O homem é, por natureza, um animal político, como
dizia Aristóteles (“ho ánthrôpos zôon politikòn estín”).
Aristóteles sustenta que o homem é o ser que
necessita de coisas e dos outros, pois é o ser carente e imperfeito, que busca
a comunidade para alcançar a completude. E, a partir daí, deduz que o homem é,
naturalmente, político. De facto, para Aristóteles, quem vive fora da comunidade
organizada (cidade, civitas ou pólis) ou é um ser degradado ou um ser
sobre-humano (divino).
Se é verdade que os outros animais têm formas de
expressar os seus incómodos e satisfações, as suas ordens, permissões e
interdições, utilizando gestos e grunhidos, os homens são dotados da “língua”,
que é uma linguagem articulada a permitir a comunicação o diálogo e o bem-estar
em qualquer comunidade humana.
Mário Soares que foi ministro, deputado, primeiro-ministro
e Presidente da República, em democracia, depois de ter sido forte opositor ao
Estado Novo (eufemismo para designar a ditadura nacional herdeira da ditadura
militar e sustentada pela instituição castrense) foi o expoente contemporâneo
do homem político. Era hábil a montar estratégias de ação política e a selecionar
as táticas mais eficientes, dentro do que permitiam as circunstâncias; aliou-se
a uns e a outros, consoante o que entendia ser o melhor para o momento e,
possivelmente, para o futuro.
A 7 de dezembro, passou pelos escaninhos da memória
coletiva, o centenário do seu nascimento. A Assembleia da República (AR)
prestou-lhe, em sessão solene de 6 de dezembro, merecido tributo, com a
presença de personalidades com quem esteve de acordo e com quem entrou em rota
de colisão, embora com rebates críticos de alguns grupos parlamentares, nem
sempre justos e adequados à compreensão dos tempos. Com efeito, o conceito de
democracia não é unívoco e, por vezes, os democratas desentendem-se. Não
obstante, o homenageado não renunciou ao conceito basilar de democracia: o
baseado na liberdade de cada pessoa e na construção de um país moderno assente
no pluralismo de opiniões, cujo lugar privilegiado são os partidos
políticos.
Mário Soares nasceu há um
século, quando 1924 já se aproximava do fim, com a “era dos extremos” a agravar
a sua tensa e trágica amplitude pelo Mundo, no contexto das consequências
políticas, geoestratégicas e económicas da I Guerra Mundial. Os povos andavam aos
papéis entre o regime soviético e os emergentes regimes de extrema-direita – o
nazismo e o fascismo.
Na União Soviética, falecia Lenine e Trotsky e Estaline digladiavam-se em
duelo de morte, enquanto o regime comunista era reconhecido por vários países
europeus (França, Grã-Bretanha, Itália e outros). Em Itália, o Partido Fascista
ganhava as eleições legislativas, com 64,9% dos votos. Na Alemanha, Adolf Hitler,
condenado, pelo “Putsch da Cervejaria”, a cinco anos de cadeia, cumpria, após
amnistia, apenas nove meses. Na prisão escrevia o “Mein Kampf”, cujo primeiro
volume foi publicado em 1925. Nesse ano, foi eleito líder do Partido Nazi e foi
criado o Esquadrão de Proteção (Schutzstaffel), conhecido com as SS. E, em Portugal,
a I República mudava de governos (45 governos e sete presidentes da República) como
quem muda de remédio para doença incurável, continuando assim até ao advento da
ditadura militar e da ditadura civil.
Num Mundo perpassado por uma crise tecida de múltiplas variáveis, entre
ameaças e desistências, crimes e capitulações, o desastre organizava-se no seu
movimento mortífero. A Grande Depressão de 1929 foi o terramoto que despertou a
onda de trevas e extermínio.
Nos anos que antecederam a sua morte, em 2017 (a 7 de janeiro), Mário Soares,
estribado na sua experiência de cosmovisão e de luta contra os fascismos,
contra as derivas extremistas, à esquerda e à direita, diagnosticava o presente
com olhar de lince e via as coisas antes do tempo. Por conseguinte, não se
dispensava de dizer e de escrever o que pensava, alertando para o que aí vinha.
Neste ano de 2024, os seus alertas mostram-se no esplendor do seu perigo e
da sua premência. O Ocidente respira um clima de ocaso e as técnicas de
regeneração são piores do que a doença que teima em alastrar. Os princípios são
postergados, as normas são ignoradas e os valores ocidentais dos direitos humanos,
que enformam a sã democracia, são abandonados, em benefício da repressão das
oposições, da cumplicidade com o genocídio de povos inteiros e de grupos
humanos fragilizados e pela anulação de quem tenta proteger os carentes de
tudo. Hoje, nas guerras, tudo vale. Infelizmente, as guerras não têm fim e as
extremas-direitas, fazendo da política e da propaganda o novo ópio do povo,
conquistam governos e posições e tentam marcar a agenda política, aproveitando
o vazio de reposta aos problemas vitais das pessoas, por parte dos governos
emanados do sistema partidário tradicional.
Toda a vida de Mário Soares foi eivada dos clamores de uma liberdade de que
nunca desistiu. E, quando a doença já o separava do Mundo, ainda tinha força
para protestar contra a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América (EUA).
José Manuel dos Santos, antigo assessor dos presidentes Soares e Sampaio e
coordenador do programa de comemorações do centenário do nascimento de Mário
Soares, sustenta que, “de 1924 a
2024, há um arco de tempo, feito de épocas e de situações muito diversas, mas
que se levanta sobre dois pilares extremos, o de então e o de agora, que,
embora com diferenças, assentam no desprezo pela liberdade e pela democracia,
opondo-lhe um despotismo não iluminado que destitui a política e a cultura dos seus
atributos históricos mais valiosos”.
Ora, Mário Soares, na sua longa vida de 92 anos de, viveu a ignomínia das pesadas
ditaduras e o crítico entusiasmo das democracias e viu como umas se podem
transformar nas outras. Viu avanços e recuos civilizacionais, sobressaltos e
estagnações culturais, o que lhe conferiu excecional capacidade de exame, de
interpretação e de previsão.
Com militante otimismo, lutou contra a ditadura e construiu a democracia,
sem renunciar a momentos de crispação, quando o entendia necessário, e sem
deixar cair os amigos. Porém, no fim dos seus dias, o otimismo converteu-se em
melancolia e em ira alentadora.
Face à traição dos políticos aos seus juramentos e à redução da política,
capturada pelo sistema neoliberal, a uma gestão de interesses, interrogava-se
se era possível “viver sem ideias”.
***
É óbvio que o político não ficou imune ao erro e cometeu alguns erros, na
avaliação de pessoas e de factos; e aliou-se a algumas personalidades por
motivos táticos, mas sem perder as suas convicções. Porém, há narrativas que o
responsabilizam por aquilo de que não tem culpa ou em que não tem a maior
responsabilidade.
Por exemplo, a descolonização tardia e desastrosa não é obra de Mário
Soares, mas de quem a foi adiando, através da guerra colonial de 13 anos, ao
arrepio do sentir da comunidade internacional e da luta dos povos pela
autodeterminação e pela independência. Também foi responsabilidade de quem, em
nome de um projeto político pessoal, teimava, já depois da revolução abrilina,
em defender um regime federalista da metrópole com as colónias, sob o signo da
lusitanidade, bem como dos que, pelo furor anárquico, criaram o ambiente para
que os militares que lutavam nas colónias não fossem rendidos. Também não foram
as governações soaristas que teceram as condições para a necessidade das duas
intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Soares é, no entanto, responsável, com outros, pela deriva neoliberal que
se iniciou em 1976, apesar de, nos tempos do processo revolucionário em curso (PREC),
ter obstado às diversas derivas extremistas e de, nos tempos da troika, ter organizado a única iniciativa
política de vulto de resistência às agruras ditadas pelo programa de
ajustamento económico e financeiro (PAEF), gizado, ao fim e ao cabo, para
salvar a banca alemã e a francesa, sob o pretexto de que vivêramos acima das
nossas possibilidades, quando seguíramos os ditames da União Europeia (UE).
