domingo, 15 de dezembro de 2024

Fiscalização das autarquias divide governo

 

O modelo de fiscalização das autarquias está a criar divisões no governo, devido à proposta de criação de uma nova entidade para o efeito, por parte da titular da pasta da Justiça. A eventual constituição deste organismo criou discórdia pública entre a ministra da Justiça, Rita Júdice, e o ministro-adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida. Todavia, trata-se de uma nova entidade, que, mutatis mutandis, constituiria o renascimento da extinta aquando da troika, o que defendem os autarcas, como refere José Ribau Esteves, vice-presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e presidente da Câmara Municipal de Aveiro.

governo colocou três ministérios à mesa para discutirem a forma de monitorizarem, de forma mais eficiente, a ação dos 308 municípios e das mais de três mil freguesias do país. Além dos dois referidos, participou na discussão o Ministério das Finanças, que tutela a Direção-Geral de Finanças, onde reside a atual equipa de fiscalização dos municípios, a Inspeção-Geral das Finanças (IGF), bem como a Presidência do Conselho de Ministros.

A solução há de resultar desse encontro de posições, pela discussão de um dos três cenários deixados pela ministra da Justiça, a 9 de dezembro, numa conferência em Pombal, que assinalou o Dia Internacional contra a Corrupção.

A conferência sobre o “Regime geral de Prevenção da Corrupção: obrigações, desafios e boas práticas no contexto das Autarquias Locais” foi organizada pela Câmara Municipal de Pombal e pela Transparência Internacional/Portugal.

***

O Dia Internacional contra a Corrupção marca a importância da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que entrou em vigor a 14 de dezembro de 2005 e é, atualmente, subscrita por 191 Estados, constituindo o instrumento jurídico mais abrangente na luta contra este flagelo económico e social. Neste ano, as Nações Unidas colocam os jovens no centro da temática com o lema “Unindo-se aos Jovens Contra a Corrupção: Moldando a Integridade do Amanhã”, para vincar o papel das novas gerações na construção de uma cultura global de integridade.

Em Portugal, o governo reforça a sua Agenda Anticorrupção, apostando na educação como um vetor essencial. A estratégia inclui o fortalecimento de conteúdos curriculares no Ensino Básico e Secundário, abordando temas como a ética, a literacia financeira, os fenómenos de corrupção e a relação dos cidadãos com o Estado. O objetivo é capacitar as futuras gerações para uma análise crítica e escrutínio ativo, promovendo uma sociedade mais íntegra e consciente.

A celebração do Dia Internacional contra a Corrupção reafirma, assim, o compromisso coletivo de construir uma sociedade mais justa e transparente, onde a integridade e a responsabilidade sejam valores fundamentais.

***

Os três cenários acima evocados são: dotar a IGF de um núcleo especializado para a administração local, o que exige o reforço de meios humanos, como admite o Ministério da Justiça (MJ); criar uma nova entidade, a solução, inicialmente, proposta por Rita Júdice num artigo de opinião no Observador, jornal online, e imediatamente contestada por Manuel Castro Almeida; ou, como terceira via, levar esta tarefa de fiscalização para um organismo já existente e que passe a desempenhar a missão.

O primeiro cenário é o que parece corresponder melhor à medida 17 da Agenda Anticorrupção, definida pelo governo, em junho passado, que estabelece o “reforço de meios das inspeções-gerais e da sua articulação com os órgãos de polícia criminal e [com o] Ministério Público [MP]”. E, se o problema é a IGF não ter elementos suficientes e suficientemente formados para o desempenho da fiscalização das autarquias em alguma(s) das áreas da sua administração, há que dotá-la de mais meios humanos e acionar  a execução do teor da medida 31, que preconiza o estabelecimento de “um programa de formação avançada para funcionários envolvidos em processos de contratação pública” – o que é necessário para qualquer solução que se encontre.

