segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Estranha disponibilidade de Zelensky para negociar com a Rússia

 

Depois de mais de mil dias de guerra na Ucrânia, com o presidente Zelensky a fazer depender as negociações de paz da condição de Moscovo proceder à devolução dos territórios ocupados na Ucrânia – o que implicou volumosa ajuda logística e financeira dos países do Ocidente e a imposição de mais de uma dezena de sanções económicas, causando enorme constrangimento aos países da União Europeia (UE) –, vemos Kiev a aceitar as condições de paz com o Kremlin, mesmo sem a devolução dos territórios em causa, desde que a Ucrânia seja integrada na UE e na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

Mais: Zelensky diz que a recuperação dos territórios ocupados será objeto de negociações diplomáticas. Quem é que Zelensky pretende enganar? Os diversos parlamentos escutaram o líder ucraniano, que fez ouvir os seus apelos, deambulou pela Europa e pelos Estados Unidos da América (EUA), criticando a exiguidade dos apoios fornecidos. Andou o Ocidente a tentar convencer-nos de que estavam em causa os valores democráticos e os diretos dos povos à autodeterminação e à defesa da sua soberania. Criaram-se novas dependências económicas, sem deixar, na totalidade, a dependência dos recursos da Rússia. A inflação asfixiou a UE e esventrou-a dos seus recursos. E tudo isto para quê? Faz-me lembrar o que me disse um médico num hospital com médicos e enfermeiros espanhóis: “D. Afonso Henriques andou aqui a perder tempo!”  

Parece que o Ocidente quis experimentar novos meios de combate e desfazer-se dos que já tinha fora de prazo, assim como experimentar a capacidade de resiliência militar, política e económica da Rússia, mas, neste último caso, sem êxito considerável. A Coreia do Norte veio em auxílio da Rússia com cerca de 11 mil combatentes e a China auxiliou de forma larvada.

Terá o presidente ucraniano acreditado na eficácia de Donald Trump no sentido de acabar com a guerra em 24 horas. Haja Deus! Mas de Trump virá coisa boa?

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Penso que a mudança de perspetiva ucraniana, face à guerra, passa pela incapacidade de travar a deserção. Com efeito, a 30 de novembro, Daniel Bellamy, com a Associated Press (AP), publicou, na Euronews, uma peça jornalística intitulada “Dezenas de milhares de soldados desertaram do exército ucraniano”, vincando que, segundo as autoridades, “a deserção está a privar o exército ucraniano de pessoal desesperadamente necessário e a prejudicar os seus planos de batalha numa altura crucial da sua guerra com a Rússia”. Taxativamente, com base em informação do procurador-geral do país, o artigo refere que “mais de cem mil soldados foram acusados, ao abrigo das leis de deserção da Ucrânia, desde a invasão russa em larga escala de 2022”.

Na verdade, os jovens já não estão dispostos a morrer pela sua pátria. Cansados e despojados, dezenas de milhares de soldados ucranianos abandonaram as posições de combate na linha da frente e caíram no anonimato, segundo soldados, advogados e funcionários ucranianos. Ou seja, unidades inteiras de combate abandonaram os seus postos, deixando as linhas defensivas vulneráveis e acelerando as perdas territoriais. Alguns entraram em licença médica e nunca mais regressaram, assombrados pelos traumas da guerra e desmoralizados pelas perspetivas sombrias de vitória; outros, entrando em conflito com os comandantes, recusam-se a cumprir ordens, por vezes, no meio de tiroteios. E Oleksandr Kovalenko, analista militar baseado em Kiev, diz que o problema “é crítico” e que, no terceiro ano de guerra, “só vai aumentar”.

É certo que Moscovo também vem lidando com deserções, mas o facto de os Ucranianos terem desertado em tão grande número e de muitos terem entrado em conflito com os comandantes no terreno põe a nu os intrincados problemas que assolam as forças armadas e a forma como Kiev gere a guerra, “desde a falha na mobilização até ao esgotamento das forças e ao esvaziamento das unidades da linha da frente”. Isto sucede quando os EUA (a guerra tem-lhes interessado) instam a Ucrânia a recrutar mais tropas e a permitir o recrutamento de jovens a partir dos 18 anos.

