A liturgia do 22.º domingo do Tempo
Comum no Ano B faz-nos refletir sobre a Lei de Deus. Deus procura, com as suas
indicações, ajudar os seus filhos a encontrar o caminho que conduz à Vida. Porém,
o coração humano facilmente se foca obsessivamente no mero cumprimento de leis
externas, eclipsando o amor e a comunhão com Deus.
***
Na primeira leitura (Dt 4,1-2.6-8),
Moisés insta o povo liberto do Egito a escutar, a acolher e a praticar as leis
e preceitos de Deus. Se Israel se deixar guiar pelas indicações de Deus, sem as
adulterar ou desprezar, encontrará o futuro de liberdade e de Vida.
Parte do Livro do Deuteronómio é o “livro da Lei”, descoberto no Templo de
Jerusalém no décimo oitavo ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nele, os
teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel), mas refugiados no sul
(Judá), após as derrotas dos reis do Norte frente aos Assírios – apresentam o
essencial da sua visão teológica: há um só Deus, que deve ser adorado por todo
o Povo num único local (Jerusalém) e que amou e elegeu Israel e fez com Ele uma
Aliança eterna. O Povo é propriedade de Javé e deve viver para o serviço de
Deus; nenhum outro Deus deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que é de Javé
por direito.
Em termos literários, temos três
discursos de Moisés pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo
atravessar o Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a
proximidade da morte, Moisés deixa ao Povo um testamento espiritual: lembra os
compromissos assumidos para com Deus e convida-o a renovar a aliança com Javé.
O trecho em apreço é parte do
primeiro discurso de Moisés. Na primeira parte do discurso, em estilo
narrativo, o deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do
Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na
Transjordânia. Na parte final, o autor apresenta, em estilo exortativo, uma
súmula da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso
de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”, a indicar que o
compromisso pedido a Israel se apoia nos acontecimentos históricos acabados de
expor: a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto postula o
compromisso.
Perdido em terra estrangeira e
mergulhado numa cultura estranha, hostilizado ao afirmar a fé em Javé e ao
celebrar o culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades
babilónicas, o Povo bíblico corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos.
E os teólogos deuteronomistas convidam o Povo a olhar para a sua História, a
redescobrir nela a presença amorosa de Javé e a recomprometer-se com Deus e com
a Aliança.
No passado, Deus realizou a
maravilhosa obra da libertação do Egito e guiou Israel pelo deserto até às portas
da Terra prometida. Israel viu do que Deus é capaz e percebeu que pode confiar
na sua bondade e no seu amor. Agora, Deus escreve nova página na História da Salvação,
dando ao Povo leis e preceitos sábios e justos. Guiado pelas indicações seguras
de Deus, o Povo entrará na Terra Prometida e habitará nela. Terá Vida em
abundância e concretizará os seus sonhos. Porém, é fundamental que Israel
escute e acolha as indicações de Deus e viva de acordo com elas, não cedendo à
tentação de adulterar os preceitos que Deus lhe dá. Se os ignorar ou deturpar, preferindo
caminhos à margem de Deus, cavará um futuro de sofrimento e morte. A Palavra de
Deus deve ser proposta sagrada, que o Povo se esforçará por abraçar e cumprir
fielmente.
Aliás, o cumprimento das leis e
preceitos de Deus tornará Israel grande aos olhos de outros povos. Ao verem
como Israel vive e caminha, as outras nações comentarão, com espanto: “Que povo
tão sábio e tão prudente é esta grande nação!” E os deuteronomistas sustentam que
tal admiração é justificada, pois é orgulho e honra, para Israel, ser o Povo
eleito de Deus, o Povo (“qual a grande nação que tem a divindade tão perto de
si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?”; “qual é a
grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como a lei que hoje vos
apresento?”). Deus elegeu Israel como o povo predileto, que deve deixar-se
guiar por Deus e viver na fidelidade aos mandamentos. É a melhor resposta do
Povo à iniciativa de Deus.
***
No Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23), Jesus
alerta para os perigos do legalismo (absolutização farisaica da Lei), que vai
contra o projeto de Deus, impedindo o crente de fazer verdadeira experiência de
encontro com Deus. As leis ajudam a delimitar o caminho; mas não podem
sobrepor-se ao amor e à misericórdia.
Enquanto andava pela Galileia a
anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus era frequentemente questionado pelos
fariseus e pelos doutores da Lei. Os fariseus eram determinantes no universo judaico.
Procuravam, a cada passo – nomeadamente na liturgia sinagogal, contagiar o povo
com o amor que sentiam pela Torah (a Lei). Apoiando-se nos escribas (ou
doutores da Lei), ensinavam as regras (“halakot”) que deviam dirigir a vida dos
israelitas. A santidade, não reservada aos sacerdotes, era algo que dizia
respeito a todo o povo. Chegava-se à santidade, cumprindo todas as exigências
da Lei. E, quando todo o povo cumprisse a Lei, o Messias traria a salvação a
Israel, pelo que vigiavam atentamente para que o Povo não se afastasse das
“tradições dos antigos”.
Essa tradição não se cingia às
normas escritas da Torah, mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde
apareciam as decisões e as sentenças dos Rabis sobre os mais diversos temas. Na
época de Jesus, a tradição constava de 613 leis, quantas as letras do Decálogo
dado a Moisés no Sinai, das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e
365 eram preceitos de formulação negativa. O Povo tinha dificuldade em conhecê-los
na totalidade e, ainda mais, em praticá-los. Por isso, os fariseus, encarregavam-se
de delinear a via para tornar Israel Povo santo e para apressar a vinda
libertadora do Messias. É à volta desta temática que gravita a polémica entre
Jesus e os fariseus.
Quando Marcos escreveu o seu
Evangelho (na década de 60), o cumprimento da Lei judaica era questão quente.
Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser acompanhada com o
cumprimento das leis judaicas. Porém, a imposição dos costumes judaicos levaria
ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. O Concílio de Jerusalém (de
cerca do ano 49) dera a primeira resposta à questão: para os cristãos, o
fundamental é a pessoa de Jesus e o Evangelho e não é lícito impor aos cristãos
vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. Contudo, o problema continuou durante
décadas, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos, que os
cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja. E Marcos, ciente de
que a questão ainda levanta problemas à convivência entre cristãos de origem judaico
e cristãos vindos do paganismo, pretende responder a esta problemática,
recorrendo à autoridade de Jesus.
Os povos antigos, em geral, e os
judeus, em particular, sentiam grande desconforto ao terem de lidar com certas
realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à morte)
que não controlavam. Criaram, pois, regras que interditavam o contacto com tais
realidades (cadáveres, sangue, lepra, etc.) ou que regulamentavam a forma de
lidar com elas, para as tornarem inofensivas. Quem infringia, mesmo
involuntariamente, tais regras, punha-se em situação de marginalidade e de
indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e
de integrar a comunidade. A pessoa ficava impura. Para readquirir o estado de pureza
e reintegrar a comunidade, tinha de fazer o rito de purificação estipulado na
Lei.
Na época de Jesus, as regras da
pureza tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Eram inúmeras
coisas que tornavam o homem impuro. Daí a obsessão com os rituais de purificação,
que deviam ser cumpridos a cada passo da vida diária. Um desses ritos era a
lavagem das mãos antes das refeições. Na origem estará a universalização do
preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos, antes de se
aproximarem do altar para o culto. Na ótica dos doutores da Lei, a purificação
das mãos antes das refeições não era questão de higiene, mas de pureza ritual.
A cada passo o crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma
realidade impura. E, para evitar que a impureza (que lhe ficara agarrada às mãos)
se introduzisse, com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das mãos antes
das refeições.
Na Galileia, terra em contacto com o
paganismo e onde as normas de pureza não eram tão rígidas como em Jerusalém,
não se dava importância ao ritual de lavar as mãos antes das refeições, para evitar
a ingestão da impureza. Porém, os fariseus vindos de Jerusalém, vendo como os discípulos
comiam sem realizar esse gesto ritual, ficaram escandalizados e referiram o
caso a Jesus. A acusação serviu para sondar Jesus e averiguar o seu respeito
pela tradição dos antigos.
Para Jesus, a obsessão dos fariseus
com os ritos externos de purificação é sintoma de grave deficiência quanto à
forma de ver e de viver a religião. Respondendo aos interpelantes, Jesus diz
isso. Partindo da Escritura, Jesus acusa-os de uma praxis que preserva a letra
da Lei, mas não tem em conta o seu espírito. Repetem, sem critério, práticas
externas e formalistas, mas não se preocupam com o acolhimento da vontade de
Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”),
nem com o bem das pessoas. A religião que praticam é religião vazia e estéril
(“é vão o culto que Me prestam”), que não vem de Deus, mas foi inventada pelos
homens (“as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos”). Segundo
Jesus, quem se instala nesse tipo de vivência é hipócrita: interessa-lhe mais o
parecer do que o ser, a materialidade do que a essência, a salvaguarda dos interesses
do que o cumprimento da vontade de Deus. Os fariseus cumprem as regras, mas não
amam; vestem a máscara da religião, mas não se preocupam com a vontade de Deus.
A sua religião é uma mentira.
Depois, Jesus dirige-Se à multidão e
formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é que o torna
impuro”. Este princípio, aparentemente enigmático e passível de várias
interpretações, será explicado, mais à frente, aos discípulos: “do interior do
homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação,
orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem
impuro”.
