terça-feira, 31 de dezembro de 2024

É desajustado, com o Papa em exercício, discorrer sobre cardeais papáveis

 

Dois jornalistas que acompanham os assuntos do Vaticano tentam responder, através de um site da Internet (em Inglês), disponível desde 12 de dezembro de 2024, sobre os cardeais que poderão ser eleitos Papa e sobre o que pensam quanto a matérias fraturantes. O objetivo de “The College of Cardinals Report” (Relatório do Colégio dos Cardeais) é informar os purpurados eleitores que, em data imprevisível, se reunirão em conclave, na Capela Sistina.

Fruto de aturada investigação, o site dispõe da possibilidade de consultas interativas, que permitem saber da posição de um cardeal sobre determinado assunto, de uma lista que foi pré-definida, o que mostra, nesta iniciativa, a existência de sinais de uma intencionalidade ou, mesmo, de um projeto ideológico acalentado pelos jornalistas responsáveis por este trabalho.   

Edward Pentin, consultor e conferencista em temas do Vaticano, trabalha para o conservador National Catholic Register; e Diana Montagna, que nasceu nos Estados Unidos da América (EUA), que teve vários empregos em Itália e foi jornalista do site ultraconservador LifeSiteNews, é, atualmente, jornalista correspondente em Roma para o Catholic Herald, publicação afeta aos setores contestatários do Papa. Ambos se movimentam em meios que, sem chegar ao extremo dos “sedevantistas”, se distanciam da orientação do pontificado do atual e a combatem, considerando que Francisco colocou a Igreja Católica em “tempo de escuridão”, graças ao eclipse da luz do magistério dos dois pontificados anteriores e à confusão e ambiguidade doutrinal. Os tópicos em torno dos quais inquirem o currículos e, sobretudo, as declarações e escritos dos potenciais candidatos a Papa são, para eles, indicadores que poderão influenciar as opções do conclave. 

Quem são e o que defendem os “papabili”? As respostas têm em conta a adesão, a discordância ou a ambiguidade face aos temas: ordenação de mulheres como diáconos; bênção de casais do mesmo sexo; celibato sacerdotal opcional; restrição da antiga missa; acordos secretos entre o Vaticano e a China; promoção de Igreja sinodal; foco nas mudanças climáticas; reavaliação da Humanae Vitae; comunhão para divorciados e recasados; e ‘Caminho Sinodal’ da Alemanha.

Esquecem que, tecnicamente, qualquer batizado pode ser eleito. E, se não for bispo, terá de receber, a seguir à eleição, a ordem episcopal.

A lista é marcada de ênfases e de silêncios, desde logo no atinente à doutrina social da Igreja (nomeadamente desigualdades sociais; transformações do mundo do trabalho; migrações; paz e guerra; indústria e comércio de armas; discursos de ódio e desinformação; entre outros), e também ao diálogo inter-religioso, ao ecumenismo, à evangelização, etc.

Quanto aos nomes da lista dos potenciais candidatos incluídos, a questão que algumas análises levantam é a redução do conclave, que é processo complexo e surpreendente, a mero jogo político, onde a dimensão espiritual se dilui. Por outro lado, a lista inclui nomes (como o do cardeal Raymond Burke ou o do cardeal Robert Sarah) que, embora formalmente possíveis, estiveram envolvidos, cada um a seu modo, em comportamentos que só uma Igreja desassisada os poderia escolher. Outros purpurados figuram com os 80 anos ultrapassados, o que os torna bastante improváveis. E outros estão já perto dessa idade, de modo que, se o conclave tardar, já não serão eleitores. Um motivo do projeto relaciona-se com o facto de Francisco ter deixado de convocar o consistório dos cardeais para debater assuntos prementes da vida da Igreja, abrindo a formação de um verdadeiro “colégio”. A orientação de Bergoglio de escolher bispos das periferias e de dioceses improváveis tornaria complicadas as decisões, se Francisco morresse ou renunciasse.

Segundo Sandro Magister, vaticanista crítico do Papa, a primeira e última vez em que houve debate vivo entre cardeais foi em 2014 e não teria corrido bem para Francisco. Essas reuniões constituíam oportunidade para os purpurados se conhecerem melhor e, assim, estarem mais habilitados para eventual eleição. A revista “Cardinalis”, agora associada à iniciativa de Pentin e de Montagna, e a editora Sophia Institute Press, já tinham essas preocupações e deram voz a algumas das figuras mais conservadoras. 

Este é um trabalho em permanente atualização, tendo os dois coordenadores ligados ao produto final pessoas a trabalhar no sentido de juntarem mais informação à existente e de introduzir novos cardeais eleitores na lista publicada. E, para tanto, há financiamento assegurado. Com efeito, em 2018, vários meios de comunicação social que cobrem a atualidade da Igreja Católica anunciaram existir, nos EUA, a previsão do fundo de um milhão de dólares. Não se encontra informação de ligação direta entre o agora publicado e a intencionalidade de há anos, mas os círculos de pessoas e organizações, se não são os mesmos, têm ligações e os objetivos convergentes.

Na lista de algumas dezenas de cardeais que poderiam vir a ser eleitos papa, o português Tolentino Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação é apresentado como possível numa segunda linha. Verifica-se que, nos itens considerados, pesa a dúvida ou a ignorância sobre o posicionamento do português. Mas a apreciação qualitativa que dele se faz aponta no sentido da colagem à ala dos que defendem uma linha de continuidade com o atual Pontificado.

Em geral, reconhece-se que, a verificarem-se certas circunstâncias, pode ser um candidato forte. Sublinha-se-lhe a larga trajetória, que toca um leque significativo de vertentes, a sua origem africana e a sua atitude geral de “evitar o confronto”. Sublinha-se que está muito próximo do atual Papa, valorizando a sinodalidade como o futuro da Igreja. Porém, diz-se que possui competências de administração bastante pobres, desvaloriza-se a vertente poética, dizendo que é mais reconhecido pela sociedade do que pela Igreja. E conclui-se que, apesar da sua relativa juventude, não se deve subestimar o seu estatuto papável no Colégio Cardinalício. Para os cardeais eleitores que desejam um candidato de continuidade, alguém heterodoxo e modernista, com um impulso revolucionário ainda maior do que Francisco, o purpurado madeirense pode ser o candidato ideal.

Pela “ficha” de Tolentino, imagina-se que houve um verdadeiro trabalho de escrutínio da vida dos cardeais eleitores, incluindo o seu círculo de relações e os escritos, nomeadamente, as entrevistas dadas. Essas fontes que, pelo menos, neste caso, não são nomeadas, podem ter papel decisivo quanto à visão que constroem de cada um dos homens do barrete cardinalício.

Resta acrescentar que a lista dos eleitores inclui, naturalmente, fichas para os cardeais Manuel Clemente, António Marto e Américo Aguiar.

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A maioria dos livros e tratados que foram escritos sobre papas concentraram-se na natureza e na extensão da sua autoridade, isto é, o que o papa pode governar, ficando ao lado como o papa deve governar e que tipo de qualidades um cardeal deve ter para ser digno do papado.

O bispo de Roma é o sucessor de Pedro, não de Cristo; é o Vigário de Cristo na terra, não o substituto. Assim, a figura de Pedro na Sagrada Escritura pode ensinar muito sobre as qualidades necessárias a um papa. Após a Ressurreição, Jesus aproximou-se de Pedro, que o havia negado, e perguntou: “Tu amas-me?” E ordenou-lhe: “Cuida das minhas ovelhas, alimenta as minhas ovelhas” (vd Jo 21,15-17). Tais palavras manifestam virtudes fundamentais necessárias no coração do futuro papa. É certo que os bispos devem ter essas qualidades, mas, no papa, devem ser preeminentes: “Por instituição divina, os bispos sucederam aos Apóstolos por meio do Espírito Santo que lhes foi dado. São constituídos pastores na Igreja, para serem mestres da doutrina, e os sacerdotes do culto sagrado e os ministros do governo” (CIC, can. 375).

