No âmbito da aprovação na especialidade do Orçamento para 2025 (OE 2025),
a Assembleia da República (AR) aprovou, a 29 de novembro, a reversão do corte de 5% nos vencimentos dos políticos,
o que foi acolhido na votação final e que levou, no dia seguinte, a protesto da
parte do Chega na AR e a reações dos partidos e do Presidente da República (PR).
A proposta
do Partido Social Democrata (PSD) e do partido do Centro Democrático Social (CDS)
sustentava que, “volvidos mais de 10 anos, todas as medidas aprovadas no âmbito
da consolidação orçamental de redução de défice excessivo e de controlo do
crescimento da dívida pública foram revogadas”, com exceto a redução em 5% do
vencimento mensal ilíquido dos titulares de cargos políticos e dos gestores
públicos executivos e não executivos, incluindo os pertencentes ao setor
público local e regional, bem como dos equiparados a gestores públicos.
Os partidos
do governo defendiam ser “da maior
justiça” esta reposição remuneratória.
A medida foi aprovada com
os votos contra do Chega, da Iniciativa Liberal (IL), do Livre e do Bloco de
Esquerda (BE), com abstenção do Partido Comunista Português (PCP) e com os
votos a favor dos demais. E a proposta do Partido Socialista (PS) sobre o mesmo
tema acabou por não ser votada, já que a proposta dos partidos do governo foi
votada primeiro.
Os
socialistas tinham garantido, através da líder parlamentar, Alexandra Leitão,
que viabilizariam a proposta do PSD, para acabar, já em 2025, com estes cortes.
E o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, esclareceu que isso teria
um custo de cerca de 20 milhões de euros.
Após a
aprovação, André Ventura, líder do Chega, disse que “todos” os elementos
do seu grupo parlamentar abdicarão do aumento resultante do fim do corte
salarial dos políticos. Já a IL insistiu na defesa da sua proposta de fazer
depender o aumento dos vencimentos dos políticos do salário médio do país, à
semelhança de outros países europeus. À Esquerda, o BE anunciou que
oporia às iniciativas nesta matéria e o Livre garantiu que abdicará da reversão
do corte e a utilizará para uma bolsa de estudo, desafiando o Chega a “roubar
a ideia”, fazendo o mesmo.
No dia da
votação final do OE 2025, o Chega, alegando que não podia “deixar passar” a
medida, protestou com tarjas penduradas nas janelas da AR. Nas redes sociais, o
líder incluiu uma fotografia, na qual se mostrava à janela, de punho erguido,
diante de uma faixa com a mensagem: “OE 2025 aumenta salários dos políticos.
Vergonha.” O protesto levou a momentos de tensão na AR, com o seu presidente a
pedir a retirada das faixas e a chamada dos Sapadores Bombeiros de Lisboa ao
local. Apesar de salientar que não é razão para “arrombar a porta”, José Pedro
Aguiar-Branco garantia que, se o partido não retirasse as faixas, os bombeiros
o fariam, realçando que é uma “falta de respeito” pelo “património do Estado”.
Porém, André Ventura aduzia que aquele espaço é de “todos” e que só estavam a
utilizar as instalações adstritas ao seu partido. Posteriormente, o Chega
solicitou ao chefe de Estado que submeta ao Tribunal Constitucional (TC) a medida
para fiscalização da sua constitucionalidade, caso contrário, fá-lo-á o partido.
Por sua vez,
o PR manifestou-se, a 30 de novembro, contra a medida em causa, que aplica já
aos atuais titulares políticos o fim do corte de 5% dos vencimentos, defendendo
que apenas se deveria aplicar aos mandatos futuros, mas realçou que tal
discordância não o levará a vetar o OE 2025.
***
Não se trata
de aumento de vencimentos, mas apenas da sua reposição integral. Obviamente, a
AR tem poder para proceder a aumento de vencimentos dos titulares de cargos
políticos e dos gestores públicos executivos e não executivos, incluindo os
pertencentes ao setor público local e regional, bem como dos equiparados a
gestores públicos.
A atitude dos
oposicionistas e a posição chefe de Estado para procrastinar a medida para
mandatos futuros só podem entender-se por vício de contradição ou por mero
pudor hipócrita.
Problemas de
constitucionalidade não há. A atual situação, em rigor, é que mereceria o
látego do TC, visto que a medida do corte no vencimento dos políticos começou
em 2010, no âmbito do segundo Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC II), através
da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, cujo artigo 12.º, n.º 1 estabelece:
“A remuneração fixa mensal ilíquida dos gestores públicos executivos e não
executivos, incluindo os pertencentes ao setor público local e regional, e dos
equiparados a gestores públicos, é reduzida, a título excecional, em 5 %.” A
mesma disposição excecional foi acolhida pelas leis orçamentais n.os
64-B/2011, de 30 de dezembro, 66-B/2012, de 31 de dezembro, e 83-C/2013, de 31
de dezembro, considerando todas elas a excecionalidade da medida. Assim, tendo
sido extintos os pressupostos da excecionalidade, a medida deveria terá já
caducado, há bastante tempo.