Ao invés do que se propalou – que não conhecia os dossiês –, até ao 25 de
Abril, em diálogo permanente com historiadores, escritores, filósofos, foi
amadurecendo a sua ideia de Portugal e de Portugal na Europa e no Mundo, com a
qual chegou a Santa Apolónia, a 28 de abril de 1974, se opôs à tentativa de
perversão totalitária da revolução democrática e conseguiu normalizar a nossa democracia.
Essa atuação continha a ideia de democracia, de República e de política.
A sua grandeza foi olhar o Mundo com ideias e com ideais, agindo nele com a
arte do político. A liberdade estava no seu pensamento como instinto e como pressuposto
moral, político e cultural.
Como acentuava Sophia de Mello Breyner e reitera José Manuel dos Santos, “mesmo
nos combates mais desiguais e perigosos a sua grande força e a sua grande
coragem criavam ânimo, leveza e alegria à sua volta e nos outros”. Nos seus
últimos dias, ver o Mundo a andar para trás criou-lhe o sentimento da desilusão.
A sua arte política era das mais sagazes e das mais subtis de que há
memória. Conciliava, com perícia, os opostos e as contradições; mostrava firmeza
e flexibilidade, reflexão e ação, princípios e objetivos, observação e
intervenção; revelava cultura erudita e cultura popular, ousadia e prudência,
compromisso e rutura; e sabia usar estratégia e táticas.
Preso, deportado e exilado, fundador e secretário-geral do Partido Socialista
(PS), nos altos cargos do Estado, em tudo o que ergueu pôs a marca de grande
construtor de perguntas e de criador de respostas. Dele, pelos livros, artigos,
discursos, palestras entrevistas, ficou a lição de quem não se acomodou e não
se calou; ficou a vontade de liberdade, mas com as condições políticas,
económicas, sociais e culturais para que não seja desmentida ou desvirtuada;
ficou o dever de uma grande ambição para Portugal e o insistente apelo à defesa
do Estado de direito democrático e do Estado social; ficou a obrigação de dar à
política a sua missão de servir o bem comum e o interesse geral, não o proveito
privado ou o benefício próprio.
Testemunhou e ensinou que, em política, o êxito imediato se desfaz e mostra
a sua inanidade ou o seu fracasso; e que o tempo da política é, simultaneamente,
o da rapidez, para intervir, e o da lentidão, para amadurecer.
Gritou que o “Portugal Amordaçado” cessou e avisou que não pode voltar. Por
isso, o povo tem direito à indignação com o que se degrada, que não funciona, que
estagna ou que teima em não avançar. Efetivamente, o “laisser faire, laisser passer”
é tão nefasto na política como na economia.
***
Também eu teria motivos para homenagem a Mário Soares como pessoa, mas essa
é descabida no âmbito político e pouco interesse tem para a História. Por isso,
fico-me pela racionalidade da distinção entre o Portugal moderno, que tentou construir,
com o Portugal modernaço e piroso com que o tentam confundir, bem como pelo acento
numa bonomia quase inata, aliada a rispidez quanto baste, fruto do gosto pela
vida e pela paz.
Fica, por fim, a certeza de que o Mundo atual é complexo, sem quaisquer
simplismos (nada contra os diversos simplex
administrativos), pelo que, face ao risco ou ao perigo, não podemos estar supinamente
desatentos e, muito menos, virar as costas.
Enfim, a grandeza e o humanismo de
Mário Soares não se compadecem com a mitificação com que alguns o querem
adornar. Foi, antes de mais, um cidadão normal, com os pés na Terra!
2024.12.07 – Louro de Carvalho
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