A AP contactou dois desertores, três advogados e uma dúzia de oficiais e comandantes militares ucranianos. Os oficiais e comandantes prestaram declarações sob anonimato, para não divulgarem informações confidenciais, e um desertor fê-lo sob anonimato, por recear ser processado.

Um oficial da 72.ª Brigada disse já terem espremido “o máximo do pessoal” e observou que “a deserção foi uma das grandes razões pelas quais se perdeu a cidade de Vuhledar, em outubro”.

Mais de cem mil soldados (Portugal não tem um terço destes militares) foram acusados ao abrigo da legislação ucraniana em matéria de deserção, desde a invasão russa, em fevereiro de 2022.

Quase metade dos soldados desertaram só no último ano, depois de Kiev ter lançado a campanha de mobilização agressiva e controversa, que os funcionários do governo e os comandantes militares reconhecem ter falhado em grande medida.

É um número tremendamente elevado, considerando que, segundo as estimativas, havia cerca de 300 mil soldados ucranianos envolvidos em combate, antes da campanha de mobilização. O número real de desertores pode ser muito mais elevado. Um perito em assuntos militares estima que o número de desertores poderá atingir 200 mil. Muitos não regressam depois de obterem uma licença médica. “Cansados pela constância da guerra, têm cicatrizes psicológicas e emocionais. Sentem culpa por não terem conseguido reunir a vontade de lutar, raiva pela forma como o esforço de guerra está a ser conduzido e frustração por parecer impossível de vencer”, sustentam Daniel Bellamy e a AP.

“Ficar calado sobre um problema enorme só prejudica o nosso país”, disse Serhii Hnezdilov, um dos poucos soldados a falar publicamente sobre a sua opção de desertar e acusado pouco depois de a AP o haver entrevistado em setembro.

Outro desertor disse ter deixado a sua unidade de infantaria com permissão, por necessitar de uma cirurgia, mas, quando a licença terminou, não regressou e confessa que “ainda tem pesadelos com os camaradas que viu serem mortos” e explicita: “A melhor maneira de o explicar é imaginar que estamos sentados debaixo de fogo e que do lado deles [russo] vêm 50 obuses na nossa direção, enquanto do nosso lado sai apenas um. Depois, vemos como os nossos amigos estão a ser despedaçados e percebemos que, a qualquer momento, nos pode acontecer o mesmo.”

Entretanto, a 10 quilómetros de distância os oficiais dão ordens via rádio: “Vamos, preparem-se. Vai correr tudo bem.”

Um outro soldado partiu à procura de ajuda médica. Antes de ser operado, anunciou que desertaria. Depois de cinco anos de serviço militar, disse não ver qualquer esperança de ser desmobilizado, apesar das promessas anteriores dos dirigentes. “Se não houver um termo final [para o serviço militar], este transforma-se numa prisão, torna-se psicologicamente difícil encontrar razões para defender este país, considerou Serhii Hnezdilov.

A deserção transformou os planos de batalha em areia que escorrega pela ponta dos dedos dos comandantes militares. Há casos em que as linhas defensivas ficaram seriamente comprometidas, porque unidades inteiras desafiaram as ordens e abandonaram as suas posições. “Devido à falta de vontade política e à má gestão das tropas, especialmente na infantaria, não estamos a avançar, no sentido de defender adequadamente os territórios que controlamos agora”, disse Hnezdilov.

As forças armadas ucranianas registaram um défice de quatro mil soldados na frente de combate, em setembro, devido, em grande parte, a mortes, ferimentos e deserções. A maior parte dos desertores é constituída por recrutas recentes. O chefe do serviço jurídico de uma brigada, responsável pelo tratamento dos casos de deserção e pelo seu encaminhamento para as autoridades policiais, disse que já teve muitos desses casos. “O principal [problema] é que abandonam as posições de combate, durante as hostilidades, e os seus camaradas morrem por causa disso. Tivemos várias situações em que as unidades fugiram, pequenas ou grandes. Expuseram os seus flancos e o inimigo chegou a esses flancos e matou os seus irmãos de armas, porque aqueles que ficaram nas posições não sabiam que não havia mais ninguém por perto”, disse o oficial.

