domingo, 29 de dezembro de 2024

A maior mente de Alexandria foi vítima de cristãos fanáticos

 

Trata-se de Hipátia de Alexandria, a maior filósofa de Alexandria, a sua cidade natal, em finais do século IV e no início do século V d.C., e um dos maiores pensadores da Antiguidade tardia, dados que deveriam ter sido suficientes para garantir ao seu nome um relevante lugar ao longo do tempo da História da Humanidade, até pela sua excecionalidade, pois, nessa altura, a mulher estava longe de se aplicar à Filosofia, à Ciência e ao múnus de ensinar.

Todavia, não é assim que a História lhe faz jus ou sequer a recorda, mas como vítima de assassinato por infandos motivos político-religiosos, hoje teoricamente inadmissíveis.    

Efetivamente, no ano 415 (quase no início do século V), uma turba de cristãos fanáticos atacou e assassinou Hipátia de Alexandria, a filósofa neoplatónica, por a considerarem uma herege que praticava a magia negra. E assim se finou a primeira mulher que estudou e ensinou Matemática, Astronomia e Filosofia de que há conhecimento.

Fontes da época relatam, em pormenor, o seu assassinato. Os autores cristãos Sócrates Escolástico e João de Niciu, bem como autores pagãos, como o filósofo grego neoplatónico Damáscio, concordam na descrição da sua morte. Ela foi tirada à força da sua carruagem, em Alexandria, e conduzida até à igreja chamada Caesareum, onde foi desnudada, esfolada e brutalmente assassinada. Depois de lhe desmembrarem o corpo, a multidão queimou os seus restos mortais. Isto, quando a Igreja condenava a cremação de cadáveres humanos, porque isso deslustrava, supostamente, a realidade da ressurreição final. Outros relatos sustentam que a filósofa palestrava, quando a multidão a encontrou e, depois de a levarem para a igreja, a arrastaram pelas ruas. 

Atribui-se a Cirilo, Patriarca de Alexandria, a trama e a ordem do seu assassinato.

Seja como for, há muito que se pensa que Hipátia foi assassinada por um bando de fanáticos cristãos, devido às suas crenças filosóficas, ou seja, por ela não apoiar o cristianismo, num Mundo em que pagãos e cristãos eram adversários.

Na verdade, até ao Édito de Milão, de 313, em que o imperador Constantino I deu a paz à Igreja, por ter reconhecido que todas as religiões tinham espaço no Império, os cristãos foram objeto de duras perseguições. Porém, depois de Teodósio haver, pelo Édito de Tessalónica, em 380, imposto o cristianismo niceno como religião oficial do Império – acabando com o apoio do Estado à religião romana e proibindo a adoração pública dos antigos deuses –, os perseguidos passaram, muitas vezes, a ser os pagãos, pois não é um decreto que leva as pessoas a aderir, de alma e coração, a uma religião nova.   

Quando Hipátia nasceu, por volta de 360 d.C., o centro intelectual e cultural de Alexandria estava em declínio. Fundada por Alexandre, o Grande em 331 a.C., a cidade era exibia o farol de Pharos, uma das sete maravilhas da Antiguidade, e o Mouseion, que incluía a biblioteca de Alexandria, o centro de formação dos melhores escritores, médicos, cientistas e filósofos do Mundo antigo. Após a sua conquista por Júlio César,  em 48 a.C., e do incêndio parcial da grande biblioteca da cidade, à ordem do conquistador, Alexandria iniciou o seu lento declínio. Em 364 d.C., o Império Romano dividiu-se em dois e a cidade permaneceu na região oriental, controlada por Constantinopla (atual Istambul). Já então, surgiram disputas entre as denominações cristãs da cidade. Um escritor antigo disse que nenhum povo gostava mais da luta do que o povo de Alexandria. Depois, em 380 d.C., como foi referido, o imperador Teodósio I declarou o cristianismo como religião oficial do Império, inclusive Alexandria, ordenando castigos para os não-crentes, o que levou ao aumento das tensões entre cristãos e não-cristãos.

Neste contexto de agitação política e religiosa a servir de cenário, Hipátia recebeu excelente formação sobre a orientação do pai, o matemático e astrónomo Teão, que lecionava no Mouseion. Deu a conhecer à filha grande variedade de temas, incluindo a Matemática, a Astronomia, a Filosofia e a Literatura, a que a discípula correspondeu, demonstrando excecionais capacidades intelectuais e paixão pela aprendizagem, desde pequena. Comentava, com pormenor, sobre as grandes obras de Matemática e de Astronomia produzidas séculos antes em Alexandria, na época dos Ptolomeus (305 a.C. a 30 d.C.). Porém, não foi o seu talento para a Matemática e para a Astronomia, nem as suas invenções, que tiveram mais impacto, mas a sua ação como filósofa.

Pertencendo à escola neoplatónica, professava, obviamente, o neoplatonismo, que surgiu no século III d.C., a reinterpretar as ideias do filósofo e matemático grego Platão, do século IV a.C. Combinando espiritualidade e ciência, Hipátia aplicava a Matemática e a Astronomia à Filosofia, como forma de compreender o universo e o lugar nele ocupado pelo indivíduo. Estas disciplinas eram vias para o conhecimento do Uno, o ser supremo de que todas as coisas emanam. Embora a Filosofia de Hipátia fosse considerada pagã, os cristãos identificavam o Uno com o seu Deus e, como tal, pagãos e cristãos poderiam seguir este sistema filosófico, que Santo Agostinho batizou.

Hipátia lecionava na Escola de Filosofia Neoplatónica, atraindo às suas preleções grandes multidões de pagãos e de cristãos. Não terá sido pagã devota, nem praticava a teurgia (obra de Deus: magia com que se pretendia obter a proteção da divindade ou dos espíritos celestes), ou seja, o uso de magia e de oráculos que muitos neoplatónicos consideravam uma via alternativa para alcançar o Uno. Enquanto cristãos e pagãos se envolviam em confrontos, destruindo a cidade de Alexandria, Hipátia terá mantido posição neutral.

Assim, permaneceu afastada dos factos que, em 391 d.C., desembocaram na destruição do templo Serapeum de Alexandria pelos cristãos. Outros intelectuais pagãos assumiam posição ativa na defesa do grande templo Serápis e gabavam-se de assassinar cristãos. Portanto, a perspetiva tradicional, segundo a qual a morte violenta de Hipátia resultou do conflito ideológico entre pagãos e cristãos, não explica toda a narrativa. 

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Hipátia viveu numa época em que as mulheres não partilhavam o estatuto dos homens, por mais brilhantes que fossem. Apesar de pouco aclamada, é tida como um dos maiores filósofos da Antiguidade. Foi a primeira mulher que estudou e ensinou Matemática, Astronomia e Filosofia de que há memória, tendo atraído estudantes de locais distantes do Império Romano. Muitos académicos pensam que editou o texto sobrevivente da “Almagesto”, de Ptolomeu, devido ao título do comentário do pai ao Livro III do “Almagesto”Envergou as vestes da elite académica, apesar de esta honra estar reservada a homens. Michael Deakin, no livro “Hipátia de Alexandria”, publicado em 2007, sustenta que, quase sozinha, defendeu os valores intelectuais em prol de uma Matemática rigorosa, do neoplatonismo ascético, do papel essencial da mente e da voz da temperança e da moderação na vida cívica.

O assassinato de Hipátia foi um ato altamente ritualizado, caraterística comum às mortes violentas de dois patriarcas de Alexandria: o ariano Jorge da Capadócia, falecido em 361 d.C., e Protério, falecido em 457 d.C. Porém, embora as circunstâncias das mortes destes sejam diferentes das de Hipátia, os três assassinatos seguem o mesmo molde. Os corpos dos patriarcas foram exibidos pelos assassinos, num desfile, ao longo da Via Canópia, tal como sucedera com Hipátia. Os corpos das vítimas foram desmembrados e partes dos seus restos mortais enviados para os diferentes distritos da cidade, para serem cremados. E é de observar que, no ano 391 d.C., após o ataque ao templo Serapeum, a estátua da divindade greco-egípcia Serápis foi sujeita ao mesmo rito violento.

Nestes termos, a morte de Hipátia é interpretável como homicídio premeditado e não como ato espontâneo da multidão sedenta de sangue. Ela terá sido um peão nas manobras políticas da altura, probabilidade que se deduz de um pormenor político: Hipátia envolveu-se no confronto entre dois homens cristãos de Alexandria, o patriarca Cirilo e governador romano Orestes.

Ao tempo, Cirilo, envolvido em políticas implacáveis para eliminar as influências pagãs em Alexandria, não tinha problemas em recorrer à violência para alcançar os seus objetivos. Até participou na expulsão dos judeus de Alexandria, depois de estes terem atacado os cristãos.

