segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Com o 28 de setembro de 1974, terminou o projeto pessoal de Spínola

 

O 28 de Setembro foi a primeira tentativa de vulto para conter a revolução abrilina e a democratização. Constituiu-se como mais uma investida do Presidente da República, general António Sebastião Ribeiro de Spínola, para tomar o poder, conjugando uma manifestação de rua com movimentações militares e a conspiração palaciana para a demissão do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, a dissolução da Comissão Coordenadora (CC) do Movimento das Forças Armadas (MFA), a declaração de estado de sítio e o reforço dos poderes presidenciais.

Logo na noite de 25 de abril, Spínola tentou condicionar a dinâmica revolucionária dos “capitães de abril”, tentando que regressassem a quartéis e liderando ele o poder que “herdara” de Marcelo Caetano. Não o conseguindo, levou os capitães a tolerar-lhe a Presidência da Junta de Salvação Nacional (JSN) e a Presidência da República, que a CC do MFA queria para o general Francisco da Costa Gomes, que ficou chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas (EMGFA).

Em crescente isolamento, ante o avanço da descolonização e o reconhecimento das independências, o poder do MFA e dos partidos de esquerda, a vaga de ações e lutas dos movimentos sociais e o que se constituía como um processo revolucionário, Spínola e os setores afetos, organizam uma manifestação da alegada “maioria silenciosa”, de apoio ao Presidente da República que legitimasse o reforço dos poderes presidenciais e a declaração de estado de sítio. Era uma ação global, com ramificações em Angola e Moçambique, passível de degenerar em violência e até em golpe de Estado. O objetivo era a contenção do processo revolucionário, pela viragem à direita e pelo recuo das liberdades, bem como pelo controlo da descolonização.

A democratização preconizada por Spínola, assente na limitação de direitos e liberdades, era descrita como “democracia musculada”, “marcelismo sem Marcelo” ou “presidencialismo militar”. Enfim, a negação do que movimentos sociais e o MFA preconizavam. Spínola advogava uma “via federal-presidencialista” sob controlo político da grande burguesia, assente em “táticas golpistas” e em “laivos de nacionalismo militar”, com uma centralidade inequívoca o neocolonialismo de tipo federalista. Porém, incapaz de evitar ou de retardar a descolonização, Spínola assinou, constrangido, a Lei n.º 7/74, de 27 de julho, que reconhecia o direito à independência das colónias. Não obstante, não desistiu de fomentar organizações africanas, de fazer visitas aos quartéis militares e de preconizar soluções assentes na autodeterminação e nos referendos. Assim, ao longo de cinco meses, tentou, de formas diferentes, garantir, para si, o controlo do poder político-militar, reforçando os seus poderes e aniquilar a CC do MFA.       

O braço-de-ferro nos dias imediatos ao golpe de 25 de abril, os embates de 8 e 13 de junho na Manutenção Militar, a crise Palma Carlos, a crise de agosto e os pelos à “maioria silenciosa” foram os cinco momentos de pressão de Spínola sobre o MFA.

Estes assaltos ao poder são complementados por discursos catastróficos da “teoria da terra queimada”, em que Spínola prepara o terreno para o apelo à “maioria silenciosa”.

A crise Palma Carlos, que era o primeiro-ministro (PM) do I Governo Provisório, suscitada pela situação económica caótica descrita por Vasco Vieira de Almeida, ignorando as consequências de qualquer Processo revolucionário, consistia numa alteração ao programa do MFA, sugerida por Sá Carneiro: legitimar Spínola como Presidente da República por eleição popular, com base numa lei constitucional “ad hoc”, constituir um governo de iniciativa presidencial, com ministros escolhidos pelo PM e não pelo PR, que preparava as eleições para a Assembleia Constituinte e, depois, para o Parlamento.  A CC do MFA não aceitou a alteração, Palma Carlos demitiu-se e Vasco Gonçalves assume-se, nomeado por Spínola, como PM do II Governo Provisório.    

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O projeto spinolista esbarra num dos profundos fenómenos abrilinos: a explosão revolucionária marcada por mobilizações coletivas, pelas práticas de democracia direta e pela militância de base. Em maio explode a onda de greves, de ocupações e de paralisações de empresas, com assembleias e manifestações reivindicativas dos direitos e liberdades fundamentais e do fim da guerra colonial.

Em Setúbal, em Lisboa ou no Porto, o movimento de moradores auto-organiza-se em comissões e arranca o movimento de ocupações de casas. Nos bairros urbanos e nos campos do Alentejo, empresas, escolas e universidades, órgãos locais e centrais do Estado e até nas Forças Armadas, estabelecem-se formas de organização popular e de luta reivindicativa.

