segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Profissionais de saúde admitem praticar atos de desobediência civil

 

A 23 de dezembro, em carta aberta contra a alteração à Lei de Bases da Saúde (LBS), aprovada, na generalidade, na Assembleia da República (AR), a 19 de dezembro, 840 profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, técnicos de diagnóstico e terapêutica e outros profissionais), mostram-se dispostos a não cumprir a decisão, que julgam discriminatória, de impor novas limitações a estrangeiros não residentes no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), admitem praticar atos de desobediência civil e prometem: “Utentes daqui e de outros lados, a nossa porta está aberta para todos. E assim continuará.”

Dizem os subscritores que tais alterações à LBS (Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro) e ao Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de agosto, condicionam o acesso dos imigrantes em situação irregular, pelo que se comprometem “a continuar a prestar cuidados a todas as pessoas, sem discriminação, considerando que a proteção da saúde da população visada, no âmbito da ética e [da] deontologia que regem as [suas] profissões, poderá justificar ações de desobediência civil”.

Acusam o governo de promover desigualdades e de dificultar o combate a doenças transmissíveis e recordam que, em França, medida similar não avançou, devido à oposição de 3500 médicos.

Em Espanha, “a exclusão de migrantes não documentados do sistema de saúde, em 2012, resultou num aumento de doenças contagiosas, [em] maior mortalidade e [em] custos elevados, devido à sobrecarga nos serviços de urgência”, obrigando o governo a rever a lei, em 2018.

Efetivamente, os subscritores pensam que a alteração é discriminatória, viola a Constituição e os tratados internacionais, tal como “agravará desigualdades, sobrecarregará os serviços de urgência e comprometerá a saúde pública, ao dificultar o acesso a cuidados de saúde em segurança e à prevenção e tratamento de doenças transmissíveis”.

Segundo as estatísticas, “a população não-residente em Portugal que recorre ao SNS é residual”, escrevem os subscritores, recordando que tais medidas adotadas noutros países mostram “os impactos negativos a nível de saúde pública, mortalidade e custos económicos”.

André Almeida, médico da Unidade Local de Saúde (ULS) de São José, um dos promotores, em declarações à Lusa, explica que os profissionais de saúde não podem subscrever uma lei que é “discriminatória e atenta contra os princípios de ética e deontologia”, ao afastar pessoas do SNS, pois a sua implementação levaria a que “pessoas que trabalham, que são contribuintes líquidos”, a nível tributário e da segurança social, ficassem sem assistência”, aplicando-se o mesmo às suas famílias, inclusive a mulheres grávidas e a crianças. Por isso, os subscritores esperam que “não passe no crivo da Presidência da República”.

Diariamente, André Almeida lida com migrantes que estão no país, “há bastante tempo, mas, devido aos atrasos processuais da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] e, antigamente, do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] não têm a sua situação regularizada”, pelo que já “enfrentam uma série de obstáculos no acesso ao sistema de saúde”. Porém, com “esta alteração à lei, estas pessoas vão ser afastadas de assistência essencial”, particularmente nas urgências, vincou o médico (eu não sabia que os médicos eram tao altruístas!).

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Também a 23 de dezembro, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) manifestou a sua solidariedade aos profissionais que recusarem limitar o acesso de estrangeiros não residentes ao SNS e disse compreender eventuais atos de desobediência.

Em declarações à Lusa, Carlos Cortes afirmou que os médicos devem colocar a vida acima de qualquer questão economicista e lembrou os riscos para a saúde pública, se não forem tratados alguns setores da população. “Eu já expressei a minha solidariedade para com os princípios invocados no abaixo-assinado”, afirmou o bastonário, sustentando que, antes do mais, está em causa “uma questão ética e de deontologia médica” e um “imperativo moral”. E, prosseguindo, perorou: “Perante um doente que necessita de cuidados de saúde, temos que sempre intervir e fazer o nosso melhor para poder tratar esse doente, independentemente da sua condição, nacionalidade, raça, etnia ou religião.”

Para Carlos Cortes, alinhado com os subscritores da carta aberta, a exclusão em referência levanta “questões de saúde pública”, por aumentar o risco de transmissão de doenças, já que uma franja da população está sem tratamento. “Para poder cuidar da minha saúde, eu tenho que cuidar da saúde de todos e nós vimos isso na pandemia”, considerou o bastonário, remetendo as questões financeiras para a “área administrativa”, que pode passar por seguros de saúde ou protocolos entre países, mas, “em nenhuma circunstância, nenhuma mesmo, esse aspeto pode interferir com o tratamento do doente e com a prática dos atos médicos [que] são absolutamente necessários”.

E, não lhe passando pela cabeça, que haja um único médico que pondere, por exemplo, que, ante uma pessoa que tem um problema de saúde, por causa de questões administrativas, “não preste socorro”, Carlos Cortes anunciou que a OM comunicará, formalmente, a sua oposição “junto de quem de direito” e que dará apoio jurídico aos clínicos que recusem cumprir esta decisão da AR.

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A 15 de dezembro (os projetos de lei em causa entraram na AR, a 12 de dezembro), no encerramento do Congresso Nacional de Juventude Socialista (JS), na Nazaré, no distrito de Leiria – acusando o governo de “incapacidade de resolver problemas concretos” e de “inventar outros”, para “disputar com o Chega o eleitorado de extrema-direita” –, o secretário-geral do Partido Socialista (PS) disse, que o país tem meios para combater o acesso fraudulento ao SNS e que “um país decente e humanista” não deve negar serviços de saúde a estrangeiros. “O país não é um país rico”, afirmou Pedro Nuno Santos, frisando que Portugal não tem um SNS “capaz de oferecer cuidados de saúde ao Mundo”, mas tem “meios para combater o abuso” no acesso aos cuidados de saúde, por parte de cidadãos estrangeiros sem situação regularizada.

Reconhecendo que possa haver “acesso fraudulento” ao SNS, o líder do PS afirmou que será necessário identificar e desmantelar “redes de tráfico” e que as propostas do Partido Social Democrata (PSD) e do partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) “não são razoáveis”, por impedirem, na prática, “o acesso ao SNS de imigrantes ou estrangeiros sem a sua situação regularizada”. “Uma coisa é encontrar formas de cobrar”, outra “é não sermos sequer humanos”, disse Pedro Nuno Santos, questionando que resposta deve dar “um país decente e humano” à grávida estrangeira que chegue a uma maternidade portuguesa para ter o seu filho.

No rol das críticas incluiu a imigração, “problema que o governo prometeu resolver”, mas criou outro e grave, ao eliminar da lei “o conceito de manifestação de interesse”, criando um vazio que dificulta a legalização de trabalhadores, quando “o país precisa de mão-de-obra”. “O que é que o governo português vai fazer com os milhares de imigrantes que viram os seus processos rejeitados?”, questionou, lembrando que, “sem novos trabalhadores” o país não conseguirá “executar o Plano de Recuperação e Resiliência [PRR]”.

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O PSD e o CDS-PP apresentaram, a 12 de dezembro, um projeto de lei de alteração à LBS, para travar a “utilização abusiva” do SNS por estrangeiros não residentes, exigindo documentação extra a estes cidadãos. Nesse sentido, Miguel Guimarães, do PSD, e João Almeida, do CDS, afirmaram querer ver o projeto-lei discutido “o mais rapidamente possível”, o que poderia acontecer já no dia 19, se o Chega aceitasse arrastar a iniciativa da Aliança Democrática AD para a fixação da ordem do dia, marcada por este partido, sobre “Turismo de Saúde” – o que aconteceu. E, se o projeto fosse aprovado apenas com os votos do Chega, Miguel Guimarães recusou que se pudesse falar de conluio com esse partido: “Nós não temos conluio com ninguém, nós tentamos fazer o nosso trabalho pensando sempre naquilo que é o interesse das pessoas.”