***
Aquando do estabelecimento desta medida excecional, bem como a redução de 3,5% a 10% das remunerações dos
trabalhadores da administração pública e do setor público empresarial, um grupo de
deputados solicitou ao TC a declaração da sua inconstitucionalidade.
A crise
económica da Zona Euro exigiu profundos sacrifícios aos Portugueses, para
reequilibrar as finanças do Estado. E as negociações com o Fundo Monetário
Internacional (FMI), com o Conselho União Europeia (UE) e com o Banco Central
Europeu (BCE) levaram Portugal a comprometer-se com o audacioso plano de metas,
o Plano de Ajustamento Economico e Financeiro (PAEF). E, para as atingir, o
governo reduziu os vencimentos dos servidores públicos.
Em 2010, na sequência
da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho – que decretou o corte de 5% no vencimento
ilíquido mensal dos detentores de cargos políticos, incluindo os ocupantes dos cargos de Presidente da
República, primeiro-ministro, deputados da AR, membros do governo, juízes do Tribunal
Constitucional (TC), bem como todas as magistraturas, presidentes dos municípios
e vereadores a tempo inteiro (nos termos do artigo 11.º), a Lei do Orçamento do
Estado 2011 (Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro) –, determinou a redução de
3,5% a 10% do vencimento ilíquido mensal de todos os trabalhadores da administração
pública e equiparados.
Entretanto, um grupo
de deputados da AR pediu ao TC a declaração de inconstitucionalidade dos artigos
da Lei do Orçamento que determinavam tais reduções remuneratórias, alegando que
seriam definitivas, na medida em que a legislação não previu normas de
temporalidade. Sustentava a violação dos princípios do Estado de Direito, da
igualdade e da não redução do salário. Porém, o TC
não declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos atacados.
Primeiro, no
Acórdão 396/2011, vincou a temporalidade da medida. Embora a redução das
remunerações integre um conjunto de medidas negociado com a UE para a
diminuição do défice orçamental pelos próximos anos, as normas impugnadas terão
a vigência da lei orçamental, caducando no final do ano a que se referem. Por
isso, as medidas foram retomadas nas leis de orçamento seguintes, digo eu, mas
o TC não referiu.
Quanto à
irredutibilidade dos salários, lembrou que a Constituição da República
Portuguesa (CRP) não garantiu, de forma direta e autónoma, tal direito. No nosso
ordenamento jurídico, a proibição de reduzir os vencimentos foi prevista na
legislação infraconstitucional (artigo 89.º, alínea d, do Regime do Contrato de Trabalho em Fundações Públicas [antes
da publicação da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada
pela Lei n.º Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e cuja última alteração lhe
foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 13/2024, de 10 de janeiro] e artigo 129.º, 1, alínea d), do Código do Trabalho (CT),
ainda em vigor, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, e cuja última alteração
lhe foi introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril. Agora, a LGTFP e o CT
estabelecem os casos da redução de vencimentos.
O TC não
concordou que a garantia da irredutibilidade gozaria de “força constitucional
paralela” do artigo 16.º, n.º 1, da CRP (“os direitos fundamentais consagrados
na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras
aplicáveis de Direito Internacional”). E lembrou que o direito
infraconstitucional à irredutibilidade admite exceções. Assim, equipará-lo a direito
fundamental vincularia o legislador, gerando incompatibilidade do direito
existente com a CRP, pelo que entendeu que, garantido um mínimo, a proibição de diminuir o salário não é exigência da
dignidade da pessoa humana, nem se impõe como bem primário ou essencial.
Afastado o argumento
do direito à irredutibilidade, concluiu que a proteção em causa só podia dar-se
pela valoração dos princípios da confiança e da igualdade, já consagrados na
jurisprudência do TC (Acórdãos 303/90, 786/96 e 141/2002). E, por entender que o princípio da proteção da confiança
“traduz a incidência subjetiva da tutela da segurança jurídica, exigência da
realização do princípio do Estado de direito democrático” (Acórdão 287/90), sustentou
que a sua aplicação deve partir da definição rigorosa dos requisitos
cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, a ponderar entre interesses
particulares afetados e interesse público que justifica a alteração. Dessa
valoração, nos limites da razoabilidade e da justa medida, resultará o juízo
definitivo quanto à conformidade constitucional.
No caso da
Lei do Orçamento de 2011, o TC ponderou que, embora a redução tenha operado efeitos
imediatos, já no dia da sua entrada em vigor, ou seja, um dia após a publicação
no Diário da República, a medida era previsível,
dado o contexto económico da UE e as políticas de gestão financeira adotadas
por outros estados-membros. E, ao aplicar o
princípio da proporcionalidade, concluiu que a medida é idónea para obviar à
situação de défice orçamental e de crise financeira, não representando excessivo
sacrifício, face às dificuldades a que visam fazer face e justificadas, especialmente,
ante o seu caráter transitório e a sua limitação em 10%, percentagem inferior à
aplicada em outros países da UE com problemas idênticos. Quanto à necessidade,
a medida estaria ligada à aplicação do princípio da igualdade.
Quanto à
possível violação ao princípio da igualdade invocada, o TC verificou que a
redução das remunerações abarca todo o perímetro da Administração Pública. E,
quanto à possível indagação sobre a extensão do sacrifício a generalidade dos
cidadãos com idêntica capacidade contributiva, em razão da aplicação do
princípio da igualdade face aos encargos públicos, não poderia ser enfrentada
pelo TC, já que a decisão foi tomada levando em consideração variáveis
políticas e económicas. E, por entender que lhe caberia verificar, apenas, se as
soluções adotadas não são arbitrárias, conclui que não é este o caso em
questão, explicando: “Não havendo razões de evidência em sentido contrário, e dentro de
‘limites do sacrifício’, que a transitoriedade e os montantes das reduções
ainda salvaguardam, é de aceitar que essa seja uma forma legítima e necessária,
dentro do contexto vigente, de reduzir o peso da despesa do Estado, com a
finalidade de reequilíbrio orçamental.”
Já em 2011,
a Lei do Orçamento do Estado para 2012 (Lei n.º 64-B/2011, de 31 de dezembro)
ampliou a abrangência das reduções, determinando a suspensão do pagamento dos
subsídios de férias e de Natal, inclusive dos aposentados e reformados. E, de
novo, alegando violação dos princípios do Estado de direito democrático, da
proporcionalidade e da igualdade, um grupo de deputados requereu a declaração
de inconstitucionalidade dos seus artigos 21.º e 25.º.
Tais dispositivos
suspenderam, total ou parcialmente, o pagamento dos subsídios de férias e de
natal, ou quaisquer prestações correspondentes a eles, quer para pessoas que
auferem remunerações salariais de entidades públicas, quer para as que auferem
pensões de reforma ou aposentação, através do sistema público de segurança
social, estabelecendo que tal medida, qualificada como excecional, terá a
duração do período de vigência do PAEF.
Dessa feita,
o TC declarou a inconstitucionalidade das medidas adotadas, mas modulou os
efeitos da decisão, permitindo a suspensão dos pagamentos em 2012 (Acórdão
353/2012). Reconheceu que o PAEF decorre de uma série de compromissos assumidos
junto ao FMI, à Comissão Europeia e ao BCE, aprovados por meio de memorandos
vinculativos para o Estado, na medida em que se fundamentam em instrumentos
jurídicos – tratados institutivos das entidades internacionais que neles
participaram, e de que Portugal é parte – de Direito Internacional e de Direito
da União Europeia, que são reconhecidos pela CRP, desde logo no artigo 8.o,
n.º 2. No entanto, aplicando o princípio da
igualdade, concluiu que as novas medidas, cumuladas com as do ano anterior, a
vigorarem pelo período de três anos (2012, 2013 e 2014) conforme acordado,
somadas ao congelamento dos salários desde 2010, representam um sacrifício
demasiado elevado para parte determinada dos cidadãos.
Assim, a
diferença de tratamento na imposição dos sacrifícios, por razões não
justificadas, “viola o princípio da igualdade na repartição dos encargos
públicos”, consagrado no artigo 13.º da CRP, pelo que foi declarada
inconstitucionalidade dos ditos artigos 21.º e 25.º. Porém, sendo essencial que o Estado, ante o quadro
emergencial de crise económica, tivesse acesso ao financiamento externo e
verificando que a execução orçamental de 2012 estava em curso, o TC reconheceu
que a declaração de inconstitucionalidade poderia pôr em perigo o financiamento
acordado e determinou, ao abrigo do artigo 282.º, n.º 4, da CRP, que os efeitos
da inconstitucionalidade não se aplicassem a 2012. Ricas batalhas jurídico-constitucionais!
O TC,
coerente com os seus precedentes, inclusive em situações excecionais, ajudou o
país a enfrentar a crise económica e a harmonizar conflitos sociais.
***
Ora, todas
as pedras que o TC teve de britar por causa dos cortes salariais, para os
legitimar, já não existem. Por isso, tem plena legitimidade a AR para legislar
sobre a matéria. Não há qualquer problema de constitucionalidade, como os
apontados acima, no âmbito do PAEF. O PR, se não concorda, que vete. Os deputados
e os outros políticos podem fazer o que entenderem dos seus vencimentos, exceto
renunciar a eles. Gastem o dinheiro, deem-no a entidades de solidariedade
social ou constituam bolsas de estudo, mas não nos apoquentem com as suas
hipocrisias.
Aliás, não
percebo como, ganhando tão pouco, tantos e tantas querem ser deputados/as e presidentes
de câmara. São cadeiras que têm mel. São cargos de prestígio?
2024.12.02 – Louro de Carvalho
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