O modelo de fiscalização das autarquias está a
criar divisões no governo, devido à proposta de criação de uma nova
entidade para o efeito, por parte da titular da pasta da Justiça. A eventual constituição deste organismo
criou discórdia pública entre a ministra da Justiça, Rita Júdice, e o ministro-adjunto
e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida. Todavia, trata-se de uma nova entidade, que, mutatis mutandis, constituiria o
renascimento da extinta aquando da troika, o que
defendem os autarcas, como refere José Ribau Esteves,
vice-presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e presidente
da Câmara Municipal de Aveiro.
O governo colocou
três ministérios à mesa para discutirem a forma de monitorizarem, de forma mais
eficiente, a ação dos 308 municípios e das mais de três mil freguesias do país.
Além dos dois referidos, participou na discussão o Ministério das Finanças, que
tutela a Direção-Geral de Finanças, onde reside a atual equipa de fiscalização
dos municípios, a Inspeção-Geral das Finanças (IGF), bem como a Presidência do
Conselho de Ministros.
A solução há
de resultar desse encontro de posições, pela
discussão de um dos três cenários deixados pela ministra da Justiça, a 9 de
dezembro, numa conferência em Pombal, que assinalou o Dia Internacional
contra a Corrupção.
A conferência sobre o “Regime geral de Prevenção da
Corrupção: obrigações, desafios e boas práticas no contexto das Autarquias
Locais” foi organizada pela Câmara Municipal de Pombal e pela Transparência
Internacional/Portugal.
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O Dia Internacional contra a Corrupção marca a importância da
Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que entrou em vigor a 14 de
dezembro de 2005 e é, atualmente, subscrita por 191 Estados, constituindo
o instrumento jurídico mais abrangente na luta contra este flagelo económico e
social. Neste ano, as Nações Unidas colocam os jovens no centro da temática com
o lema “Unindo-se aos Jovens Contra a
Corrupção: Moldando a Integridade do Amanhã”, para vincar o papel das
novas gerações na construção de uma cultura global de integridade.
Em Portugal, o governo reforça a sua Agenda Anticorrupção,
apostando na educação como um vetor essencial. A estratégia inclui o
fortalecimento de conteúdos curriculares no Ensino Básico e Secundário,
abordando temas como a ética, a literacia financeira, os fenómenos de corrupção
e a relação dos cidadãos com o Estado. O objetivo é capacitar as futuras
gerações para uma análise crítica e escrutínio ativo, promovendo uma sociedade
mais íntegra e consciente.
A celebração do Dia Internacional contra a Corrupção
reafirma, assim, o compromisso coletivo de construir uma sociedade mais justa e
transparente, onde a integridade e a responsabilidade sejam valores fundamentais.
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Os três cenários acima evocados são: dotar a IGF de um núcleo
especializado para a administração local, o que exige o reforço de meios
humanos, como admite o Ministério da Justiça (MJ); criar uma nova entidade, a
solução, inicialmente, proposta por Rita Júdice num artigo de opinião no Observador, jornal online, e imediatamente contestada por Manuel Castro Almeida;
ou, como terceira via, levar esta tarefa de fiscalização para um organismo já
existente e que passe a desempenhar a missão.
O
primeiro cenário é o que parece corresponder melhor à medida 17 da Agenda Anticorrupção, definida pelo governo, em
junho passado, que estabelece o “reforço de meios das inspeções-gerais e da sua
articulação com os órgãos de polícia criminal e [com o] Ministério Público
[MP]”. E, se o problema é a IGF não ter elementos suficientes e suficientemente
formados para o desempenho da fiscalização das autarquias em alguma(s) das
áreas da sua administração, há que dotá-la de mais meios humanos e acionar a execução do teor da medida 31, que preconiza
o estabelecimento de “um programa de formação
avançada para funcionários envolvidos em processos de contratação pública”
– o que é necessário para qualquer solução que se encontre.