No projeto de lei distribuído à comunicação social, PSD e CDS querem alterar a base 21 da LBS, dizendo retomar a proposta efetuada, em 2018, pela Comissão de Revisão, presidida pela socialista Maria de Belém Roseira, mas que não foi acolhida. No entender do PSD e do CDS-PP, esta procura indevida do SNS tem sido potenciada pela formulação da atual LBS. Na Base 21, incluem-se, entre os beneficiários do SNS, os nacionais de países terceiros e migrantes, ainda que sem a situação legalizada, criticou Miguel Guimarães, sustentando que tal tem impedido as entidades públicas de “qualquer forma de controlo do acesso de estrangeiros ao SNS”.

No projeto de lei em causa, retira-se da lista dos beneficiários com acesso ao SNS os migrantes sem situação legalizada, passando a constar, além dos cidadãos portugueses, “os cidadãos em situação de permanência regular em território nacional ou em situação de estada ou em situação de residência temporária em Portugal, que sejam nacionais de estados-membros da União Europeia (UE) ou equiparados, nacionais de países terceiros, bem como apátridas ou requerentes de proteção internacional”. Além disso, “o acesso de cidadãos em situação de permanência irregular ou de cidadãos não residentes em território nacional implica a apresentação de comprovativo de cobertura de cuidados de saúde”, e a apresentação de documentação considerada necessária pelo SNS para adequada identificação e contacto do cidadão.

O antigo bastonário da OM ressalvou que tal não se aplica a “situações urgentes ou vitais” e relevou que o crescente uso abusivo do SNS “não tem nada a ver com a imigração, já que se refere a estrangeiros não residentes em Portugal, nem se confunde com o chamado turismo de saúde, pois trata-se de uma utilização abusiva do SNS”.

João Almeida salientou haver “total disponibilidade” do governo para, depois da revisão da LBS, desenvolver outros mecanismos legislativos e na área da investigação de redes criminosas que atuam nesta área. “O essencial é que, tão rápido quanto possível, nós possamos concluir o processo legislativo, para, depois, o governo, quer na área da saúde, quer na área das forças e serviços de segurança possa terminar com a injustiça que neste momento existe”, disse.

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Entretanto, um projeto de resolução apresentado, a 13 de dezembro, pelo grupo parlamentar da Iniciativa Liberal (IL), recomenda ao governo que, “sem prejuízo da prestação imediata de cuidados emergentes, urgentes e vitais, [...] sejam cobrados, por parte das instituições de saúde, os custos decorrentes e legalmente previstos da prestação dos cuidados de saúde não-emergentes, assim como de fármacos dispensados, no momento prévio à prestação dos mesmos”.

Em alternativa ao pagamento imediato, os cidadãos não residentes poderão usar um seguro de saúde ou um acordo internacional, desde que válido em Portugal e aceite pelo SNS.

A IL defende incentivos para a cobrança efetiva, recomendando que a receita decorrente da prestação destes cuidados seja, obrigatoriamente, cobrada ao particular, ao país de origem ou à seguradora, revertendo, na íntegra, para a ULS que o prestou. Para tanto, pede que seja promovida “a integração dos sistemas de informação, nomeadamente entre o SNS, a AIMA e a Autoridade Tributária [AT], que permita o cruzamento de dados e a verificação do estatuto do utente no momento da admissão, por forma a possibilitar a boa cobrança”. Defende que seja assegurado “o acesso aos cuidados de saúde pela população imigrante, em situação de comprovada insuficiência económica, que tenha iniciado o seu processo de regularização de residência”. Porém, considera que o SNS se transformou “num Serviço Mundial de Saúde”, prestando cuidados gratuitos a estrangeiros, muitos dos quais vêm, exclusivamente, com esse propósito. Só entre janeiro e 30 de setembro de 2024, foram assistidos 92193 cidadãos estrangeiros não residentes, e cerca de metade não estava abrangida por qualquer seguro ou protocolo. 

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Para debelar redes de abuso no SNS (o que é imperioso), não era necessário alterar a LBS. Aliás, o PS e a IL mostram soluções extra legislação. Todavia, parece que, no âmbito da imigração e da segurança, o “não” do PSD ao Chega está em crescente “sim” e sobressai o economicismo neoliberal – o que é feio em contexto de quadra natalícia.

2024.12.23 – Louro de Carvalho

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