Foi assim que Vuhledar, cidade no topo de uma colina que a Ucrânia defendeu durante dois anos, foi perdida em outubro, em semanas, disse o oficial da 72.ª Brigada, que foi dos últimos a retirar.

A 72.ª Brigada estava a ser muito sobrecarregada nas semanas anteriores à queda da cidade. Só um batalhão de linha e dois batalhões de espingardas mantiveram Vuhledar até perto do fim, e os chefes militares começaram a retirar unidades para apoiar os flancos. Deveria haver 120 homens em cada uma das companhias do batalhão, mas as fileiras de algumas caíram para apenas 10, devido a mortes, a ferimentos e a deserções. Cerca de 20% dos soldados desaparecidos dessas companhias tinham desertado.

Foram enviados reforços, quando a Rússia, percebendo a posição enfraquecida da Ucrânia, atacou. Porém, também os reforços se foram embora. Por isso, quando um dos batalhões da 72.ª Brigada se retirou, os seus membros foram abatidos a tiro, porque não sabiam que ninguém os estava a cobrir. Não obstante, o oficial não tem qualquer animosidade para com os desertores, pois, nesta fase, “toda a gente está muito cansada”.

Os procuradores e os militares só apresentam queixa contra os soldados, se não conseguirem persuadi-los a regressar, segundo três oficiais militares e um porta-voz do Gabinete de Investigação Estatal da Ucrânia. Alguns desertores regressam, mas voltam a partir.

O Estado-Maior da Ucrânia afirmou que os soldados recebem apoio psicológico, mas não respondeu a perguntas sobre o impacto das deserções no campo de batalha.

Quando os soldados são acusados, a defesa é complicada, afirmam dois advogados que se ocupam destes casos e se concentram no estado psicológico dos clientes ao partirem. “As pessoas não conseguem lidar, psicologicamente, com a situação em que se encontram e não lhes é fornecida ajuda psicológica”, disse, ao invés do Estado-Maior, a advogada Tetyana Ivanova, vincando que os soldados absolvidos de deserção, por razões psicológicas, criam um precedente perigoso, pois quase todos têm justificação para sair, pois quase não há pessoas saudáveis na infantaria.

Os soldados que pensam em desertar procuraram o seu conselho. Vários estavam a ser enviados para combater perto de Vuhledar. “Não teriam tomado o território, não teriam conquistado nada, mas ninguém teria regressado”, sustenta a advogada.

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Em minha opinião, a peça jornalística em referência, com tantos pormenores informativos e opinativos referentes à deserção abundante e crescente e ao inêxito (ao invés do que se propalava), permite inferir que Zelensky está a reconhecer que o fim da guerra não se alcança militarmente, mas pela via política. A Ucrânia está cansada da guerra e, sobretudo, já não está disposta a continuar a guerra de procuração do Ocidente contra a Rússia.

No entanto, é pior a emenda que o soneto. Integrar a Ucrânia na UE e ou na NATO é voltar a equacionar aquilo indispôs a Rússia de Vladimir Putin: a UE e, sobretudo, a NATO estenderem-se para lá da Alemanha, ao invés do acordado em 1991.

Também a Ucrânia nunca esteve nazificada ou militarizada como alegava o presidente russo, nem este era de detentor de especial missão da parte de Deus, como sustentava Kirill I, patriarca ortodoxo de Moscovo e de todas as Rússias. A questão tem que ver com o domínio do mar Negro, com a apropriação de recursos materiais na Ucrânia e com o intento de a Rússia reforçar a sua defesa estratégica, tal como progrediu na travessia do Ártico, a partir do degelo crescente naquele oceano polar.

2024.12.02 – Louro de Carvalho

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