Entre abril e setembro, a derrota spinolista é determinada pela dinâmica revolucionária. Em torno do general foram-se um campo político conservador, mas heterogéneo, com várias tendências de direita e de extrema-direita: monárquicos, católicos, aristocratas, gente da elite económica. Define-se mais pela oposição ao processo revolucionário, de democratização e de descolonização, do que pela afinidade ideológica. A questão africana é central, nomeadamente, a manutenção de uma ligação entre Portugal e as (ainda) colónias. Embora defendendo vias integristas ou independências brancas, muitos resignam-se ao federalismo spinolista.

A explosão de partidos no pós-25 de Abril passará também pelo centro-direita e pela extrema-direita, alguns com ligações a Spínola. Nos primeiros dias de maio, surgem o Partido Trabalhista Democrático Português (PTDP), apoiante da manifestação da “maioria silenciosa” e com ligações a grupos colonialistas em África, e o Partido Cristão Social-Democrata (PCSD), que se fundirá com o Partido Democrático Popular Cristão (PDPC). A 4 de maio, surge o Movimento Federalista Português (MFP), depois, denominado Partido do Progresso (PP); e, dias depois, o Movimento Popular Português (MPP). No dia 10, surgia o Partido da Democracia Cristã (PDC). Dias depois, foi a vez do Partido Popular Monárquico (PPM). E, a 28 de maio é fundado Partido Liberal (PL), o grande coordenador da manifestação.

No dia 15 de junho, surge o Partido Social-Democrata Português (PSDP) e, a 24, o Partido Nacionalista Português (PNP), extinto dias antes do 28 de Setembro. Sob o signo do antimarxismo, PL, PTDP e PP constituem, a 27 de agosto, a Frente Democrática Unida (FDU). PDC, Partido Cristão Social (PCS), Partido Social-Democrático Independente (PSDI) e elementos do PSDP formam a Aliança dos Portugueses para o Progresso Social, frente de direita de apoio ao Presidente da República, apesar das reservas que Spínola lhes suscitava.

A 10 de junho, Spínola é eleito presidente honorário do PTDP e realizam-se, em Lisboa e no Porto, manifestações das direitas em defesa do federalismo. E, na sequência da “crise Palma Carlos”, MFP, PTDP, PL e MPP sustentam que “a grande maioria do País tem sido silenciada”, e são recebidos por Spínola a 10 de julho.

Jornais da imprensa regional, como BandarraEconomia e FinançasTribuna Popular ou Tempo Novo serão determinantes na preparação da manifestação e no ataque a MFA, ao governo, aos partidos de esquerda e ao processo de descolonização.

Relatório sobre o 28 de Setembro situa o arranque de uma ofensiva orquestrada pela extrema-direita no encontro de 10 de julho de Spínola com delegações do MFP, PTDP, PL e MPP, e o início das movimentações tendentes à manifestação no fim do mês. A organização arranca no início de setembro. Spínola dirá que foi informado por Galvão de Melo da preparação da manifestação de apoio ao Presidente. Porém, Francisco Van Uden diz que foi Spínola, inspirado em De Gaulle, quem procurou os organizadores da manifestação, informando-os da necessidade de manifestação pública de apoio popular para combater a infiltração comunista no MFA. Deste encontro surgiu a comissão organizadora da manifestação presidida por Fernando Cavaleiro.

A 9 de setembro, elementos do PP, PDC e PL reúnem para preparar a manifestação. No dia 7, fora assinado o acordo de Lusaca que provoca o levantamento violento da comunidade branca em Lourenço Marques. Na cerimónia de reconhecimento da independência da Guiné, a 10 de setembro, Spínola, entre ataques à descolonização, apela à “maioria silenciosa”. E, a 14 de setembro, Spínola e Mobutu encontram-se para discutir o futuro de Angola.

No dia 15, a Associação Livre de Agricultores (ALA) convoca uma manifestação junto ao Palácio de Belém, para o dia 29, de modo a coincidir com as movimentações da “maioria silenciosa”.

Depois de, a 28 de agosto, elementos do MPP terem sido detidos por colarem cartazes da manifestação, na madrugada de 19 de setembro, são, de novo, afixados em Lisboa cartazes que são rasgados por militantes do Partido Comunista Português (PCP) e do Movimento Democrático Português (MDP) que entram em confronto com os apoiantes da manifestação.

O financiamento da manifestação terá sido organizado por Kaúlza de Arriaga e por Fernando Cavaleiro e suportado pelo Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, com quem elementos do PL e do PP tinham relação. As verbas são aplicadas em propaganda, em cartazes, em aluguer de avionetas para distribuição de panfletos, em fretes de táxis aéreos e em aluguer de cerca de mil camionetas no Norte do país destinadas ao transporte gratuito de pessoas para Lisboa.

Refletindo as imbricações da “maioria silenciosa” com a frente africana e as manobras tendentes à descolonização, Spínola chama, no dia 20, a Lisboa o governador-geral de Angola, Rosa Coutinho, e assume diretamente a descolonização de Angola e todas as negociações. O PCP alerta para a manifestação de reacionários e fascistas encapotados para destruir o processo de democratização. Denuncia o apoio da alta finança e apela à vigilância popular e à unidade e ação de todos os partidos. O MDP fala na “minoria tenebrosa” composta por ex-elementos da PIDE/DGS, ex-legionários, partidos fascistas e grandes capitalistas. Também o Partido Socialista (PS) denuncia as manobras de grupos fascistas. Já o Centro Democrático Social (CDS) desmentia qualquer ligação ao extinto PNP.

Na manhã do dia 27, em reunião do Conselho de Ministros, em Belém, Spínola tenta a declaração do estado de sítio. A resposta da CC do MFA é delineada nessa manhã, em reunião com Costa Gomes, ministros militares do MFA, comandante-adjunto do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, e membros da 2.ª Divisão do EMGFA que apresentam uma lista de detenções. Os oficiais da CC do MFA contactam as principais unidades e a contagem de espingardas revelava-se favorável. Segue-se a reunião da JSN em que Spínola propõe, sem sucesso, a demissão de Vasco Gonçalves. No fim da tarde, em reunião do Conselho de Ministros, Spínola insiste na demissão do PM. O termo da reunião coincide com o início das prisões decididas pelo COPCON e com o arranque da constituição de barricadas nos acessos a Lisboa por sindicatos, por comissões de trabalhadores, por moradores e por partidos de esquerda.

Em nova reunião da JSN, em Belém, com a presença de Vasco Gonçalves, Costa Gomes e os ministros da Comunicação Social e da Defesa, Sanches Osório e Firmino Miguel, os spinolistas exigem a demissão do PM. Noutra sala do Palácio, o ministro da Comunicação Social é incumbido por Spínola de redigir um comunicado, sugerindo a necessidade da declaração de estado de sítio, rejeitado por Vasco Gonçalves e por Costa Gomes. Em novo comunicado, às três horas da madrugada de 28, redigido por Vasco Gonçalves e aprovado por Spínola, o governo apela ao levantamento das barricadas, permitindo a normal circulação e a passagem dos participantes na manifestação, que tinha condições para decorrer pacificamente.

O fim do dia 27 e o dealbar de dia 28 são de tensão e de receio de que a situação escale para algo próximo da guerra civil. Com Otelo, a quem Spínola retira o comando do COPCON, e Vasco Gonçalves detidos em Belém, a CC do MFA reage. Vasco Lourenço, pensando na rede conspirativa do 25 de Abril, contacta os capitães de várias unidades e diz-lhes para, se for preciso, porem o “25 de Abril sobre rodas”, prenderem os comandantes e assumirem o comando das unidades, que estavam quase todas com a CC do MFA, e não com Spínola, que permite que Vasco Gonçalves e Otelo abandonem Belém.

A CC do MFA, vendo que as coisas correm pelo lado do MFA, exige a demissão dos elementos spinolistas da JSN, que fica reduzida a Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Rosa Coutinho e Spínola. Este, não concordando, pede a Freitas do Amaral que redija uma declaração do estado de sítio e insiste na demissão do PM, sem sucesso. Às 13 horas, um comunicado da Presidência da República declara inconveniente a manifestação e, depois, outro comunicado, mas da 5.ª Divisão do EMGFA, proíbe-a taxativamente.  

Na manhã de 29, JSN e CC do MFA reúnem e debatem a possibilidade de institucionalização do MFA e Spínola tenta, mais uma vez, declarar o estado de sítio, sem sucesso.

No início da tarde, retomada a reunião, a CC do MFA apresenta as propostas da plataforma de entendimento. Confirma a demissão dos três generais da JSN referidos e encarrega Spínola e Costa Gomes de estudar a institucionalização do MFA. E, ao fim do dia 29, Spínola comunica ao PM, na presença de Costa Gomes, a intenção de renunciar ao cargo de Presidente da República.

Por fim, em reunião do Conselho de Estado, na manhã de 30 de setembro, Spínola, em dramática intervenção transmitida pela RTP, comunica a renúncia à Presidência da República.

Ficou, assim, tumulado o projeto pessoal de Spínola e avançou, embora com alguns solavancos, o processo de descolonização (com lutas internas), de democratização (com eleições para a Assembleia Constituinte, para o Parlamento, para a Presidência da República, para as autarquias locais e para as regiões autónomas) e de desenvolvimento (ainda não satisfatório, mas real).

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Se calhar, a democracia representativa quererá que se festeje o 28 de setembro.

2024.09.30 – Louro de Carvalho

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