O dito de Jesus fala de dois
circuitos: o do estômago (aí entram os alimentos que se ingerem) e o do coração
(daí saem os pensamentos, os sentimentos e as ações). Os alimentos que entram
no estômago não são fonte de impureza; os pensamentos e as ações más que saem
do coração do homem é que o são, pois afastam o homem de Deus e põem-no à
margem da comunidade.
Na antropologia judaica, o coração é
o interior do homem, onde está a sede dos sentimentos, dos desejos, dos
pensamentos, dos projetos e das decisões. É nesse centro vital, donde tudo
parte que, é preciso atuar. A verdadeira religião não passa pelo cumprimento de
regras externas, ou pela repetição de rituais vazios, mas pela autêntica
conversão do coração, pela assunção dos valores do Reino de Deus e pela sua concretização
no quotidiano. Os rituais externos, por si, não transformam o coração do homem.
Podem até distrair o crente do essencial, dando-lhe falsa segurança e falsa
sensação de estar em regra com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve
ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, desejos,
pensamentos, projetos e decisões se concretizem na escuta atenta dos desafios
de Deus e no amor aos irmãos.
***
Na segunda leitura (Tg 1,17-18.21-22.27) fala-se da boa dádiva, do dom perfeito de Deus:
a palavra da verdade, a Palavra evangélica, que é dom de Deus que proporciona o
nascimento para a Vida nova a todos os que se dispuserem a acolhê-la.
O autor da Carta autoapresenta-se
como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”. A tradição liga-o ao
Tiago irmão (parente) do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual
os Evangelhos falam como filho de Maria. Segundo Flávio Josefo, terá sido
martirizado em Jerusalém, no ano 62. Porém, a atribuição do escrito a tal
personagem levanta dificuldades. O mais certo é ser outro Tiago, que não Tiago,
filho de Alfeu, ou Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, pois não se
encaixam neste perfil. Em todo o caso, o autor escreve em excelente grego,
recorrendo a recursos retóricos como a diatribe (muito usada pela filosofia helénica),
a perguntas retóricas e a jogos de paradoxos e contrastes. Inspira-se na
literatura sapiencial, para extrair lições de moral prática, mas radica nos
ensinamentos do Evangelho. É um sábio judeo-cristão que repensa, de modo
original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que encontraram
no ensinamento de Jesus.
A carta foi enviada “às doze tribos
que vivem na Diáspora”. A expressão alude a cristãos de origem judaica,
dispersos no Mundo greco-romano, sobretudo em regiões próximas da Palestina,
como a Síria ou o Egito, e à totalidade da comunidade de Jesus, dispersa pelo Mundo
greco-romano. Exorta os crentes a que não percam os valores cristãos herdados
do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo e a que vivam, com coerência e
verdade, fé.
O trecho em causa pertence à primeira
parte, onde o autor apresenta desenvolvimentos e sentenças sobre a autenticidade
e coerência da fé e convida os cristãos a enfrentarem, com alegria, as
provações, a escutarem e a porem em prática a Palavra de Deus, a viverem no
amor e a conciliarem a fé com obras concretas em favor dos irmãos.
Os versículos selecionados
referem-se à “boa dádiva”, ao “dom perfeito” vindo de Deus (“Pai das luzes”,
porque foi Ele que criou o sol, a lua, as estrelas e é Ele que ilumina os
caminhos dos homens): a “palavra da verdade”. Depois desta apresentação, o
autor desenvolve, de forma descontínua, mas desafiante, a sua reflexão sobre a
forma como os crentes devem ver e acolher essa Palavra geradora de uma Humanidade
nova. Acima de tudo, o dom de Deus deve ser acolhido com docilidade. Os que
acolhem a Palavra de coração disponível e obediente criam condições para que
surja o Homem novo, o transformado, o da Vida plena; e os que prescindem das
indicações de Deus e se fecham na autossuficiência recusam o ensejo de dar
pleno sentido à existência: vivem na mediocridade, com a malícia, e acomodam-se
à escuridão mortal.
A Palavra escutada e acolhida com
docilidade deve levar à ação. Escutar a Palavra é assumir a senda da conversão,
da mudança, do abandono da vida velha do egoísmo e do pecado; é, além disso,
aceitar o desafio de Deus e comprometer-se na luta pela transformação do Mundo.
Por fim, o autor convida os membros
da comunidade a viverem a fé na religião autêntica (em oposição à religião vazia,
inoperante, morta, dos que falam muito, mas não praticam). A “religião pura e
sem mancha”, que Deus quer, é a que se traduz em ações concretas, como “visitar
os órfãos e as viúvas nas suas tribulações” e “conservar-se limpo do contágio
do mundano”. Ligando isto com o tema central, a “Palavra da verdade”, podemos
dizer que é a escuta da Palavra de Deus que nos leva a passar da religião
ritual, legalista, externa, para a religião de efetivo compromisso com o
desígnio de Deus e com o amor dos irmãos.
***
Porém, há tanto farisaísmo no
ambiente que nos rodeia!
2024.09.02 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário