramos, em termos de profissionalismo e de sensibilidade
humana. Em certos casos, dada a exiguidade de meios e a grande sobrecarga de
trabalhos, até dá para pensar como se cometem tão poucos erros no SNS.
Em
todo o caso, não podemos dispensar-nos de apontar o dedo a determinadas
fragilidades evidenciadas, embora o governo, que se atirava aos executivos
anteriores, continue a dizer que tudo pulula na área da Saúde, aliás como em
todas as áreas em que o Estado põe mãos. A grande obra do atual governo, nesta
área, é ter protocolos com entidades privadas vocacionadas para a Saúde,
transferindo para elas utentes com menores níveis de urgência (pulseiras azuis
e verdes) e estabelecendo centros de saúde privados onde a resposta pública
seja insuficiente, mas aos quais é concedida a possibilidade de recusa de
atendimento a doentes. Por outro lado, avançou-se no número de centros de saúde
que têm horário prolongado para atenderem doentes com algum grau de urgência.
Neste momento, são 231 centros de saúde, mantendo-se este serviço até ao
próximo mês de fevereiro, pois o objetivo é “desentupir” as urgências
hospitalares em tempo de pico gripal.
Neste
aspeto, é de recordar que se tem andado de experiência em experiência.
Lembro-me do funcionamento do Serviço de Atendimento Permanente (SAP), a que
sucederam os Serviços de Urgência Básicos (SUB), tantas vezes sem recursos.
Porém,
voltemo-nos para o ano de 2024.
No dia de
Natal, a linha de Saúde SNS 24 (ou SNS 24) encaminhou uma criança para uma
urgência que estava fechada e, no dia seguinte, a ministra da Saúde, Ana Paula
Martins, admitiu a existência de falha de comunicação, tendo sido aberta uma
auditoria interna. “Parece ter havido uma falha de comunicação entre o
hospital e a linha. Ou seja, quem está na linha a atender e a fazer a triagem
tem de saber que aquele hospital já não está a conseguir receber doentes. É
muito importante que este mecanismo de comunicação não falhe”, disse a
governante aos jornalistas, no final de uma visita ao Hospital de Nossa Senhora
do Rosário, no Barreiro, distrito de Setúbal.
Ana Paula
Martins disse ter falado com a presidente dos Serviços Partilhados do
Ministério da Saúde (SPMS), “que já tinha acionado uma auditoria interna para
saber exatamente aquilo que se passou”.
“Do pouco que sabemos, até agora, da
auditoria que está a ser feita, terá havido alguns problemas nesta comunicação”,
entre a linha SNS 24 e o hospital, disse a ministra, sublinhando: “Nem que seja
só um caso, tem que nos preocupar.”
O caso,
avançado pela SIC Notícias, envolveu
uma criança de cinco anos, de Torres Vedras. A criança, que estava com febre,
havia três dias, foi observada na unidade de cuidados primários, a 23 de
dezembro, mas, no dia de Natal, os sintomas agravaram-se, com dores de ouvidos
e garganta. Então, a mãe ligou para o SNS 24, tendo obtido ligação, uma hora e
meia depois de a haver tentado. A operadora disse-lhe que levasse o filho às
urgências de pediatria do Hospital de Torres Vedras, que a interessada já sabia
estarem encerradas. Todavia, do outro lado da linha, insistiram que as
urgências estariam abertas.
A mãe
decidiu levar o filho para outro hospital, o das Caldas da Rainha, a 40
quilómetros de casa. E à SIC Notícias
disse que o filho não foi o único a ser mal encaminhado pelo SNS 24.
Questionada
sobre o caso ocorrido em Torres Vedras, e sobre os casos de outros utentes em
Loures, divulgados pela RTP1, de que,
na manhã do dia 26, estiveram uma hora a ligar para o SNS 24 sem sucesso, a
ministra assegurou que a auditoria terá resposta, dentro de pouco tempo.
Outras
situações chocantes são as que atingem as grávidas. Se viram, em tempos as
maternidades a encerrar, tendo de ir à vizinha Espanha, para serem assistidas
no parto, de se sujeitarem a dar à luz na ambulância, depois passaram a ter de
correr Ceca e Meca, para encontrarem uma urgência de Ginecologia-Obstetrícia
aberta. Nessas bolandas, uma grávida morreu e a ministra da Saúde ao tempo
sentiu a necessidade de apresentar o seu pedido de demissão do cargo
governativo.
Na vigência
do atual governo, registam-se alguns casos atinentes a grávidas: terem de
pressionar o botão da campainha da porta da urgência, para serem atendidas; uma
delas não ter sido atendida no Hospital cuja urgência funcionava, mas não a de
Ginecologia-Obstetrícia; terem de se deslocar do hospital da área da sua
residência para Coimbra ou para o Porto (a centena ou a centenas de quilómetros);
e, por fim, terem de telefonar, antes de marcharem para a urgência.
Falando
de urgências, em geral, é de apontar a situação sucedânea das urgências
rotativas. Em vez de, na mesma cidade ou em cidades contíguas, a urgência de
uma especialidade funcionar, em espaço temporal (por exemplo, 15 dias) num hospital
e, no espaço temporal seguinte, funcionar noutro, agora, o doente só será
atendido na urgência hospitalar, se for referenciado para ela, pelo SNS 24, por
outra unidade do SNS ou pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Em
alguns hospitais, está disponível um telefone a fim de as pessoas que cheguem
sem referenciação telefonarem, como condição prévia para serem atendidas. E,
não raro, sucede que o telefone não funciona, pelo menos, tão depressa como era
desejável.
Como
é óbvio, telefonar nem sempre tem sucesso, pois a linha de Saúde SNS 24, por
vezes, está sobrecarregada, dado o enorme movimento de apelos. Com efeito,
segundo dados revelados pela agência Lusa,
a 26 de dezembro, o
SNS 24 atendeu este ano mais de 3,4 milhões de chamadas, quase o dobro
comparativamente ao mesmo período de 2023, sendo dezembro o mês com maior
número de atendimentos. E os SPMS,
gestor da Linha SNS 24, atribuem este “resultado histórico” de chamadas
atendidas, neste ano, mais 87%, face ao mesmo período de 2023, à “expansão de
serviços” resultantes de iniciativas como o projeto “Ligue Antes, Salve Vidas”.
Em dezembro, até ao dia de Natal, o serviço atendeu mais de 390 mil chamadas,
ultrapassando o valor de novembro (388 mil). O 16 de dezembro atingiu o recorde
do ano, com 21187 chamadas atendidas, “evolução que vai ao encontro do que tem
sido o padrão de incidência das doenças respiratórias”.
“O tempo
médio de espera, para este ano, situa-se, aproximadamente, em um minuto e 48
segundos, um pouco acima dos 57 segundos de 2023, apesar de o número de chamadas
quase ter duplicado”, referem os SPMS, adiantando que, em alturas específicas
do ano, como o inverno, em horas de maior procura, poderá verificar-se um
aumento pontual do tempo médio de resposta, mas o SNS 24 “assegura sempre o
atendimento, evitando deslocações desnecessárias e aumentando a segurança e o
conforto dos utilizadores, que podem usufruir de atendimento e pré-triagem na
sua própria casa”.
Iniciado em
maio de 2023 e já a funcionar em 25 unidades locais de saúde, o projeto “Ligue
Antes, Salve Vidas” obriga o utente a ligar para o SNS 24, antes de se dirigir
à urgência.
O
alargamento do projeto já permitiu ao SNS 24 agendar mais de 233 mil consultas
nos cuidados de saúde primários, o que equivale a cerca de 12 mil consultas por
mês. Aconselhou também 363 mil utentes a permanecer em autocuidados em casa,
com chamada de seguimento, após algumas horas, e encaminhou para cuidados de
saúde primários, com consulta agendada para o próprio dia ou para o dia
seguinte ou para os Centros de Atendimento Clínico, mais de 12 mil utentes.
Cerca de um
milhão de utentes foram encaminhados para serviços de urgência.
Outro dos
serviços criados foi a Linha SNS Grávida, que entrou em vigor a 1 junho e,
desde essa data, até ao dia de Natal, atendeu mais de 70 mil chamadas.
Em 17 de
dezembro foi lançado o projeto-piloto da Teleconsulta Linha SNS 24, destinado a
utentes que, após triagem, reúnam condições clínicas para o atendimento médico
à distância.
O SNS 24 tem
mais de 2300 profissionais, em bolsa, e mais de 700, em fase de recrutamento e
de formação, sendo, durante todo o ano, recrutados profissionais de saúde, “uma
estratégia que permite responder à evolução da procura com maior flexibilidade
e celeridade”. Adicionalmente, em épocas de maior procura, como o inverno,
intensifica esses esforços, para dar a melhor resposta aos seus utentes.
Com o
objetivo de reforçar as equipas de triagem, aconselhamento e encaminhamento,
foram alargados os respetivos perfis profissionais, incluindo enfermeiros licenciados,
com experiência inferior a um ano, médicos licenciados e farmacêuticos, bem
como foram melhoradas as condições dos profissionais, com um aumento
remuneratório e com “um pacote de benefícios sociais que visa reforçar o seu
bem-estar”.
“O ano que
agora termina foi repleto de desafios para o SNS 24, superados, graças à
dedicação das equipas da SPMS, ao apoio de todos os parceiros, incluindo os
profissionais de saúde, as ordens profissionais, o operador e, acima de tudo, a
colaboração dos cidadãos, que demonstram diariamente a confiança nos serviços
do SNS 24”, referem os SPMS.
Outra situação:
de 30 de outubro a 7 de novembro, os técnicos de emergência pré-hospitalar
(TEPH) fizeram greve às horas extraordinárias, pedindo a revisão da carreira e
melhores condições salariais, situação que criou vários problemas no sistema pré-hospitalar
e na linha 112, obrigando à paragem de 44 meios de socorro no país,
agravando-se os atrasos no atendimento da linha 112 e tendo morrido cerca de
uma dezena de pessoas, sendo seis em consequência desses atrasos. E o INEM não estabeleceu
serviços mínimos.
O organismo
terá avisado a ministra da Saúde, 10 dias antes de avançar com o protesto, mas
nunca teve resposta. E Ana Paula Martins afirmou ter ficado surpreendida com a
greve, embora o sindicato destes profissionais tenha enviado um e-mail, a 10 de outubro, a advertir a
governante para o aviso de greve, salientando dar o prazo de 10 dias para
negociar com o governo. “A primeira mensagem de correio eletrónico do dia 10 de
outubro foi enviada para o chefe de gabinete da ministra, para Ana Paula
Martins, para as duas secretárias de Estado e para o presidente do Instituto
Nacional de Emergência Médica (INEM). A missiva fazia uma descrição sumária das
condições de trabalho, sublinhando que a ministra reconheceu como ‘miserável’ o
índice remuneratório dos técnicos quando foi ouvida no Parlamento”, lia-se em
artigo do Expresso.
Por sua vez,
o primeiro-ministro, Luís Montenegro, defendeu, então, que os problemas no INEM
“não se resolvem”, demitindo a ministra da Saúde, o que se aplica a “todos os
membros do governo”. “A consequência política, quando há problemas, é
resolvê-los, essa é a consequência política. A consequência política não é […] mudar
pessoas para o problema continuar, é o contrário, é resolver o problema para
que nós possamos continuar cada vez mais a prestar bom serviço”, frisou Luís
Montenegro.
Contudo, o
secretário-geral do Partido Socialista (PS) responsabilizou o primeiro-ministro
pela crise, advertindo que não é problema exclusivo da ministra da Saúde e
exigindo que se retirem consequências políticas.
Numa
declaração aos jornalistas na sede do partido, em Lisboa, Pedro Nuno Santos
considerou que Luís Montenegro tem de retirar consequências políticas da crise
dos últimos dias nos serviços de emergências médica, embora não tenha exigido a
demissão da ministra da Saúde. “A avaliação sobre a continuidade da senhora
ministra não é do líder do PS, deve ser feita pelo primeiro-ministro”, afirmou
o líder do PS, vincando que a responsabilidade da crise no INEM já não é só da
ministra da Saúde mas “também do governo todo e do primeiro-ministro, em particular”,
uma vez que “optou por desvalorizar” a greve dos profissionais de emergência
médica, em vez de garantir que a situação iria ser averiguada e daí retirar
consequências.
“Estamos
perante um caso muito grave de negligência, irresponsabilidade e incompetência
por parte do governo na gestão da greve dos trabalhadores de emergência
médica”, sustentou.
Por seu turno, a
Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) abriu um processo inquérito aos
casos de mortes, por alegados atrasos no atendimento do INEM, ou seja, por eventuais
atrasos no atendimento realizado pelo Centro de Orientação de Doentes Urgentes
(CODU) do INEM.
É ainda de
referir que o governo tem em marcha um programa de retirada do registo de
utentes do SNS cidadãos que deixem de estar ativos no SNS, como se prepara para
negar o atendimento a imigrantes que não tenham vida estabilizada no país.
Então, o SNS atende mediante pagamento.
***
Enfim, para
terminar, é de recordar que o INEM – cujos problemas, já antigos (aliás, como os
das urgências), se reduzem à falta de recursos humanos, a salários baixos e à falta
de equipamentos – teve um ano atribulado: um presidente demitiu-se por falta de
confiança na e da tutela; o primeiro sucessor nem tomou posse, pois não lhe
foram satisfeitas as condições que exigiu; e a solução foi o recrutamento de um
presidente militar (embora médico) – solução que parece estar a dar resultado,
como o almirante na vacina e o tenente-coronel como diretor executivo do SNS.
Precisará o
país de soluções militares para fazer andar a máquina do Estado?
2024.12.26 – Louro de Carvalho
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