Um papa deve ser alguém cujo amor por Cristo se estende a todos os membros do Corpo Místico de Cristo, o rebanho do qual Cristo é o Bom Pastor. Ao invés do político, cujo foco é esta vida, o papel principal de um papa é ajudar a pastorear milhões de almas com segurança para a próxima. A sua caridade, portanto, deve ser tal que possa “cuidar” do rebanho, por meio do papel real de governança, e “alimentar” as ovelhas por meio do papel sacerdotal de santificar na liturgia e por meio do papel profético de ensinar a sã doutrina. Pedro oferece um desenvolvimento desses temas, exortando os ordenados ao sacerdócio: “Apascentai o rebanho de Deus, que está a vosso cargo, não por força, mas voluntariamente; não por ganho vergonhoso, mas de boa vontade; não como dominadores sobre os que estão a vosso cargo, mas servindo de exemplo ao rebanho. E, quando o Sumo Pastor se manifestar, obtereis a coroa imperecível da glória” (1Pe 5,2-4). Além disso, o papa, como alguém que será cingido por outro e levado a lugares que não deseja ir, deve ser humilde e dócil aos planos da providência divina (Jo 21,18). Como sucessor de Pedro, a “rocha” sobre a qual a Igreja visível foi fundada (Mt 16,18), o pontífice romano precisa de ser forte em caráter e fé. Como alguém que detém as “chaves do reino dos céus”, que pode “ligar e desligar” (Mt 16,19), o papa deve ser alguém que julga com justiça, temperado com misericórdia, à luz do bem das almas e da sua salvação eterna. Também deve confirmar os fiéis na Fé da Igreja, transmitida pela tradição, e zelar pelo respeito à ortodoxia, deveres que equivalem ao papel principal de Pedro: manter a unidade da Igreja.

Todas as pessoas na Terra são chamadas a ser santas, mas a santidade é repartida de forma diferente, de acordo com as diferentes vocações. Quando o seu discípulo monástico foi eleito Papa Eugénio III (1145), São Bernardo de Claraval decidiu continuar a sua instrução com um tratado sobre como ser papa santo, intitulado Sobre a Consideração. O conselho do monge cisterciense ecoaria nos ouvidos dos papas ao longo dos séculos. Bento XIV (1740-58) avaliou o tratado tão bem que o considerou a regra pela qual a santidade papal é medida e, em seu tratado sobre a canonização dos santos, resumiu o “conselho de ouro” de São Bernardo. 

Os pontos principais, que se seguem, dão uma pista sobre o que procurar em cardeais considerados papáveis: o papa não deve estar absorvido em atividades, mas deve lembrar-se de que o seu trabalho principal é edificar a Igreja, rezar e ensinar o povo; acima de todas as outras virtudes, um papa deve cultivar a humildade (quanto mais for elevado acima dos outros, mais deve se manifestar a sua humildade); o zelo de um papa deve considerar a sua santidade pessoal, e não honras mundanas; um papa deve ter amigos conhecidos pela sua bondade; como as estruturas de poder recebem, mais facilmente, os homens bons do que os tornam bons, o papa deve esforçar-se para promover os que demonstraram virtude; ao lidar com os ímpios, o papa deve voltar o seu rosto contra eles (“que tema o espírito de sua ira aquele que não tem medo do homem; que tema suas orações aquele que desprezou sua admoestação”); um papa deve escolher cardeais entre os homens mais eminentes em conhecimento e virtude, os que são pastores bons e bem qualificados; um papa deve nomear bons bispos, garantir que cumpram os seus deveres e, se necessário, obrigá-los; os papas devem ter zelo pela propagação da fé católica, pelo encorajamento e restauração da disciplina eclesiástica e pela defesa dos direitos da Santa Sé.

Alguém perguntará qual o papel do Espírito Santo nisto. Certamente a ajuda divina é invocada antes da votação, mas cada papa é realmente a “escolha de Deus”? Após a publicação das novas regras de São João Paulo II sobre as eleições papais, o cardeal Ratzinger explicitou: “Eu diria que o Espírito não assume exatamente o controlo do assunto, mas como um bom educador, por assim dizer, nos deixa muito espaço, muita liberdade, sem nos abandonar inteiramente. Assim, o papel do Espírito deve ser entendido em sentido muito mais elástico, e não do que ele dite o candidato em quem se deve votar.”

O velho ditado sobre eleições papais de que um “papa gordo segue um magro” significa que o pontífice recém-eleito pode ter visão oposta à de seu antecessor, ou talvez mais liberal do que o papa conservador a quem sucede, e vice-versa. Outro velho ditado sobre conclaves é que um homem que entra em conclave como papa sai como cardeal. E o facto de um papa nomear a grande maioria dos cardeais não garante que elegerão alguém como ele. Quem quer que seja escolhido, e por mais ou menos que os cardeais eleitores ouçam a Deus na sua escolha, o homem, se for bispo, torna-se papa no momento em que aceita, verbalmente, a eleição.

Porém, é de mau tom, levantarem-se estas questões na vigência do atual pontificado

2024.12.31- Louro de Carvalho

Natal: festa sofrida de Deus ao encontro do homem que sofre

 

O Natal é festa de Deus. Com efeito, a encarnação do Verbo de Deus é a manifestação jubilosa do Deus que Se expande no ser humano, por Si criado à sua imagem e semelhança. Todavia, as circunstâncias do Mundo, como a desatenção e as indiferenças dos homens ou a necessidade de cumprir os imperativos – ora justos, ora caprichosos – das leis humanas – ditaram que o nascimento do Menino de Belém acontecesse na pobreza de um presépio, porque não havia lugar, na hospedaria, para os pais e, por consequência para Ele.

E, enquanto os pastores, gente sofrida, avisados pelo anjo (e ouvido o coro angélico), correram a Belém e os magos – estrangeiros estudiosos – se puseram a caminho e chegaram tarde, mas a tempo, a sanha herodiana ditou a decisão da morte do recém-nascido. E, embora os pais, avisados pelo anjo, tivessem fugido com Ele, para o Egito, a mortandade impendeu sobre os outros meninos de Belém e arredores.   

E a saga da rejeição continuou até à sua morte pela cruz. Enfim, veio para o que era seu, mas os seus não O receberam. Não obstante, a ressurreição validou a finalidade redentora da cruz e foi inaugurada uma nova era para a Humanidade, tantas vezes desfigurada pelos erros humanos, que sepultam tantas pessoas na pobreza e no sofrimento de tantas modalidades e esmagam, tantos povos pela opressão e pelo esbulho dos seus recursos.

O Deus sofrido, em razão da maldade humana, transparece na Bíblia e na doutrina das Igrejas cristãs. E, para o sofrimento dos seres humanos, convoquei dois textos poéticos (um de Bocage e outro de Manuel Alegre). Espero que nem um nem outro levem a mal.

Natal

Se considero o triste abatimento
Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.

Mas súbito me diz o pensamento,
Para aplacar-me a dor que me traspassa,
Que Este que trouxe ao Mundo a Lei da Graça,
Teve num vil presepe o nascimento.

Vejo na palha o Redentor chorando,
Ao lado a Mãe, prostrados os pastores,
A milagrosa estrela os reis guiando.

Vejo-O morrer depois, ó pecadores,
Por nós, e fecho os olhos, adorando
Os castigos do Céu como favores.

Manuel Maria Barbosa du Bocage

Natal agora

Neste solstício de inverno ele vai nascer

algures no Mundo entre ruínas

no lugar do não ser ele vai nascer

deitado nas palhinhas entre

bombas naufrágios minas

cada mulher que foge o traz no ventre

o mesmo coração um só destino

algures no mundo ele vai ser

em todos os meninos o menino.

 

Manuel Alegre

 

 

***

Não serão os melhores poemas de Natal, mas evidenciam o sofrimento humano, quer o do indivíduo que, em vez de realizar os seus legítimos sonhos, sente a agrura da vida e até o desespero, quer o daquelas pessoas se sentem a necessidade da fuga à guerra, à fome e à peste, as quais agora assumem novas vertentes, cada vez mais iníquas.

No primeiro dos poemas, o poeta sente-se abatido pela desgraça, despedaçado pela desesperação e fragilizado pelo sofrimento. Porém, a lembrança do Natal livra-o do sepultamento no fatalismo, pois Jesus, “que trouxe ao Mundo a Lei da Graça” sofreu, nascendo “num vil presepe”.

E Bocage começa por, em ambiente presepial, ver o Redentor a chorar (Ele, efetivamente, veio, não para ficar no presépio, mas para nos redimir), visualiza os pastores prostrados e vislumbra a estrela a guiar os magos (que a tradição chama reis). Por fim, desligando-se do presépio, transporta-se para o Calvário a ver o Cristo nascido em Belém morrendo pelos pecadores, que somos nós. E a apóstrofe que gravita em torno do “ó pecadores” fá-lo passar à adoração e a tomar como favores os castigos do Céu.

Por seu turno, Manuel Alegre fixa-se no Natal de agora. É no solstício de inverno que o Menino nasce, mas pode ser noutro momento do ano. Porém, o inverno está aqui pela antonomásia da escuridão, do abandono, do sofrimento, das condições sub-humanas.

Com efeito, hoje, o menino, que nem tem rosto, nem nome, nascerá em lugar incógnito (“algures”) no Mundo de ruínas e num contexto de não reconhecimento da dignidade humana. Tantos seres humanos a quem não se reconhece o estatuto de pessoa (“vai nascer … no lugar do não ser)!

Vai ficar deitado, não em palhinhas das cerealíferas, mas nas palhinhas das bombas, das minas (são as guerras a invadir diversos territórios e a perpetrar autênticos genocídios, porque os outros são marginais, criminosos e terroristas) e dos naufrágios (mormente os resultantes da migração forçada e explorada por oportunistas do dinheiro proveniente da desgraça alheia).

E o poeta, deixando em aberto qualquer outra interpretação, sublinha o sofrimento da mulher (das muitas mulheres) que tem de fugir com o filho no ventre – é “o mesmo coração um só destino”, mas para colocar o seu menino entre os outros meninos.

Talvez sem o querer dizer, está subjacente o teor do texto evangélico, segundo o qual Jesus Cristo Se identifica naqueles que sofrem e, obviamente, nas crianças para quem a sorte se tornou em infortúnio. E elas devem ter o berço e o acolhimento que Jesus não teve. Têm direito a isso!   

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Por fim, penso que é de refletir na pregação natalícia do Papa São Leão Magno sob o tema “O Natal do Senhor é o Natal da Paz”:

 “O estado de infância, que o Filho de Deus assumiu, sem considerá-la indigna da sua grandeza, foi-se desenvolvendo com a idade até chegar ao estado de homem perfeito e, tendo-se consumado o triunfo da sua paixão e ressurreição, todas as ações próprias do seu estado de aniquilamento que aceitou por nós tiveram o seu fim e pertencem ao passado. Porém, a festa de hoje renova, para nós, os primeiros instantes da vida sagrada de Jesus, nascido da Virgem Maria. E, enquanto adoramos o nascimento de nosso Salvador, celebramos também o nosso nascimento.

Efetivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão; o Natal da Cabeça [da Igreja – Cristo] é também o natal do Corpo [Igreja, povo de Deus].

Embora cada um tenha sido chamado num momento determinado para fazer parte do povo do Senhor, e todos os filhos da Igreja sejam diversos na sucessão dos tempos, a totalidade dos fiéis, saída da fonte batismal, crucificada com Cristo na sua Paixão, ressuscitada na sua Ressurreição e colocada à direita do Pai na sua Ascensão, também nasceu com ele neste Natal.

Todo o homem que, em qualquer parte do Mundo, acredita e é regenerado em Cristo, liberta-se do vínculo do pecado original e, renascendo, torna-se um homem novo. Já não pertence à descendência do seu pai segundo a carne, mas à linhagem do Salvador, que Se fez Filho do homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus. Se Ele não tivesse descido até nós na humildade da natureza humana, ninguém poderia, por seus próprios méritos, chegar até Ele.

Por isso, a grandeza desse dom exige de nós uma reverência digna do seu valor. Pois, como nos ensina o santo Apóstolo, nós não recebemos o espírito do mundo, mas recebemos o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos os dons da graça que Deus nos concedeu (1Cor 2,12). O único modo de honrar dignamente o Senhor é oferecer-Lhe o que Ele mesmo nos deu.

Ora, no tesouro das liberalidades de Deus, que podemos encontrar de mais próprio para celebrar esta festa do que a paz, que o canto dos anjos anunciou, em primeiro lugar, no nascimento do Senhor? É a paz que gera os filhos de Deus e alimenta o amor; ela é a mãe da unidade, o repouso dos bem-aventurados e a morada da eternidade; a sua função própria e o seu benefício especial é unir a Deus os que ela separa do Mundo.

Assim, aqueles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1,13) ofereçam ao Pai a concórdia dos filhos que amam a paz, e todos os membros da família adotiva de Deus se encontrem naquele que é o Primogénito da nova criação, que não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que O enviou. Pois a graça do Pai não adotou como herdeiros pessoas que vivem separadas pela discórdia ou oposição, mas unidas nos mesmos sentimentos e no mesmo amor. É preciso que tenham um coração unânime os que foram recriados segundo a mesma imagem. O Natal do Senhor é o natal da paz. Como diz o Apóstolo, Cristo é a nossa paz, ele que de dois povos fez um só (cf Ef 2,14); judeus ou gentios, num só Espírito, temos acesso junto ao Pai (Ef 2,18).”

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O Natal leva-nos a tomar consciência da nossa dignidade de seres humanos e de cristãos. São Leão Magno dá testemunho dessa realidade, com o apelo: “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade!”

“Hoje, amados filhos, nasceu o nosso Salvador. Alegremo-nos. Não pode haver tristeza no dia em que nasce a vida; uma vida que, dissipando o temor da morte, nos enche de alegria, com a promessa da eternidade.

Ninguém está excluído da participação nesta felicidade. A causa da alegria é comum a todos, porque Nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado ninguém isento de culpa, veio libertar a todos. Exulte o justo, porque se aproxima da vitória; rejubile o pecador, porque lhe é oferecido o perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida.

Quando chegou a plenitude dos tempos, fixada pelos insondáveis desígnios divinos, o Filho de Deus assumiu a natureza do homem para reconciliá-lo com o seu criador, de modo que o demónio, autor da morte, fosse vencido pela mesma natureza que antes vencera.

Eis porque, no nascimento do Senhor, os anjos cantam jubilosos: Glória a deus nas alturas; e anunciam: Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14). Eles veem a Jerusalém celeste ser formada de todas as nações do Mundo. Diante dessa obra inexprimível do amor divino, como não devem alegrar-se os homens, em sua pequenez, quando os anjos, em sua grandeza, assim se rejubilam?

Amados filhos, demos graças a Deus Pai, por seu Filho, no Espírito Santo; pois, na imensa misericórdia com que nos amou, compadeceu-se de nós. E, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, Ele deu-nos a vida com Cristo (Ef 2,5) para que fôssemos Nele uma nova criação, nova obra de suas mãos. Despojemo-nos, portanto, do velho homem com seus atos; e, tendo sido admitidos a participar do nascimento de Cristo, renunciemos às obras da carne.

Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza divina, não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição. Lembra-te de que cabeça e de corpo és membro. Recorda-te que foste arrancado do poder das trevas e levado para a luz e o reino de Deus. Pelo sacramento do batismo te tornaste templo do Espírito Santo. Não expulses com más ações tão grande hóspede, não recaias sob o jugo do demónio, porque o preço da tua salvação é o sangue de cristo.”

2024.12.31 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Perseguição religiosa contraria libertação trazida pelo Natal de Cristo

 

Cristo veio ao Mundo com vista à fraternidade. Porém, nem sempre os seus seguidores estiveram em sintonia com este desígnio e fizeram vítimas ocasionais e em massa, quando, sentindo-se a pisar terreno seguro, se tornaram intolerantes para quem tinha ideias práticas diferentes.

Simultaneamente, sofrem a perseguição por ódio à fé ou por excesso de ira, sob a capa de atentado à cultura ou à ordem pública. Nesta quadra natalícia, também se registam exemplos.  

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De acordo com a agência Fides (agência de informação das Obras Missionárias Pontifícias), em 2024, foram assassinados 13 “missionários” católicos em todo o Mundo, sendo oito sacerdotes e cinco leigos. África, com seis vítimas, e América, com cinco, lideram a lista, facto que se vem repetindo ao longo dos últimos anos. Entre 2000 e 2024, o número total de missionários e agentes pastorais assassinados ascende a 608. Em África, neste ano, foram assassinados seis homens (dois no Burkina Faso, um nos Camarões, um na República Democrática do Congo e dois na África do Sul); na América, cinco (um na Colômbia, um no Equador, um no México, um nas Honduras e um no Brasil); e, na Europa dois, (um na Polónia e um em Espanha).

Na Europa, regista-se o assassinato do espanhol Juan Antonio Llorente, de 76 anos, frade franciscano da Imaculada Conceição, e do padre polaco Lech Lachowicz, de 72 anos. O primeiro perdeu a vida no mosteiro onde morava, em Gilet, na Espanha, quando um homem armado com uma vara e com uma garrafa de vidro entrou, gritando “Eu sou Jesus Cristo”, e começou a espancar todos os frades que encontrava. Vários franciscanos ficaram feridos e foram levados ao hospital de Valência. Juan Antonio faleceu, devido a graves pancadas na cabeça. O segundo, que era prior da igreja de Santo Alberto, em Szczytno, cidade no norte da Polónia, foi atacado por um homem de 27 anos, munido de um machado, cujo objetivo seria roubar a igreja.

A lista da Fides não refere apenas missionários ad gentes em sentido estrito, mas considera que as definições de “missionário” e de “missionária” incluem todos os católicos envolvidos em obras e em atividades pastorais. Os missionários e agentes de pastoral que integram a lista não estavam no centro das atenções por obras ou por compromissos de relevo, mas trabalhavam para dar testemunho da fé na vida quotidiana das comunidades que serviam. E a causa da sua morte violenta nem sempre pode ser atribuída, explicitamente, ao “ódio à fé”, sendo mais frequentemente relacionada com a sua ação em prol da comunidade.

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A violência atingiu níveis preocupantes e nunca antes vistos, no México, que se traduzem em atos de perseguição religiosa. Desde 1990, foram assassinados 80 padres no país, enquanto muitos outros sofreram ameaças de morte, roubos e agressões físicas, como consta de um relatório divulgado, a 13 de dezembro, pelo Centro Católico Multimédia (CCM), organização que monitoriza a violência contra membros da Igreja Católica, no México.

Foi durante o mandato de seis anos do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador (no poder entre 2018 e 2024), que se atingiu o maior nível de homicídios da História moderna do México, somando um total de 199621, um aumento da violência que ocorreu no âmbito da controversa política governamental de “abraços, não balas” contra o crime organizado.

Para o padre Omar Sotelo Aguilar, diretor do CCM, o “vazio de poder e o desmantelamento do Estado de direito” obrigou agentes pastorais e ministros de outras igrejas a assumirem “o papel que as autoridades recusaram” por incapacidade, ou “pior ainda, por viverem em conluio com os praticantes do mal e do crime, num binómio destrutivo: corrupção e impunidade”.

De acordo com o relatório do CCM, durante o mandato de seis anos de López Obrador, houve dez padres assassinados, outros 14 padres e bispos atacados, uma média semanal de 26 templos atacados, profanados ou agredidos e quase 900 casos de extorsão e ameaças de morte contra membros da Igreja Católica. E a gestão da nova presidente, Claudia Sheinbaum, não parece trazer melhorias a este nível. Logo no início de outubro, poucos dias após a sua tomada de posse, ocorreu o assassinato do padre Marcelo Pérez, morto a tiros por dois homens, após ter celebrado missa. O presbítero era conhecido como firme defensor do povo indígena de Chiapas e “incansável apóstolo da paz”. O diretor do CCM teme que possa haver mais sangue, mais situações de violência, tendo em conta que, desde que Sheinbaum chegou ao poder, “ocorreram massacres, em vários lugares do país”, contra civis. Além disso, existem “extorsões e ameaças de morte contra vários sacerdotes no México”, o que mostra que a situação “está latente”.

“Não queremos isso, espero que estejamos errados”, ressalva, mas conclui, reconhecendo que “as tendências são, infelizmente, desfavoráveis”.

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Na Índia, a poucos dias do Natal, as famílias cristãs do estado central de Chhattisgarh eram perseguidas por grupos de nacionalistas hindus, que as pressionavam a deixar as suas casas e as proibiam de celebrar o nascimento de Jesus.

Em algumas aldeias, os órgãos do poder local aprovaram uma resolução, no final de novembro, segundo a qual os cristãos, nessas localidades, tinham de deixar a sua fé ou renunciar a ela e, caso não o fizessem, todos os seus campos, pertences e propriedades seriam saqueados. Segundo o jornal “Crux”, aproximadamente 100 cristãos são afetados por esta ordem.

O assunto foi levado ao conhecimento do chefe de uma das aldeias afetadas, que confirmou a resolução, alegando que a norma do conselho da aldeia substitui a da Constituição indiana, cujo artigo 25.º garante o direito à liberdade de religião ou de crença.

Nos últimos dias, várias famílias cristãs viram as suas colheitas saqueadas, com a polícia a recusar-se a registar as suas queixas pelo ocorrido e a oferecer qualquer assistência.

O padre Thomas Vadakumkara, assessor de imprensa da diocese de Jagadalpur, afirma que situações equivalentes estão a afetar “quase todos os cristãos, em muitos distritos”. “Os direitos humanos básicos são recorrentemente negados aos cristãos: enterro dos fiéis, permanecer nas suas próprias terras, cultivar e colher nos seus campos e fazendas”, diz o sacerdote, citado pelo jornal “Crux”. De acordo com o United Christian Forum (UCF), organização da sociedade civil sediada em Deli, a violência e a discriminação contra cristãos está a aumentar em 23 dos 28 estados da Índia, com Uttar Pradesh e Chhattisgarhno no topo da lista dos incidentes registados.

A UCA News dá conta de que a polícia de Uttar Pradesh prendeu sete cristãos, incluindo dois pastores, por supostamente violarem a lei anticonversão do estado. O grupo é acusado de tentar atrair moradores locais com ofertas de emprego e benefícios monetários, nas reuniões de oração.

As leis anticonversão, que criminalizam as tentativas de conversão com penas de prisão, foram promulgadas em onze estados indianos, na sua maioria governados pelo Partido Bharatiya Janata (Partido do Povo Indiano, BJP), do primeiro-ministro, Narendra Modi.

O pastor Jiyalal (que, por receio de represálias, não revelou o seu apelido) disse à UCA News que a oposição à fé cristã “é uma questão de grande preocupação, pois várias pessoas foram presas nos últimos seis meses sob a lei abrangente”. “Na maioria dos casos, descobrimos que as alegações são falsas”, vincou. E “há ainda mais medo entre os cristãos, à medida que o Natal se aproxima”.

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A Comunidade Internacional Bahá’í (BIC) está “consternada com a prisão injusta e sem fundamento” de Remy Rowhani, ex-presidente da Assembleia Nacional dos Bahá’ís do Catar, numa ação que a organização diz marcar “uma escalada arbitrária, após décadas de discriminação contra os bahá’ís no Catar meramente devido à sua religião”. “Remy Rowhani é um cidadão catariano altamente respeitado que serviu o país com distinção, durante décadas, mais recentemente como diretor do escritório regional do Médio Oriente e Norte de África da Câmara de Comércio Internacional. […] A sua detenção é emblemática do padrão mais amplo de discriminação enfrentado pelos membros da comunidade Bahá’í no Catar”, escreve a BIC, em comunicado divulgado a 30 de dezembro.

Rowhani foi detido no Aeroporto Internacional Hamad, em Doha, a 23 de dezembro, quando se preparava para uma viagem de férias. A detenção surge na sequência de uma incriminação de que foi alvo em abril de 2021. “Apesar de supervisionar contribuições financeiras voluntárias de bahá’ís para a comunidade, com o conhecimento das autoridades do Catar, o senhor Rowhani foi acusado, em 2021, de arrecadar fundos sem autorização. As suas ações não eram ilegais sob a lei do Catar à época e nenhuma evidência foi fornecida para as acusações”, explica a BIC. Condenado a seis meses de prisão e à multa de 27 mil dólares (cerca de 26 mil euros), a sua sentença foi reduzida, em 2022, para um mês de prisão e para a multa de metade do valor inicial.

“Após receber garantias verbais de que a sentença não seria executada, no final de 2024, o senhor Rowhani descobriu que o seu caso havia sido reaberto e o seu acesso a serviços governamentais restringido. Ele havia sido autorizado a viajar pelas autoridades aeroportuárias, mas, em 23 de dezembro de 2024, foi detido e forçado a cumprir a sua pena de prisão”, diz o comunicado da BIC, acrescentando: “Uma vez que os esforços nacionais [para libertá-lo] foram esgotados, a BIC foi obrigada a destacar a discriminação implacável e concertada enfrentada pela comunidade.”

Reconhecendo que há “desenvolvimentos encorajadores” em países vizinhos no sentido de promover a coexistência, a diversidade e a coesão social”, bem como de “reconhecer e integrar minorias religiosas, incluindo os bahá’ís”, a BIC lamenta que o mesmo não se verifique no Catar. “O que está a acontecer com os bahá’ís no Catar contrasta fortemente com essa tendência positiva e contradiz declarações públicas da liderança do Catar, incluindo as de Sua Alteza o Emir [Tamim bin Hamad al-Thani], sobre a promoção da diversidade e inclusão”, frisa a organização.

A organização destaca as “dificuldades significativas” que os bahá’ís têm vindo a enfrentar no país, “incluindo a rescisão metódica de autorizações de residência, negação de certificados de boa conduta, rescisão repentina de residência e restrições injustas à reunificação familiar”. Tais medidas – alerta a BIC – “arriscam a eliminação total da comunidade do Catar”.

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Não obstante, os ataques à liberdade religiosa, cerceada em vários países e subvalorizada em outros, são denunciados vigorosamente por vozes autorizadas de liberdade.

Por exemplo, o Conselho Argentino para a Liberdade Religiosa (Calir) publicou, a 19 de dezembro, uma vigorosa e enfática condenação “das graves violações da liberdade religiosa ocorridas na Nicarágua, sob o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo”. Entre os factos mais alarmantes, o conselho denuncia “o arresto da Universidade Jesuíta Centro-Americana, acusada de terrorismo, o encerramento de mais de 400 organizações religiosas e a restrição de práticas religiosas públicas, como procissões”.

O Calir é uma instituição não confessional, que se tornou na principal referência em matéria de liberdade religiosa, na Argentina. Sobre a situação na Nicarágua, o organismo denuncia, ainda, “a criminalização e detenção de líderes religiosos e de leigos, como os 11 missionários da organização evangélica Puerta de la Montaña, condenados com base em acusações forjadas […] e a desnacionalização e o exílio forçado de mais de 170 líderes religiosos, incluindo freiras, padres e leigos comprometidos com as suas comunidades”. “Estes abusos, conclui o organismo, constituem uma afronta à dignidade humana, bem como graves violações do direito internacional”, pelo que o governo argentino deve assumir papel ativo na denúncia destes abusos.

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Não obstante o Menino Deus ser sinal de contradição, o Natal é uma luz de esperança e um grito pela paz!

2024.12. 30 – Louro de Carvalho

O Ártico poderá ver o seu primeiro dia sem gelo antes de 2030

 

Embora a maioria das projeções sobre o gelo marinho do Ártico se tenha centrado nas condições mês a mês, recente estudo revelou possíveis previsões ao dia. Com efeito, o National Snow and Ice Data Center (NSIDC) usa dados de satélite para fornecer o registo diário da cobertura de gelo do Ártico e a sua taxa de fusão, em comparação com um período médio, nos últimos anos.

As expectativas anteriores apontavam para a perda de gelo, no Ártico, por volta de 2030, mas estes dados revelam que um dia sem gelo pode ocorrer já no final do verão de 2027. Nove outras simulações, embora menos prováveis, preveem que esse cenário possa ocorrer nos próximos três a seis anos. E, segundo um estudo publicado na revista “Nature Communications”, o primeiro dia sem gelo, no Ártico, é inevitável e irreversível, independentemente do modo como se alterem as emissões de gases com efeito de estufa.

O Ártico cobre vasta área de mais de 16 milhões de quilómetros quadrados e, durante milhares de anos, assistiu a um acontecimento sazonal natural: acumulam-se, dramaticamente, nos meses de inverno, camadas água congelada, formando espessa calota de gelo que atinge o seu pico em março, antes de derreter em setembro. Porém, nas últimas décadas, este fenómeno dramático tem sido menos frequente. O gelo marinho diminuiu mais de 12%, em cada década, desde 1978, quando as imagens de satélite – Scanning Multichannel Microwave Radiometer (SMMR) – começaram a registar o crescimento e o recuo do gelo marinho do Ártico. São 80 mil quilómetros quadrados, por ano – aproximadamente o tamanho da Áustria ou da Chéquia.

Os cientistas definem como “sem gelo” a área de degelo marinho que diminui para menos de um milhão de quilómetros quadrados, num curto espaço de tempo, o que é considerado um ponto de viragem climática. Uma equipa de investigadores, incluindo a climatologista Alexandra Jahn, da Universidade do Colorado, em Boulder, e Céline Heuzé da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, utilizou mais de 300 modelos informáticos para prever o primeiro dia sem gelo. Estes modelos revelaram uma cronologia acelerada, contra o projetado antes.

A perda rápida de gelo está associada a invernos intensos e ao aquecimento da primavera. A longo prazo, se o Ártico for regularmente declarado sem gelo, isso poderá ter um impacto significativo no frágil ecossistema do mar mais setentrional, incluindo tudo, desde o “emblemático urso polar até ao crucial zooplâncton”, revela o estudo.

O dia em que o Ártico apresentar condições de ausência de gelo tem significado simbólico. Irá realçar visualmente a forma como os seres humanos alteraram uma das caraterísticas naturais do planeta: de um oceano Ártico branco para um oceano azul. “O primeiro dia sem gelo no Ártico não vai mudar drasticamente as coisas, mas mostrará que alterámos, fundamentalmente, uma das caraterísticas que definem o ambiente natural do oceano Ártico, que é o facto de estar coberto de gelo marinho e de neve, durante todo o ano, devido às emissões de gases com efeito de estufa”, explicou Jahn, num comunicado, sustentando que o sol nunca se põe no Ártico, durante o verão, pelo que, sem o gelo refletor que reflete a luz solar no espaço, o oceano absorverá e distribuirá uma quantidade substancial de calor pela Terra.

As águas internacionais não têm ali jurisdição, pelo que as indústrias podem explorar as oportunidades encontradas nas águas mais quentes do Ártico: pescar e explorar, em profundidade, populações marinhas e minerais antes inacessíveis. E as empresas de transporte de mercadorias podem utilizar uma rota de navegação mais rápida, pela Passagem do Noroeste.

O aquecimento poderá gerar fenómenos meteorológicos erráticos e extremos, devido à alteração dos padrões dos ventos e das correntes. Já se registaram anos mais quentes: em março de 2022, parte do Ártico estava a 50ºF (graus Fahrenheit) /10ºC (graus Celsius), mais quente do que a média, o que fez com que áreas à volta do Polo Norte quase derretessem. Os cientistas ainda creem na hipótese de atrasar o prazo para a fusão do gelo marinho num futuro próximo. “Qualquer redução das emissões ajudaria a preservar o gelo marinho”, acrescentou Jahn.

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“Ártico” vem do termo grego “árktós”, que significa “urso” ou “ursa”, e é atribuído a este oceano, em razão da Ursa Maior, constelação situada no Hemisfério Norte.

O Ártico, cujo símbolo é o urso-polar, localizado no Hemisfério Norte e, na sua maioria, na Região Polar Ártica, é a menor e mais rasa das cinco grandes divisões oceânicas. A Organização Hidrográfica Internacional (OHI) reconhece-o como oceano glacial, embora alguns oceanógrafos o chamem de mar Ártico Mediterrâneo ou mar Ártico, classificando-o como um dos mares mediterrâneos do oceano Atlântico. Por outro lado, o Ártico pode ser visto como o lobo norte do oceano Mundial. Quase todo envolvido pela Eurásia e pela América do Norte, é parcialmente coberto por gelo, durante o ano (e quase completamente, no inverno).

A sua temperatura e a salinidade variam sazonalmente, quando a cobertura de gelo derrete e congela; a média de salinidade é a mais baixa, em comparação com os cinco oceanos, devido à baixa evaporação, ao fluxo pesado de água doce de rios e de córregos, à conexão limitada com águas oceânicas de salinidade mais elevada. No verão, o nível do gelo diminui 50%. 

A geografia do Ártico é de solidão, com numerosos icebergs, que são água congelada à deriva, não sendo como na Antártida ou na Gronelândia (onde são gelo de terra firme). Tal como na Antártida, a noite é escura e fria, chegando aos -75 °C, e corre o fenómeno de aurora polar (aurora boreal, no Norte, e aurora austral, no Sul). Cheio de gelo e de neve, permite sobreviverem apenas algumas algas, líquenes, briófitas e fungos. Entre os animais encontram-se ursos-polares, focas, leões-marinhos, raposas-do-ártico, lebre-ártica, Krill, baleias e peixes.

O Ártico, com a profundidade média de cerca de mil metros, ocupa uma bacia aproximadamente circular, com a área de mais de 16 milhões de quilómetros quadrados (Km2), quase do tamanho da Rússia. O litoral, com 45390 quilómetros (Km) de comprimento, é cercado pelas massas terrestres da Eurásia, da América do Norte, da Gronelândia (território da Dinamarca), e por várias ilhas, como a Islândia. Iinclui a baía de Baffin, o mar Barents, o mar de Beaufort, o mar de Chukchi, o mar Siberiano Oriental, o mar da Gronelândia, a baía de Hudson, o estreito de Hudson, o mar de Kara, o mar de Laptev, o mar Branco e outros corpos de água. Liga-se ao  Pacífico pelo estreito de Bering e ao Atlântico pelo mar da Gronelândia e pelo mar do Labrador.

A borda do Ártico está repartida por diversos mares secundários, separados por arquipélagos costeiros. Da Escandinávia à Rússia e à América do Norte sucedem-se os mares de Barents, de Kara, de Laptev, da Sibéria Oriental, de Chukchi, de Beaufort e de Lincoln. Limitado por soleira de pequena profundidade, o Ártico faz pouquíssimas trocas com as águas dos outros oceanos. Sob a banquisa, a massa de água fria (0º C °) é pouco salgada.

A banquisa (banco de gelo), cuja superfície calótica se deve aos movimentos que a animam, tem a espessura de dois a quatro metros e é afetada por um abatimento, da ilha de Wrangel até ao Polo Norte e ao arquipélago de Svalbard. Os limites da banquisa, variáveis conforme as estações, permitem, no verão, certa circulação marítima do mar de Barents ao cabo Tchekiuskin e a outras costas que cercadas de perto pelos gelos.

O Paralelo 85 N é um paralelo no grau 85.º a Norte do equador terrestre e marca o centro do Ártico. Segundo o sistema geodésico WGS 84, no nível de latitude 85.º N, um grau de longitude equivale a 9,74 km. É, pois, de 3505 km a extensão total do paralelo 85°, cerca de 8,5% da extensão do Equador, de que o paralelo dista 9444 km, distando 558 km do Polo Norte.

Como todos os paralelos ao norte da latitude 83°40' N que passam por Kaffeklubben (extremo norte da Gronelândia), o Paralelo 85º N passa todo sobre o Ártico e sobre as suas plataformas de gelo, sem cruzar terra firme. Não quereria lá passar o Natal!

O oceano situa-se na zona de clima polar, em que as temperaturas mínimas descem abaixo de -50º C a -60 °C, com frio permanente e com pouca variabilidade sazonal. O inverno carateriza-se por escuridão contínua e por condições estáveis com céu limpo; o verão, pelo Sol da meia-noite, por céu nublado e por ciclones, com neve ou chuva, embora de fraca intensidade.

A temperatura da superfície do Ártico é praticamente constante, próxima do ponto de congelação da água do mar, pouco superior a 0º C. No inverno, o mar exerce influência moderadora, mesmo que coberto de gelo (na forma de banquisa), pelo que nunca, no Ártico, se verificam os extremos de temperatura que ocorrem na Antártida.

O degelo do Ártico é, principalmente, causado pelo efeito de estufa e pelo aquecimento global, que, juntos, provocam o preocupante descongelamento rápido de vastas reservas de água doce. Em setembro de 2007, o satélite ENVISAT registou o maior degelo do Ártico, abrindo à navegação a passagem do Noroeste e a passagem do Nordeste, que ligam o Atlântico ao Pacífico, através do Ártico. E, em 2012, cientistas do Laboratório de Pesquisa e Engenharia de Regiões Frias (CRREL) publicaram resultados que descrevem a descoberta da maior eflorescência algal de fitoplâncton conhecida.

Os resultados foram inesperados, já que, até então, se pensava que o plâncton crescia, apenas após o derretimento sazonal do gelo. Porém, foram descobertas algas sob vários metros de gelo marinho intacto. Embora o impacto ecológico da proliferação do fitoplâncton sob o gelo marinho na fixação de carbono, no Ártico, seja potencialmente acentuado, era desconhecida a prevalência destes acontecimentos no Ártico moderno e no passado recente. Os investigadores calculavam que a causa para o gelo marinho do Ártico se tornar progressivamente mais verde se relacionava com as plantas marinhas microscópicas, o fitoplâncton, que cresciam sob o gelo, o que não fazia sentido, pois o fitoplâncton requer luz para a fotossíntese e o Ártico é demasiado escuro para que este sobreviva.  

Entretanto uma equipa de investigadores solucionou o enigma. O tom esverdeado tem a ver com o recorde de baixos níveis de gelo marinho na região. A fina camada que agora existe já não barra a luz solar e esta já não é refletida, mas é absorvida pelos lagos de gelo derretido. Os resultados do modelo determinado pela investigação levada a cabo no mar de Chulkchi indicam que o recente desbaste do gelo marinho do Ártico é a principal causa do acentuado aumento da prevalência de condições de luz propícias à floração de algas sob o gelo. Há cerca de 20 anos, era incomum a existência das condições necessárias para o florescimento algal sob o gelo, mas, atualmente, os índices de prevalência aumentaram a um nível tal que, em quase 30% do Ártico coberto de gelo, no mês de julho, há florescimento algal sob o gelo. Assim, as mais recentes alterações climáticas podem ter alterado significativamente a ecologia da Região Ártica.

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Em suma, o oceano glacial Ártico está localizado no Hemisfério Norte do planeta, ou seja, no extremo norte, banhando a porção setentrional da Europa, da Ásia e da América, em zona de clima polar, marcado pelas baixas temperaturas, onde se situam diversas ilhas e arquipélagos, com destaque para a Gronelândia e para a Islândia.

O degelo do Ártico é preocupação mundial. Nos últimos anos, os estudos comprovaram o aumento das suas temperaturas. As condições geográficas são marcadas por baixas temperaturas e pela presença constante de neve, típicas do clima polar, predominante em toda a Região Ártica. As temperaturas locais podem chegar até -60º C.

Este oceano, pela sua localização no extremo norte planetário, tem um inverno com dias de escuridão contínua e um verão com dias são claros e há registos de vários eventos atmosféricos. Ademais, é recorrente a presença de icebergs (grandes blocos de gelo). Um processo caraterístico do oceano Glacial Ártico é a capacidade de congelamento de partes oceânicas, permanecendo congelada, no inverno, grande parte das águas marinhas árticas; já no verão, devido ao aumento das temperaturas, ocorre o descongelamento dessas águas. Essa dinâmica de mudança de estado da água interfere na temperatura e na salinidade do oceano em questão.

O Ártico tem grande importante ambiental, económica e estratégica. Possui grande influência nas dinâmicas climáticas do planeta, sendo um dos principais pontos de degelo na superfície terrestre – processo de descongelamento das geleiras, mercê do aumento da temperatura da Terra. Assim, é uma região importante para a realização de pesquisas científicas ambientais, assim como para monitorização das dinâmicas climáticas globais. E é uma zona marítima com grandes depósitos de recursos minerais, como petróleo e gás natural, cenário que resulta no interesse económico pela exploração do seu fundo oceânico. Ademais, a pesca é importante para vários países que ali possuem territórios. Por fim, o Ártico é uma região estratégica em termos geopolíticos e militares, já que banha o litoral de potências mundiais, como os EUA e Rússia, que passaram, com o degelo crescente, a disputar o domínio do oceano, pelas travessias e pelas pesquisas.

O degelo do oceano Glacial Ártico é um processo de origem antrópica  marcado pelo aumento da temperatura terrestre. O aquecimento global, desencadeado pela emissão de poluentes na atmosfera, redunda no aumento das temperaturas da Terra. Desse modo, ocorre o degelo das regiões árticas, que não suportam a elevação da temperatura planetária. Ademais, quando ocorre o derretimento do gelo, as águas oceânicas absorvem os raios solares, aumentando a temperatura local. Esse cenário seria diferente, se o gelo permanecesse preservado, já que, pelo seu albedo, reflete os raios solares, não contribuindo para a absorção do calor gerado pela radiação solar. Por sua vez, a interferência antrópica num ecossistema tão frágil gera grande desequilíbrio ambiental. Um exemplo desse cenário é a perda do habitat de animais, como os ursos-polares, pois, com o degelo, têm dificuldade em obter alimentação e abrigo. Tal cenário é agravado pela pesca predatória, que também contribui para a diminuição do volume de alimento disponível, assim como impacta nas populações de peixes de água salgada. No mais, o transporte marítimo, muito comum na região, provoca a quebra de grandes blocos de gelo, facilitando o seu descongelamento, além de contribuir para a poluição das águas oceânicas.

O oceano Glacial Ártico é uma região de intensos fluxos de transporte marítimo, que contribui para o aumento do impacto ambiental na região, o que é motivo de preocupação mundial, já que o derretimento das calotas polares presentes no Ártico resulta no aumento do nível dos oceanos, o que impacta diretamente em diversas cidades costeiras do globo. Há, inclusive, países insulares que buscam soluções, como a compra de terras noutras regiões, a fim de transferir a população local para terrenos mais altos, o que sucede também nos países banhados por este oceano: o Canadá, os EUA, a Rússia, a Noruega, a Islândia e a Gronelândia (território da Dinamarca).

O Ártico, comparado com os demais oceanos, tem salinidade baixa, já que a taxa de evaporação da sua água marítima é baixíssima. Estudos recentes revelam que a temperatura, na região, aumentou mais do dobro, em relação ao aumento da temperatura global do planeta.

2024.12.30 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de dezembro de 2024

A maior mente de Alexandria foi vítima de cristãos fanáticos

 

Trata-se de Hipátia de Alexandria, a maior filósofa de Alexandria, a sua cidade natal, em finais do século IV e no início do século V d.C., e um dos maiores pensadores da Antiguidade tardia, dados que deveriam ter sido suficientes para garantir ao seu nome um relevante lugar ao longo do tempo da História da Humanidade, até pela sua excecionalidade, pois, nessa altura, a mulher estava longe de se aplicar à Filosofia, à Ciência e ao múnus de ensinar.

Todavia, não é assim que a História lhe faz jus ou sequer a recorda, mas como vítima de assassinato por infandos motivos político-religiosos, hoje teoricamente inadmissíveis.    

Efetivamente, no ano 415 (quase no início do século V), uma turba de cristãos fanáticos atacou e assassinou Hipátia de Alexandria, a filósofa neoplatónica, por a considerarem uma herege que praticava a magia negra. E assim se finou a primeira mulher que estudou e ensinou Matemática, Astronomia e Filosofia de que há conhecimento.

Fontes da época relatam, em pormenor, o seu assassinato. Os autores cristãos Sócrates Escolástico e João de Niciu, bem como autores pagãos, como o filósofo grego neoplatónico Damáscio, concordam na descrição da sua morte. Ela foi tirada à força da sua carruagem, em Alexandria, e conduzida até à igreja chamada Caesareum, onde foi desnudada, esfolada e brutalmente assassinada. Depois de lhe desmembrarem o corpo, a multidão queimou os seus restos mortais. Isto, quando a Igreja condenava a cremação de cadáveres humanos, porque isso deslustrava, supostamente, a realidade da ressurreição final. Outros relatos sustentam que a filósofa palestrava, quando a multidão a encontrou e, depois de a levarem para a igreja, a arrastaram pelas ruas. 

Atribui-se a Cirilo, Patriarca de Alexandria, a trama e a ordem do seu assassinato.

Seja como for, há muito que se pensa que Hipátia foi assassinada por um bando de fanáticos cristãos, devido às suas crenças filosóficas, ou seja, por ela não apoiar o cristianismo, num Mundo em que pagãos e cristãos eram adversários.

Na verdade, até ao Édito de Milão, de 313, em que o imperador Constantino I deu a paz à Igreja, por ter reconhecido que todas as religiões tinham espaço no Império, os cristãos foram objeto de duras perseguições. Porém, depois de Teodósio haver, pelo Édito de Tessalónica, em 380, imposto o cristianismo niceno como religião oficial do Império – acabando com o apoio do Estado à religião romana e proibindo a adoração pública dos antigos deuses –, os perseguidos passaram, muitas vezes, a ser os pagãos, pois não é um decreto que leva as pessoas a aderir, de alma e coração, a uma religião nova.   

Quando Hipátia nasceu, por volta de 360 d.C., o centro intelectual e cultural de Alexandria estava em declínio. Fundada por Alexandre, o Grande em 331 a.C., a cidade era exibia o farol de Pharos, uma das sete maravilhas da Antiguidade, e o Mouseion, que incluía a biblioteca de Alexandria, o centro de formação dos melhores escritores, médicos, cientistas e filósofos do Mundo antigo. Após a sua conquista por Júlio César,  em 48 a.C., e do incêndio parcial da grande biblioteca da cidade, à ordem do conquistador, Alexandria iniciou o seu lento declínio. Em 364 d.C., o Império Romano dividiu-se em dois e a cidade permaneceu na região oriental, controlada por Constantinopla (atual Istambul). Já então, surgiram disputas entre as denominações cristãs da cidade. Um escritor antigo disse que nenhum povo gostava mais da luta do que o povo de Alexandria. Depois, em 380 d.C., como foi referido, o imperador Teodósio I declarou o cristianismo como religião oficial do Império, inclusive Alexandria, ordenando castigos para os não-crentes, o que levou ao aumento das tensões entre cristãos e não-cristãos.

Neste contexto de agitação política e religiosa a servir de cenário, Hipátia recebeu excelente formação sobre a orientação do pai, o matemático e astrónomo Teão, que lecionava no Mouseion. Deu a conhecer à filha grande variedade de temas, incluindo a Matemática, a Astronomia, a Filosofia e a Literatura, a que a discípula correspondeu, demonstrando excecionais capacidades intelectuais e paixão pela aprendizagem, desde pequena. Comentava, com pormenor, sobre as grandes obras de Matemática e de Astronomia produzidas séculos antes em Alexandria, na época dos Ptolomeus (305 a.C. a 30 d.C.). Porém, não foi o seu talento para a Matemática e para a Astronomia, nem as suas invenções, que tiveram mais impacto, mas a sua ação como filósofa.

Pertencendo à escola neoplatónica, professava, obviamente, o neoplatonismo, que surgiu no século III d.C., a reinterpretar as ideias do filósofo e matemático grego Platão, do século IV a.C. Combinando espiritualidade e ciência, Hipátia aplicava a Matemática e a Astronomia à Filosofia, como forma de compreender o universo e o lugar nele ocupado pelo indivíduo. Estas disciplinas eram vias para o conhecimento do Uno, o ser supremo de que todas as coisas emanam. Embora a Filosofia de Hipátia fosse considerada pagã, os cristãos identificavam o Uno com o seu Deus e, como tal, pagãos e cristãos poderiam seguir este sistema filosófico, que Santo Agostinho batizou.

Hipátia lecionava na Escola de Filosofia Neoplatónica, atraindo às suas preleções grandes multidões de pagãos e de cristãos. Não terá sido pagã devota, nem praticava a teurgia (obra de Deus: magia com que se pretendia obter a proteção da divindade ou dos espíritos celestes), ou seja, o uso de magia e de oráculos que muitos neoplatónicos consideravam uma via alternativa para alcançar o Uno. Enquanto cristãos e pagãos se envolviam em confrontos, destruindo a cidade de Alexandria, Hipátia terá mantido posição neutral.

Assim, permaneceu afastada dos factos que, em 391 d.C., desembocaram na destruição do templo Serapeum de Alexandria pelos cristãos. Outros intelectuais pagãos assumiam posição ativa na defesa do grande templo Serápis e gabavam-se de assassinar cristãos. Portanto, a perspetiva tradicional, segundo a qual a morte violenta de Hipátia resultou do conflito ideológico entre pagãos e cristãos, não explica toda a narrativa. 

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Hipátia viveu numa época em que as mulheres não partilhavam o estatuto dos homens, por mais brilhantes que fossem. Apesar de pouco aclamada, é tida como um dos maiores filósofos da Antiguidade. Foi a primeira mulher que estudou e ensinou Matemática, Astronomia e Filosofia de que há memória, tendo atraído estudantes de locais distantes do Império Romano. Muitos académicos pensam que editou o texto sobrevivente da “Almagesto”, de Ptolomeu, devido ao título do comentário do pai ao Livro III do “Almagesto”Envergou as vestes da elite académica, apesar de esta honra estar reservada a homens. Michael Deakin, no livro “Hipátia de Alexandria”, publicado em 2007, sustenta que, quase sozinha, defendeu os valores intelectuais em prol de uma Matemática rigorosa, do neoplatonismo ascético, do papel essencial da mente e da voz da temperança e da moderação na vida cívica.

O assassinato de Hipátia foi um ato altamente ritualizado, caraterística comum às mortes violentas de dois patriarcas de Alexandria: o ariano Jorge da Capadócia, falecido em 361 d.C., e Protério, falecido em 457 d.C. Porém, embora as circunstâncias das mortes destes sejam diferentes das de Hipátia, os três assassinatos seguem o mesmo molde. Os corpos dos patriarcas foram exibidos pelos assassinos, num desfile, ao longo da Via Canópia, tal como sucedera com Hipátia. Os corpos das vítimas foram desmembrados e partes dos seus restos mortais enviados para os diferentes distritos da cidade, para serem cremados. E é de observar que, no ano 391 d.C., após o ataque ao templo Serapeum, a estátua da divindade greco-egípcia Serápis foi sujeita ao mesmo rito violento.

Nestes termos, a morte de Hipátia é interpretável como homicídio premeditado e não como ato espontâneo da multidão sedenta de sangue. Ela terá sido um peão nas manobras políticas da altura, probabilidade que se deduz de um pormenor político: Hipátia envolveu-se no confronto entre dois homens cristãos de Alexandria, o patriarca Cirilo e governador romano Orestes.

Ao tempo, Cirilo, envolvido em políticas implacáveis para eliminar as influências pagãs em Alexandria, não tinha problemas em recorrer à violência para alcançar os seus objetivos. Até participou na expulsão dos judeus de Alexandria, depois de estes terem atacado os cristãos.

Entretanto, o prefeito romano Orestes, no âmbito dos esforços da administração imperial para manter a estabilidade em Alexandria, teve de pedir apoio à aristocracia municipal, que adorava, maioritariamente, deuses pagãos, e teve de evitar a oposição dos judeus, angariando, simultaneamente, o apoio dos cristãos que se opunham a Cirilo e aos seus métodos violentos. Ao invés de Cirilo, Orestes tinha de apelar um grupo diversificado de pessoas.

Orestes pediu ajuda à sua amiga Hipátia, por ser intermediária adequada, devido ao seu estatuto como filósofa e por se ter mantido a distância segura da defesa ativa do politeísmo. Respeitada por membros da elite de Alexandria que não eram agitadores, nem favoreciam a violência, dispunha da rede de apoio que cultivara ao longo dos anos. Os seus contactos incluíam antigos alunos que pertenciam a poderosos círculos cristãos, tanto em Constantinopla como em Alexandria, o que a tornava, para Cirilo, uma ameaça ao seu controlo sobre os cristãos da cidade.

Para neutralizar Hipátia, Cirilo terá orquestrado uma campanha difamatória, acusando-a de magia negra e descrevendo-a como perigosa bruxa que usava feitiços para atrair as pessoas para as suas palestras. Foi dito que ela convencera Orestes faltar à missa e a permitir a entrada de não-cristãos em sua casa. Sócrates Escolástico comenta que, por ela ter encontros frequentes com Orestes, foi espalhada a calúnia, entre a população cristã, de que, por sua influência, ele não se reconciliava com Cirilo. Estes clichés, usados ao longo dos tempos para desacreditar mulheres que ocupam posições para lá das de esposa e mãe, mostravam Hipátia como perigoso inimigo público.

A nomeação de Cirilo como patriarca de Alexandria, em 412 d.C., foi polémica. Não se esperava que sucedesse ao tio. Por isso, fez uma demonstração de autoridade, para ganhar a lealdade da comunidade cristã da cidade. Apesar da oposição de alguns cristãos, Cirilo atacou politeístas e judeus na cidade, expulsando ou massacrando os últimos, em 414 d.C. Cirilo foi, inicialmente, apoiado por um grupo de monges do deserto de Nitria, com os quais estudara numa comunidade monástica. Mais tarde, usou os parabolanos, cujo objetivo original era cuidar dos doentes, para realizar os seus atos de violência. Não obstante, foi declarado Doutor da Igreja, em 1883.

Cirilo não podia cometer o homicídio com as suas próprias mãos, nem precisava de o fazer. Usou os parabolanos. Contudo, enquanto Cirilo esteve no poder, os parabolanos tornaram-se algo semelhantes a uma milícia armada ao serviço do patriarca. Embora não haja provas de que Cirilo tenha ordenado o assassinato de Hipátia, tudo sugere que tinha muito a ganhar com a sua morte e que os parabolanos trataram do assunto por ele. Este homicídio pôs fim à ameaça que Hipátia constituía para Cirilo, por apoiar a política de tolerância de Orestesm, e foi o ponto de viragem entre a autoridade religiosa, de Cirilo, e autoridade civil, de Orestes. O vencedor foi Cirilo.

Contudo, a morte de Hipátia não foi uma derrota para os pagãos. Cristãos e pagãos continuaram a coexistir em Alexandria, durante mais de um século. O neoplatonismo prosperou até à conquista árabe do Egito, no século VII, contando com cristãos e pagãos, entre os seus seguidores. No século VI, o diretor da escola era um pagão, Amónio de Hérmias, enquanto o vice-diretor e editor das suas obras era um cristão, João Filopono. Nunca mais se falou em Orestes. E, embora os líderes cristãos não erradicassem a filosofia pagã, reprimiam as autoridades seculares.

A personalidade e o intelecto de Hipátia foram reconhecidos por autores cristãos hostis. No século XVIII, Voltaire referiu-a, para condenar uma Igreja ciosa e, no século XIX, obra importante para a consolidação do mito de Hipátia foi o romance do clérigo historiador inglês Charles Kingsley, publicado em 1853, no qual a retrata como vítima de Orestes e de Cirilo. Já “Hypatie”, do francês Charles Leconte de Lisle, descreve-a com o “espírito de Platão e o corpo de Afrodite”. O poema termina com loas à beleza de Hipátia, que, após a sua morte, permanece “imutável, eterna”. Hipátia é também a heroína do filme espanhol “Agora”, de 2009, em cujo enredo salva a Biblioteca de Alexandria dos cristãos fanáticos (os cristãos queimavam livros pagãos). 

Enfim, uma desnecessária mártir pagã e vítima de disputa político-religiosa!

2024.12.29 – Louro de Carvalho