Dentro do governo, segundo o que apurou o ECO online, a solução que reúne menos
simpatias é a que foi lida como a apontada por Rita Júdice no Observador, num artigo de opinião
publicado no dia Internacional da Luta contra a Corrupção. Com efeito, no tempo
da troika, foi extinta,
pelo Decreto-Lei n.º 126-A/2011, de 29 de dezembro, artigo 42.º, n.º 3, alínea i), a Inspeção-Geral da Administração
Local (IGAL), sucessora da Inspeção-Geral da Administração do Território (IGAT),
tendo a IGF, com a qual se fundiu a IGAL (Decreto-Lei n.º
126-A/2011, de 29 de dezembro, artigo 2.º, n.º 2, alínea b)), assumido essas funções.
Porém, a governante
sustenta que a IGF “não está especialmente vocacionada para assegurar, com
eficácia, a necessária função de controlo e pedagogia para o cumprimento”.
Ao invés, Manuel Castro Almeida, pouco depois,
contestou a necessidade de tirar o controlo às autarquias da IGF, apontando antes ao aumento da
equipa. Ao Público, este governante
referiu que “o que falta não são serviços, mas inspetores”.
Porém, José Ribau Esteves, alinhado com a
ministra da Justiça relembra o que vem sendo reivindicado pela ANMP, desde o congresso
eletivo de há três anos: “A ANMP tem
uma proposta que repetimos, agora, nas propostas da lei do OE2025 [Orçamento do
Estado para 2025], a de criar uma entidade que já existiu, e que que se dedique,
em exclusivo, à inspeção das autarquias.”
Como
aponta o autarca, “há muitos anos, havia a regra de que todas as câmaras teriam de
ter, pelo menos, uma auditoria por mandato”, mas, quando o país
integrou essa inspeção-geral [IGAL] na IGF, aconteceu uma redução drástica da
capacidade da IGF de fazer este trabalho com as câmaras municipais”.
Ora,
apesar de o senso comum levar a pensar que o inspecionado quer menos inspeção, Ribau
Esteves diz que “os autarcas
lutam por isto, há muito tempo”, pois “são sempre muito desagradáveis os
anátemas”. Além do atual governo, também aos anteriores foi
solicitada esta solução. “É muito importante a atividade inspetiva regular às
câmaras e juntas de freguesia”, insiste o autarca, invocando “questões
pedagógicas”, no sentido de que “as inspeções têm sempre dimensão pedagógica, para
ajudar a interpretar a lei – que se presta, sempre, a múltiplas interpretações –
e [a] detetar erros que possam ser corrigidos, e erros que possam ter
incidência criminal”. E, quanto à capacidade humana e intelectual para
restabelecer uma entidade como a IGAL, Ribau Esteves afirma: “Não tenho dúvidas de que
algum desse capital existe, e algum se perdeu, ou pela idade da reforma, ou por
afetação a outros serviços. É como tudo na vida.”
O vice-presidente da ANMP deixa a questão: “Entendemos que é
importante, ou não? Seja uma
entidade criada de forma específica, uma direção-geral de dedicação exclusiva,
ou capacitar uma entidade como a IGF, é necessário.”
Todavia,
entende que a capacidade
que existe, atualmente, nos serviços da IGF “é insuficiente.
Para um trabalho inspetivo de bom nível, e numa ou noutra solução, é preciso
recrutar e formar mais recursos”. E, evocando a sua experiência de 27 anos como
presidente de câmara, o autarca não duvida de que os recursos humanos que
transitaram para a IGF no tempo da troika e que ainda estão no ativo são “gente de
grande qualidade”.
Apontando ao artigo do Observador,
em que Rita Júdice escreve que é “no âmbito das autarquias locais” que “se
centra parte significativa das denúncias de corrupção (48,5% das comunicações
feitas ao Mecanismo Nacional Anticorrupção [MENAC] reportam-se a eventos ocorridos
no nível autárquico)”, o dirigente da ANMP é corrosivo: “A ministra, na
primeira intervenção, afirmou que a maior parte das denúncias que existem tem a
ver com câmaras municipais… câmaras há 308, ministérios o país tem uma
vintena”.
Na
referida conferência, a ministra da Justiça considerou que “é mais eficiente
lidar com o fenómeno da corrupção, na fase inicial, intervindo junto dos
fatores que o facilitam”, pois, atuar preventivamente tem menos custos, para a
sociedade, do que reprimir e tentar reparar os danos causados, depois de
consumada”. E reforçou: “O sucesso
da nossa ação será maior, se não dermos condições para que a corrupção aconteça.
Isso não quer dizer que desconsideramos a importância de um sistema punitivo
eficaz e também ele dissuasor. Também não quer dizer que não valorizamos a
necessidade de, nos casos concretos, apurar as responsabilidades individuais
pelas infrações cometidas.”
Rita Júdice considerou que, até 2011, cabia à IGAL acautelar o cumprimento da lei, fazendo
inspeções de rotina às autarquias e analisando denúncias dos cidadãos. Porém, extinto
este organismo e fundido com a IGF, esta passou a exercer as competências do extinto.
E a ministra entende que a IGF não está “especialmente
vocacionada para assegurar, com eficácia, essa missão no que ao exercício da
tutela administrativa diz respeito”, particularmente “nas vertentes da contratação
pública, do urbanismo e da própria gestão e administração dos órgãos
autárquicos”.
A governante notou que a descentralização aumentou e permanece como um pilar fundamental no relacionamento
da Administração Central com as autarquias e que os autarcas “reclamam um maior
acompanhamento da sua ação”, para aumentar a segurança jurídica no desempenho
das suas funções. E o governo, sensível ao tema, dispôs que os três ministérios
referidos, com a Presidência do Conselho de Ministros, ponderem alternativas para
suprir a lacuna.
A ministra da Justiça, “certa de que daremos um passo
em frente na luta contra a corrupção” e de que o governo terá o
reconhecimento dos autarcas (“esta medida não é contra os autarcas, nem contra
os funcionários autárquicos, nem contra os munícipes”), sustenta que “o sucesso da nossa ação será maior se não dermos condições para que
a corrupção aconteça”, o que não contraria “um sistema punitivo eficaz e
também ele dissuasor”, bem como “a necessidade de, nos casos concretos, apurar
as responsabilidades individuais pelas infrações cometidas, pelo contrário”.
Segundo a governante, uma das pedras angulares do
Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC) é o MENAC (produto da ENAC – Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024) responsável
pela aplicação do regime sancionatório e pela divulgação e esclarecimento do
RGPC junto dos seus destinatários”. Por isso,
o executivo comprometeu-se a redefinir a estrutura interna do MENAC e o seu modelo de governação, bem como a superar
algumas condicionantes sinalizadas ao recrutamento para o seu mapa de pessoal.
Rita Júdice avança também que está a trabalhar com o
Ministério da Educação para incluir na Estratégia Nacional de Educação para a
Cidadania (ENAC) um referencial de promoção da ética e da integridade e da
prevenção de condutas que afetem o funcionamento do Estado de direito
democrático e social.
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Quem alinha com a governante, na criação de um organismo autónomo para garantir resposta mais ativa à corrupção
na área das autarquias é o presidente da Câmara Municipal de Lisboa. “As
declarações da ministra fazem sentido. Todas as câmaras deveriam ter
um departamento como nós criámos em Lisboa, um departamento anticorrupção e de
transparência. Nesse sentido, sabendo que muitas destas queixas,
como diz a senhora ministra, vêm das autarquias, faz sentido ter um organismo
autónomo para olhar para essas queixas”, disse Carlos Moedas, falando à entrada
para o Seminário em Ética, Integridade e Prevenção da Corrupção, destinado a
cerca de mil trabalhadores da autarquia lisbonense, a 9 de dezembro.
O autarca frisou a necessidade de “construir uma cultura de prevenção e anticorrupção, nas câmaras
municipais”, de definir regras concretas e de criar um canal de
denúncias.
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Por mim, o que importa é atacar a corrupção, com
organismo autónomo ou com um já existente, com a condição de ter pessoas suficientes,
formação e meios de ação.
2024.12.15 –
Louro de Carvalho
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