Entretanto, o prefeito romano Orestes, no âmbito dos esforços da administração imperial para manter a estabilidade em Alexandria, teve de pedir apoio à aristocracia municipal, que adorava, maioritariamente, deuses pagãos, e teve de evitar a oposição dos judeus, angariando, simultaneamente, o apoio dos cristãos que se opunham a Cirilo e aos seus métodos violentos. Ao invés de Cirilo, Orestes tinha de apelar um grupo diversificado de pessoas.

Orestes pediu ajuda à sua amiga Hipátia, por ser intermediária adequada, devido ao seu estatuto como filósofa e por se ter mantido a distância segura da defesa ativa do politeísmo. Respeitada por membros da elite de Alexandria que não eram agitadores, nem favoreciam a violência, dispunha da rede de apoio que cultivara ao longo dos anos. Os seus contactos incluíam antigos alunos que pertenciam a poderosos círculos cristãos, tanto em Constantinopla como em Alexandria, o que a tornava, para Cirilo, uma ameaça ao seu controlo sobre os cristãos da cidade.

Para neutralizar Hipátia, Cirilo terá orquestrado uma campanha difamatória, acusando-a de magia negra e descrevendo-a como perigosa bruxa que usava feitiços para atrair as pessoas para as suas palestras. Foi dito que ela convencera Orestes faltar à missa e a permitir a entrada de não-cristãos em sua casa. Sócrates Escolástico comenta que, por ela ter encontros frequentes com Orestes, foi espalhada a calúnia, entre a população cristã, de que, por sua influência, ele não se reconciliava com Cirilo. Estes clichés, usados ao longo dos tempos para desacreditar mulheres que ocupam posições para lá das de esposa e mãe, mostravam Hipátia como perigoso inimigo público.

A nomeação de Cirilo como patriarca de Alexandria, em 412 d.C., foi polémica. Não se esperava que sucedesse ao tio. Por isso, fez uma demonstração de autoridade, para ganhar a lealdade da comunidade cristã da cidade. Apesar da oposição de alguns cristãos, Cirilo atacou politeístas e judeus na cidade, expulsando ou massacrando os últimos, em 414 d.C. Cirilo foi, inicialmente, apoiado por um grupo de monges do deserto de Nitria, com os quais estudara numa comunidade monástica. Mais tarde, usou os parabolanos, cujo objetivo original era cuidar dos doentes, para realizar os seus atos de violência. Não obstante, foi declarado Doutor da Igreja, em 1883.

Cirilo não podia cometer o homicídio com as suas próprias mãos, nem precisava de o fazer. Usou os parabolanos. Contudo, enquanto Cirilo esteve no poder, os parabolanos tornaram-se algo semelhantes a uma milícia armada ao serviço do patriarca. Embora não haja provas de que Cirilo tenha ordenado o assassinato de Hipátia, tudo sugere que tinha muito a ganhar com a sua morte e que os parabolanos trataram do assunto por ele. Este homicídio pôs fim à ameaça que Hipátia constituía para Cirilo, por apoiar a política de tolerância de Orestesm, e foi o ponto de viragem entre a autoridade religiosa, de Cirilo, e autoridade civil, de Orestes. O vencedor foi Cirilo.

Contudo, a morte de Hipátia não foi uma derrota para os pagãos. Cristãos e pagãos continuaram a coexistir em Alexandria, durante mais de um século. O neoplatonismo prosperou até à conquista árabe do Egito, no século VII, contando com cristãos e pagãos, entre os seus seguidores. No século VI, o diretor da escola era um pagão, Amónio de Hérmias, enquanto o vice-diretor e editor das suas obras era um cristão, João Filopono. Nunca mais se falou em Orestes. E, embora os líderes cristãos não erradicassem a filosofia pagã, reprimiam as autoridades seculares.

A personalidade e o intelecto de Hipátia foram reconhecidos por autores cristãos hostis. No século XVIII, Voltaire referiu-a, para condenar uma Igreja ciosa e, no século XIX, obra importante para a consolidação do mito de Hipátia foi o romance do clérigo historiador inglês Charles Kingsley, publicado em 1853, no qual a retrata como vítima de Orestes e de Cirilo. Já “Hypatie”, do francês Charles Leconte de Lisle, descreve-a com o “espírito de Platão e o corpo de Afrodite”. O poema termina com loas à beleza de Hipátia, que, após a sua morte, permanece “imutável, eterna”. Hipátia é também a heroína do filme espanhol “Agora”, de 2009, em cujo enredo salva a Biblioteca de Alexandria dos cristãos fanáticos (os cristãos queimavam livros pagãos). 

Enfim, uma desnecessária mártir pagã e vítima de disputa político-religiosa!

2024.12.29 – Louro de Carvalho

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