terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Gravíssimo défice de liberdade religiosa na Bielorrússia

 

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – ou, simplesmente, União Soviética, conhecida pela perseguição a dissidentes e a pessoas de fé, colapsou, em 1991, mas o legado das suas táticas opressivas persiste em alguns regimes autoritários do antigo bloco soviético, de acordo com a denúncia da Missão Eurásia – organização não-governamental (ONG) de defesa da liberdade religiosa, sediada no Tennessee, nos Estados Unidos da América (EUA) –, no seu mais recente relatório.

O relatório “Faith in Chains” (Fé Acorrentada), publicado a 3 de dezembro, fornece uma análise abrangente do alarmante estado da liberdade religiosa na Bielorrússia, nação que se tornou um bastião de controlo autoritário, sob a presidência de Alexander Lukashenko. Efetivamente, há cerca de um ano, foi aprovada, no país, uma lei que dá ao governo fundamentos legais formais para perseguir “figuras religiosas desleais”.

Na apresentação do documento, Sergey Rakhuba, presidente da Mission Eurasia, escreve: “Ao seguir o exemplo do big brother e ao ser rigidamente controlada pelo Kremlin, a Bielorrússia encontra os seus direitos humanos e liberdades religiosas sistematicamente reprimidos […]. De muitas maneiras, as condições opressivas na Bielorrússia agora refletem, ou até excedem, as da antiga União Soviética.”

Situado na fronteira da União Europeia (UE), o país ocupa posição geopolítica crucial, atuando como um escudo para a Rússia. As “tecnologias de perseguição” empregadas na Bielorrússia têm, hoje, perturbadora semelhança com as usadas pelos regimes da era soviética.

O temido Comité de Segurança do Estado da URSS (KGB) continua a exercer poder significativo, servindo como executor das políticas autoritárias do regime pró-russo. Assim como os líderes do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) utilizaram o KGB para supressão da dissidência e para controlo das massas, Alexander Lukashenko utiliza os mesmos mecanismos para silenciar qualquer pensamento independente, incluindo a dissidência religiosa.

É de referir que o KGB foi oficialmente dissolvido, a 3 de dezembro de 1991, com a dissolução da URSS, desmembrando-se no Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (FSB), no plano interno, e no Serviço de Inteligência Estrangeiro (SVR), no plano externo.

O KGB era a principal ferramenta do regime para asfixiar a dissidência e para controlar as comunidades religiosas. Líderes religiosos que expressavam pensamento independente ou criticavam o governo eram, frequentemente, sujeitos a intimidação, a vigilância e a prisão. E, Alexander Lukashenko, tendo assumido o poder, há décadas, usa os mesmos mecanismos de repressão que, há muito, oprimem a sociedade bielorrussa.

Ora, a sistemática violação das liberdades religiosas e dos direitos humanos básicos na Bielorrússia exige resposta internacional urgente. Nesse sentido, o relatório apela às organizações globais de direitos humanos, aos governos e aos órgãos religiosos que aumentem a pressão sobre o regime bielorrusso para respeitar os direitos das comunidades religiosas. Assim, instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), o Departamento de Estado dos EUA, a Comissão dos Estados Unidos para a Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF9 e o Conselho da Europa devem tomar medidas decisivas para tratar desses abusos e para proteger quem sofre sob este regime repressivo.

Os coordenadores do relatório – Mykhailo Brytsyn, pastor evangélico, e Maksym Vasin, advogado e investigador, ambos de origem ucraniana – estão profundamente conectados com uma rede de igrejas e de organizações dentro da Bielorrússia, pelo que oferecem importantes perceções sobre os pontos estrategicamente importantes destacados ao longo desta pesquisa.

Assim, mostram que a perseguição religiosa é usada, na Bielorrússia, “como arma política”. Com efeito, o governo aplica leis draconianas para sufocar comunidades religiosas e para restringir a sua liberdade de operação. Instituições religiosas, particularmente as não-alinhadas com o regime, enfrentam constante vigilância, assédio e encerramento forçado. Ao manipular a religião como ferramenta de controlo político, Lukashenko garante lealdade ao seu governo autoritário, silenciando, efetivamente, qualquer oposição enraizada na fé.

Por outro lado, é notória a influência da Rússia na política religiosa bielorrussa. À medida que a Bielorrússia cai, mais profundamente, na esfera de influência da Rússia, os seus sistemas religiosos e políticos refletem cada vez mais o modelo autoritário de Moscovo. A Igreja Ortodoxa Bielorrussa, alinhada com a Igreja Ortodoxa Russa, opera sob a influência de Moscovo, apertando o controlo governamental da vida religiosa, enquanto outras comunidades religiosas, particularmente, grupos evangélicos e cristãos não ortodoxos, estão sujeitas a crescente pressão e restrições, como alerta a Missão Eurásia.

Segundo dados da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, relativos a 2023, os Ortodoxos representam a maior parte (49%) da população de cerca de 9,5 milhões de pessoas, enquanto, nos inquéritos sociológicos, estas Igrejas têm resultado ainda mais elevado: 81 a 83% da população identifica-se como ortodoxa, talvez porque estes dados refletem um sentimento de “ortodoxia cultural”. O segundo maior grupo é o da Igreja Católica Romana, com um número de membros entre 10 e 12%, enquanto o setor protestante é quase invisível nos inquéritos sociais, embora abranja, no total, quase um terço das comunidades religiosas registadas na Bielorrússia (pentecostais, 16%; batistas, 9%; adventistas, 2%; e carismáticos, 2%). Outras minorias incluem os Velhos Crentes, os Greco-Católicos, os Luteranos, as Testemunhas de Jeová, os Judeus e os Muçulmanos sunitas.

O documento pede ainda união de “esforços internacionais para libertar o clero, os crentes e outros presos políticos detidos”, que “foram condenados arbitrariamente por razões políticas” e o apoio aos esforços das sociedades civis dos países pós-soviéticos para eliminarem a interferência estatal da Rússia nos assuntos internos de outros países, sobretudo, através da Igreja Ortodoxa Russa.

Entre as recomendações finais, incluem-se a introdução de “sanções pessoais” contra Kirill, o Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias, que apontam como “responsável por justificar a guerra agressiva russa contra a Ucrânia e por levar a cabo repressões contra o clero ortodoxo bielorrusso, devido à sua posição antiviolência e antiguerra”, bem como contra “Alexander Lukashenko e contra outros funcionários responsáveis ​​pela cumplicidade da Bielorrússia na invasão da Ucrânia pela Rússia e pela repressão política no país, incluindo restrições à liberdade religiosa por motivos políticos e a opressão das minorias religiosas”.

***

O Faith in Chains”, nas suas 28 páginas, trata, após uma breve introdução, os seguintes itens: o papel da Missão Eurásia; os protestos de 2020-2021 na Bielorrússia e a influência da Rússia, como contexto; iniciativas legislativas na Bielorrússia e medidas repressivas; restrições à atividade religiosa; repressão governamental às igrejas, por se oporem à violência e à ilegalidade na; comparação da situação religiosa na Bielorrússia e nos territórios ocupados pela Rússia na Ucrânia; recomendações; e História da família de Sergiy Melyanets da Bielorrússia.

Sergiy Melyanets, ministro da igreja protestante, foi forçado a procurar refúgio no estrangeiro, com a família. Supervisionava o culto, fazia sermões e liderava o serviço para adolescentes e jovens. Ele e Svetlana, a sua esposa, também cristã devota, estão a criar sete filhos. À medida que as crianças cresciam, eram batizadas e, agora, ajudam Sergiy e Svetlana no ministério cristão.  

O Comité de Segurança do Estado da Bielorrússia (KGB) monitoriza, de perto, as comunidades religiosas e presta especial atenção aos ministros e líderes proeminentes. A família de Sergiy ficou sob especial escrutínio dos serviços de inteligência, após as eleições presidenciais de 2020, marcadas por numerosas violações, com muitas questões levantadas, a nível mundial, sobre a legitimidade dos resultados e sobre a alegada usurpação do poder por Lukashenko. Outros cristãos também responderam a esta injustiça e à violência contra manifestantes pacíficos. E, em várias cidades do país, foram realizadas orações pela justiça.

Sergiy estava entre os que organizaram tais reuniões de oração, na praça da sua cidade. Durante quatro anos, as pessoas saíram, todos os domingos, para orar pelo seu país, pelas autoridades, pela sociedade, pela justiça e pela submissão a Deus. Em resultado do seu ativismo, estes organizadores enfrentaram ameaças, avisos e chantagens. E Sergiy teve de procurar refúgio.

***

Em termos de recomendações, o relatório considera que, ao longo dos últimos anos, a situação religiosa na Bielorrússia permaneceu fora da atenção das organizações internacionais, no contexto de repressão política da parte do regime Lukashenko. Com a adoção da nova versão da lei “Sobre a Liberdade de Consciência e das Organizações Religiosas”, em dezembro de 2023, a situação religiosa deteriorou-se rapidamente, nos meses subsequentes. A natureza repressiva da lei confere ao governo ampla margem de manobra para utilizar fundamentos jurídicos formais para perseguir figuras religiosas desleais, para fechar igrejas e outras comunidades religiosas pertencentes a minorias religiosas e para aumentar o controlo centralizado sobre qualquer atividade religiosa. Com o objetivo de evitar o aumento da violência, detenções e encarceramentos por motivos políticos, a opressão das minorias religiosas e o confisco de propriedades da Igreja, a Missão Eurásia recomenda, para responder à atual situação religiosa e política na Bielorrússia:

1. Unir e reforçar os esforços internacionais para libertar o clero, os crentes e outros presos políticos detidos, que foram condenados arbitrariamente por razões políticas.

2. Colocar, pelo Departamento de Estado dos EUA e pela USCIRF, a Bielorrússia numa “Lista de Vigilância Especial”, pelas violações da liberdade religiosa por parte do seu governo.

3. Estabelecer, pela ONU, pela OSCE, pelo Conselho da Europa e pela USCIRF, a monitorização da implementação da nova lei “Sobre a Liberdade de Consciência e das Organizações Religiosas” e a legislação “antiextremista” na Bielorrússia, para documentar a repressão das minorias religiosas e quaisquer violações por motivação política contra comunidades religiosas.

4. Condenar publicamente a ideologia mundial russa e apoiar os esforços das sociedades civis nos países pós-soviéticos, para eliminar a interferência estatal da Rússia nos assuntos internos de outros países, principalmente, através da Igreja Ortodoxa Russa.

5. Introduzir sanções pessoais contra o Patriarca Kirill, por justificar a guerra agressiva russa contra a Ucrânia e por levar a cabo repressões contra o clero ortodoxo bielorrusso, devido à sua posição antiviolência e antiguerra.

6. Impor novas sanções económicas abrangentes contra a Bielorrússia e sanções pessoais contra Lukashenko e contra outros funcionários, líderes ​​da cumplicidade da Bielorrússia na invasão da Ucrânia pela Rússia e da repressão política no país, incluindo restrições à liberdade religiosa por motivos políticos e a opressão das minorias religiosas.

7. Documentar a opressão contra líderes religiosos, clérigos, crentes e outros ativistas cívicos bielorrussos de forma que garanta a segurança dos que concordam em testemunhar, incluindo a não divulgação dos seus dados privados e garantindo a segurança deles e das suas famílias.

8. Fornecer asilo político e assistência jurídica aos líderes religiosos, a crentes e a outros ativistas civis forçados a fugir da repressão, fora do país, para evitar a deportação ou extradição para a Bielorrússia, bem como a falta de estatuto legal, se a sua cidadania bielorrussa for revogada.

9. Desenvolver programas de reabilitação para os que sofreram tortura e abusos, na repressão política e religiosa, e estender tais programas aos familiares, bem como envolver organizações internacionais com melhores práticas na troca de experiências em programas de reabilitação.

10. Defender a devolução às comunidades religiosas de todos os edifícios religiosos e outros bens confiscados ou destruídos pelo governo, documentando todos os factos de danos materiais às comunidades religiosas, devido à repressão governamental, e desenvolver mecanismos eficazes para restaurar os seus direitos de propriedade.

11. Ser crítico, face às declarações de funcionários da Bielorrússia e da Rússia e aos dos meios de comunicação controlados pelo governo, que fazem acusações infundadas das ditas “atividade extremista”, da “atividade missionária ilegal” e da “interferência na política”, como base para a opressão de minorias religiosas e para a perseguição de líderes religiosos desleais e de crentes.

 

Enfim, prega-se tanto a liberdade e, tantas vezes, ela é cerceada!

2024.12.10 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário