Em dia da
festa da Sagrada Família, que a liturgia insere no contexto temporal do Natal (nesta
ano, a 29 de dezembro), é preciso continuar na contemplação do mistério do
presépio, colhendo as lições que nos dá, que se podem sintetizar na descida de
Deus à Terra, feito um de nós, não no estatuto dos mais ricos ou dos mais poderosos
política e militarmente, mas na condição dos seres humanos que não têm
estatuto, a ponto de nascerem em abrigo de animais e de serem recostados em manjedouras,
por falta de berços. É este menino humilde e pobre que é o sinal humano e
divino do Deus vivo, criador, redentor e santificador.
Contudo,
devemos descolar do presépio, para começarmos a ver as suas perspetivas de futuro.
Não podemos continuar romanticamente a pensar na vaca ou no burro, no estábulo
ou na manjedoura, que são elementos instrumentais. É preciso ver como se
comportam os pastores, que também não tinham estatuto e viram no menino um ser
como eles, de carne e osso, amparado por uma mulher e por um homem, ou ver como
os magos, que vieram de longe (estrangeiros), O adoraram e presentearam.
Voltar, em
dia da Sagrada Família, à gruta de Belém justifica-se, para vermos como esta família
se comporta no cumprimento dos seus deveres e face a crises familiares.
A alocução do
Papa Francisco, prévia à recitação mariana do Angelus, com os fiéis reunidos na
Praça de São Pedro, em Roma, pode elucidar-nos.
O Santo
Padre considerou que o Evangelho da festa da Sagrada Família (Lc 2,41-52) narra o episódio em que
Jesus, aos doze anos, no final da peregrinação anual da Páscoa a Jerusalém,
desapareceu de Maria e José, que O encontraram, depois, no Templo, a conversar
com os mestres.
Lucas revela
o estado de espírito de Maria, que pergunta ao filho por que motivo procedeu
assim com os pais, que O procuraram “com muita ansiedade”. Ao mesmo tempo, o
evangelista acentua a determinação do menino, ao sustentar que deviam saber que
tinha de estar ocupado nas coisas de seu Pai e, obviamente, na sua casa.
Diz o Papa
que se trata de “uma experiência quase corriqueira de uma família que alterna
momentos calmos e dramáticos”. Parece até uma crise familiar dos nossos tempos
em que um adolescente difícil e dois pais não se compreendem mutuamente.
Não é que
Francisco tenha esquecido o presépio, mas, como a cena se passa quando Jesus
tinha 12 anos, exorta a que paremos para vermos em que “a Família de Nazaré é
modelo”. Neste sentido, adianta que “é uma família que conversa, que escuta,
que fala”. E sentencia: “O diálogo é um elemento importante para uma família!
Uma família que não se comunica não pode ser uma família feliz.”
Depois, sobressai
o facto de a mãe não repreender, mas perguntar (faz lembrar o método socrático no
ensino): “não
acusa, nem julga, mas procura compreender como acolher este Filho tão diferente,
através da escuta”. Contudo, apesar deste esforço, Maria e José, como acentua o
Evangelho, “não entenderam o que Ele lhes disse”, o que mostra ser, na família,
“mais importante ouvir do que compreender”, pois “escutar é dar importância ao
outro, reconhecer o seu direito de existir e de pensar com autonomia”. Por
isso, o Papa recomenda aos pais que ouçam os seus filhos, “que precisam disso”.
E,
em concreto, é de relevar que as horas das refeições são momentos especiais de “diálogo
em família”. Ficarem juntos à mesa e conversar “pode resolver muitos problemas
e, sobretudo, unir as gerações: filhos que falam com os pais, netos que falam
com os avós”. É o cerne do diálogo intergeracional.
Está
implícito o dever de desligar a TV e a rádio, enquanto se está em refeição; e
fica explícita a contraindicação do uso do telemóvel. E o Pontífice insiste no
apelo: “Conversai, ouvi-vos uns aos outros, esse é o diálogo que vos faz bem e
que vos faz crescer!”
“A
Família de Jesus, Maria e José é santa”, diz o Papa, mas destacando que “mesmo
os pais de Jesus nem sempre O compreenderam” e aconselhando a que “não nos
surpreendamos, se, às vezes, não nos entendemos”. Nesses casos, convém que nos
interroguemos se nos ouvimos uns aos outros e se “enfrentamos os problemas,
ouvindo-nos uns aos outros”, ou se nos fechamos no silêncio, “às vezes, no
ressentimento e no orgulho”.
E
Francisco remata: “O que podemos aprender hoje com a Sagrada Família é a escuta
mútua.”
É
a escuta de uns dos outros e a escuta dos desafios da vida.
Na
verdade, o trecho evangélico para a liturgia da festa, no Ano B (Lc 2,22-40), relata o episódio da apresentação
do menino no Templo e a oferta sacrificial imposta pela Lei de Moisés, bem como
a identificação de Jesus como luz das nações e glória do povo e a predição do sofrimento
de Maria. Porém, releva a vida em família: “O Menino crescia e robustecia-Se, enchendo-Se
de sabedoria; e a graça de Deus estava com Ele.”
E
o trecho evangélico para a liturgia da festa no Ano A (Mt 2,13-15.19-23) relata o episódio da fuga para o Egito, por ordem
do Anjo do Senhor, pois Herodes iria procurar o Menino para O Matar, bem como o
regresso, também por ordem do Anjo, porque Herodes tinha morrido. Enfim, uma família
de emigrantes e de retornados!
***
Ora,
a liturgia da festa não é parca em ditames de orientação para a vida em família.
De facto, o trecho da Carta paulina aos Colossenses (Cl 3,12-21), assumido como segunda leitura, nesta liturgia, pode
ser entendido como um manual de bons procedimentos em família. Assim, a unidade
e harmonia que emolduram a Igreja, a grande Família dos filhos de Deus, devem
existir na “Igreja doméstica”, que é a família cristã. Em ambas, deve presidir
o amor, a eivar toda a atividade, unindo todos os membros, apesar da diversidade
de funções a desempenhar.
Vivendo
no amor, a família vencerá, na paciência e no perdão, a conflitualidade que
emerge a cada passo; atrairá sobre si a paz de Cristo; promoverá a mútua compreensão
e a genuína sabedoria; e continuará, através dos seus membros, a vida de louvor
e de ação de graças ao Pai, iniciada por Cristo.
Já
a primeira leitura (Sir 3,3-7.14-17a)
mostra como é salutar honrar o pai (“quem honra seu pai obtém o perdão dos
pecados […]; “encontrará alegria nos filhos e será atendido na sua oração […];
terá longa vida e será o conforto de sua mãe”) e honrar a mãe faz acumular um
tesouro.
Além
disso, a passagem bíblica especifica os termos da honra ao pai – e, obviamente,
à mãe: amparar-lhe a velhice; não o desgostar; ser indulgente, se a mente lhe
enfraquecer; não o desprezar. E as compensações serão: essa caridade não será
esquecida e converter-se-á em desconto dos pecados do filho.
***
A Igreja,
celebrando a festa da Sagrada Família, convida todos a olhar para Jesus, Maria
e José, que tiveram de enfrentar, desde o início, os perigos do exílio no
Egito, mas, sempre a mostrar que “o amor é mais forte do que a morte”. As três
personalidades em causa são um reflexo da Trindade e modelo de cada família.
A festa
incentiva a aprofundar o amor familiar, a examinar a situação do próprio lar e a
buscar soluções que ajudem o pai, a mãe e os filhos a serem cada vez mais como
a Família de Nazaré.
Ao celebrar
esta data, em 2013, o Papa Francisco frisou que o “nosso olhar, hoje, para a
Sagrada Família se deixa atrair também pela simplicidade da vida que ela pratica
em Nazaré, sendo “um exemplo que faz tanto bem às nossas famílias, as ajuda a tornarem-se
sempre mais comunidades de amor e de reconciliação, na qual se experimenta a
ternura, a ajuda mútua, o perdão recíproco”.
A vida
familiar não pode ser reduzida a problemas de relacionamento, deixando de lado
os valores transcendentes, já que a família é o sinal do diálogo entre Deus e o
homem. Pais e filhos devem estar abertos à Palavra e ouvir, sem esquecer a
importância da oração familiar que une fortemente os membros da família.
São João
Paulo II, conhecido como o papa das famílias, no Angelus desta festa, em 1996, destacou que “a mensagem que vem da
Sagrada Família é, antes de tudo, uma mensagem de fé: a casa de Nazaré é aquela
onde Deus está verdadeiramente no centro”.
“Para Maria
e José, esta opção de fé concretiza-se no serviço ao Filho de Deus que lhes foi
confiado, mas exprime-se também no seu amor recíproco, rico de ternura
espiritual e de fidelidade”, disse o Papa polaco.
Em muitas
ocasiões, São João Paulo II reforçou a importância da vivência da fé em
família, por meio da oração. “A família que reza unida permanece unida”, dizia,
sugerindo que juntos rezassem o terço.
Para São
Paulo VI, como referiu, em Nazaré, em 1964, “Nazaré é a escola onde se começa a
compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho.”
“Aqui se
aprende a olhar, a escutar, a meditar e penetrar o significado, tão profundo e
tão misterioso, dessa manifestação tão simples, tão humilde e tão bela, do
Filho de Deus. Talvez se aprenda até, insensivelmente, a imitá-Lo”, considerava
o Papa Montini.
Aqui se
aprende o método que permite compreender o Cristo, se descobre a necessidade de
observar o quadro da sua permanência entre nós: lugares, tempos, costumes, linguagem,
práticas religiosas, tudo aquilo de que Jesus se serviu para Se revelar ao Mundo.
Tudo fala e tem sentido. Compreende-se “a necessidade de uma disciplina
espiritual para quem quer seguir o ensinamento do Evangelho e ser discípulo do
Cristo”.
Não podendo
o Pontífice, como gostaria, voltar à infância e seguir a “humilde e sublime escola
de Nazaré”, junto a Maria, para “recomeçar a adquirir a verdadeira ciência e a
elevada sabedoria das verdades divinas”, São Paulo VI quis partir antes de
colher, à pressa e quase furtivamente, algumas lições de Nazaré.
Primeiro, a
lição de silêncio. Propõe a estima pelo silêncio, como indispensável condição
do espírito, ante o assédio de tantos clamores, de ruídos e de gritos na vida
moderna barulhenta e hipersensibilizada. O silêncio de Nazaré ensina “o
recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e
as palavras dos verdadeiros mestres”, bem como “a necessidade e o valor das
preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que
só Deus vê no segredo”.
Uma lição de
vida familiar. Nazaré ensina “o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua
beleza simples e austera, o seu caráter sagrado e inviolável”, pelo que devemos
aprender de Nazaré “quanto a formação que recebemos é doce e insubstituível” e
qual é a função primária da família no plano social.
Uma lição de
trabalho. Nazaré é a casa do “filho do carpinteiro”, onde “gostaríamos de
compreender e de celebrar a lei, severa e redentora, do trabalho humano”; de “restabelecer
a consciência da nobreza do trabalho”; e de “lembrar que o trabalho não pode
ser um fim em si mesmo, mas que a sua liberdade e nobreza, mais do que do seu
valor económico, resultam dos valores que constituem o seu fim.
Finalmente,
São Paulo VI saudou todos os trabalhadores do Mundo inteiro e mostrou-lhes “o seu
grande modelo, o seu divino irmão, o profeta de todas as causas justas, o
Cristo nosso Senhor”.
2024.12.29 – Louro de Carvalho
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