Dentro do governo, segundo o que apurou o ECO online, a solução que reúne menos simpatias é a que foi lida como a apontada por Rita Júdice no Observador, num artigo de opinião publicado no dia Internacional da Luta contra a Corrupção. Com efeito, no tempo da troika, foi extinta, pelo Decreto-Lei n.º 126-A/2011, de 29 de dezembro, artigo 42.º, n.º 3, alínea i), a Inspeção-Geral da Administração Local (IGAL), sucessora da Inspeção-Geral da Administração do Território (IGAT), tendo a IGF, com a qual se fundiu a IGAL (Decreto-Lei n.º 126-A/2011, de 29 de dezembro, artigo 2.º, n.º 2, alínea b)), assumido essas funções. Porém, a governante sustenta que a IGF “não está especialmente vocacionada para assegurar, com eficácia, a necessária função de controlo e pedagogia para o cumprimento”.

Ao invés, Manuel Castro Almeida, pouco depois, contestou a necessidade de tirar o controlo às autarquias da IGF, apontando antes ao aumento da equipa. Ao Público, este governante referiu que “o que falta não são serviços, mas inspetores”.

Porém, José Ribau Esteves, alinhado com a ministra da Justiça relembra o que vem sendo reivindicado pela ANMP, desde o congresso eletivo de há três anos: “A ANMP tem uma proposta que repetimos, agora, nas propostas da lei do OE2025 [Orçamento do Estado para 2025], a de criar uma entidade que já existiu, e que que se dedique, em exclusivo, à inspeção das autarquias.”

Como aponta o autarca, “há muitos anos, havia a regra de que todas as câmaras teriam de ter, pelo menos, uma auditoria por mandato”, mas, quando o país integrou essa inspeção-geral [IGAL] na IGF, aconteceu uma redução drástica da capacidade da IGF de fazer este trabalho com as câmaras municipais”.

Ora, apesar de o senso comum levar a pensar que o inspecionado quer menos inspeção, Ribau Esteves diz que “os autarcas lutam por isto, há muito tempo”, pois “são sempre muito desagradáveis os anátemas”. Além do atual governo, também aos anteriores foi solicitada esta solução. “É muito importante a atividade inspetiva regular às câmaras e juntas de freguesia”, insiste o autarca, invocando “questões pedagógicas”, no sentido de que “as inspeções têm sempre dimensão pedagógica, para ajudar a interpretar a lei – que se presta, sempre, a múltiplas interpretações – e [a] detetar erros que possam ser corrigidos, e erros que possam ter incidência criminal”. E, quanto à capacidade humana e intelectual para restabelecer uma entidade como a IGAL, Ribau Esteves afirma: “Não tenho dúvidas de que algum desse capital existe, e algum se perdeu, ou pela idade da reforma, ou por afetação a outros serviços. É como tudo na vida.”

O vice-presidente da ANMP deixa a questão: “Entendemos que é importante, ou não? Seja uma entidade criada de forma específica, uma direção-geral de dedicação exclusiva, ou capacitar uma entidade como a IGF, é necessário.

Todavia, entende que a capacidade que existe, atualmente, nos serviços da IGF “é insuficiente. Para um trabalho inspetivo de bom nível, e numa ou noutra solução, é preciso recrutar e formar mais recursos”. E, evocando a sua experiência de 27 anos como presidente de câmara, o autarca não duvida de que os recursos humanos que transitaram para a IGF no tempo da troika e que ainda estão no ativo são “gente de grande qualidade”.

Apontando ao artigo do Observador, em que Rita Júdice escreve que é “no âmbito das autarquias locais” que “se centra parte significativa das denúncias de corrupção (48,5% das comunicações feitas ao Mecanismo Nacional Anticorrupção [MENAC] reportam-se a eventos ocorridos no nível autárquico)”, o dirigente da ANMP é corrosivo: “A ministra, na primeira intervenção, afirmou que a maior parte das denúncias que existem tem a ver com câmaras municipais… câmaras há 308, ministérios o país tem uma vintena”.

Na referida conferência, a ministra da Justiça considerou que “é mais eficiente lidar com o fenómeno da corrupção, na fase inicial, intervindo junto dos fatores que o facilitam”, pois, atuar preventivamente tem menos custos, para a sociedade, do que reprimir e tentar reparar os danos causados, depois de consumada”. E reforçou: “O sucesso da nossa ação será maior, se não dermos condições para que a corrupção aconteça. Isso não quer dizer que desconsideramos a importância de um sistema punitivo eficaz e também ele dissuasor. Também não quer dizer que não valorizamos a necessidade de, nos casos concretos, apurar as responsabilidades individuais pelas infrações cometidas.”

Rita Júdice considerou que, até 2011, cabia à IGAL acautelar o cumprimento da lei, fazendo inspeções de rotina às autarquias e analisando denúncias dos cidadãos. Porém, extinto este organismo e fundido com a IGF, esta passou a exercer as competências do extinto. E a ministra entende que a IGF não está “especialmente vocacionada para assegurar, com eficácia, essa missão no que ao exercício da tutela administrativa diz respeito”, particularmente “nas vertentes da contratação pública, do urbanismo e da própria gestão e administração dos órgãos autárquicos”.

A governante notou que a descentralização aumentou e permanece como um pilar fundamental no relacionamento da Administração Central com as autarquias e que os autarcas “reclamam um maior acompanhamento da sua ação”, para aumentar a segurança jurídica no desempenho das suas funções. E o governo, sensível ao tema, dispôs que os três ministérios referidos, com a Presidência do Conselho de Ministros, ponderem alternativas para suprir a lacuna.

A ministra da Justiça, “certa de que daremos um passo em frente na luta contra a corrupção” e de que o governo terá o reconhecimento dos autarcas (“esta medida não é contra os autarcas, nem contra os funcionários autárquicos, nem contra os munícipes”), sustenta que “o sucesso da nossa ação será maior se não dermos condições para que a corrupção aconteça”, o que não contraria “um sistema punitivo eficaz e também ele dissuasor”, bem como “a necessidade de, nos casos concretos, apurar as responsabilidades individuais pelas infrações cometidas, pelo contrário”.

Segundo a governante, uma das pedras angulares do Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC) é o MENAC (produto da ENAC – Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024) responsável pela aplicação do regime sancionatório e pela divulgação e esclarecimento do RGPC junto dos seus destinatários”. Por isso, o executivo comprometeu-se a redefinir a estrutura interna do MENAC e o seu modelo de governação, bem como a superar algumas condicionantes sinalizadas ao recrutamento para o seu mapa de pessoal.

Rita Júdice avança também que está a trabalhar com o Ministério da Educação para incluir na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENAC) um referencial de promoção da ética e da integridade e da prevenção de condutas que afetem o funcionamento do Estado de direito democrático e social.

***

Quem alinha com a governante, na criação de um organismo autónomo para garantir resposta mais ativa à corrupção na área das autarquias é o presidente da Câmara Municipal de Lisboa. “As declarações da ministra fazem sentido. Todas as câmaras deveriam ter um departamento como nós criámos em Lisboa, um departamento anticorrupção e de transparência. Nesse sentido, sabendo que muitas destas queixas, como diz a senhora ministra, vêm das autarquias, faz sentido ter um organismo autónomo para olhar para essas queixas”, disse Carlos Moedas, falando à entrada para o Seminário em Ética, Integridade e Prevenção da Corrupção, destinado a cerca de mil trabalhadores da autarquia lisbonense, a 9 de dezembro.

O autarca frisou a necessidade de “construir uma cultura de prevenção e anticorrupção, nas câmaras municipais”, de definir regras concretas e de criar um canal de denúncias.

***

Por mim, o que importa é atacar a corrupção, com organismo autónomo ou com um já existente, com a condição de ter pessoas suficientes, formação e meios de ação.

2024.12.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário