segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A obsessão com os rituais externos é forma enviesada de viver religião

 

A liturgia do 22.º domingo do Tempo Comum no Ano B faz-nos refletir sobre a Lei de Deus. Deus procura, com as suas indicações, ajudar os seus filhos a encontrar o caminho que conduz à Vida. Porém, o coração humano facilmente se foca obsessivamente no mero cumprimento de leis externas, eclipsando o amor e a comunhão com Deus.

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Na primeira leitura (Dt 4,1-2.6-8), Moisés insta o povo liberto do Egito a escutar, a acolher e a praticar as leis e preceitos de Deus. Se Israel se deixar guiar pelas indicações de Deus, sem as adulterar ou desprezar, encontrará o futuro de liberdade e de Vida.

Parte do Livro do Deuteronómio é o “livro da Lei”, descoberto no Templo de Jerusalém no décimo oitavo ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nele, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel), mas refugiados no sul (Judá), após as derrotas dos reis do Norte frente aos Assírios – apresentam o essencial da sua visão teológica: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local (Jerusalém) e que amou e elegeu Israel e fez com Ele uma Aliança eterna. O Povo é propriedade de Javé e deve viver para o serviço de Deus; nenhum outro Deus deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que é de Javé por direito.

Em termos literários, temos três discursos de Moisés pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da morte, Moisés deixa ao Povo um testamento espiritual: lembra os compromissos assumidos para com Deus e convida-o a renovar a aliança com Javé.

O trecho em apreço é parte do primeiro discurso de Moisés. Na primeira parte do discurso, em estilo narrativo, o deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia. Na parte final, o autor apresenta, em estilo exortativo, uma súmula da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”, a indicar que o compromisso pedido a Israel se apoia nos acontecimentos históricos acabados de expor: a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto postula o compromisso.

Perdido em terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado ao afirmar a fé em Javé e ao celebrar o culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades babilónicas, o Povo bíblico corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. E os teólogos deuteronomistas convidam o Povo a olhar para a sua História, a redescobrir nela a presença amorosa de Javé e a recomprometer-se com Deus e com a Aliança.

No passado, Deus realizou a maravilhosa obra da libertação do Egito e guiou Israel pelo deserto até às portas da Terra prometida. Israel viu do que Deus é capaz e percebeu que pode confiar na sua bondade e no seu amor. Agora, Deus escreve nova página na História da Salvação, dando ao Povo leis e preceitos sábios e justos. Guiado pelas indicações seguras de Deus, o Povo entrará na Terra Prometida e habitará nela. Terá Vida em abundância e concretizará os seus sonhos. Porém, é fundamental que Israel escute e acolha as indicações de Deus e viva de acordo com elas, não cedendo à tentação de adulterar os preceitos que Deus lhe dá. Se os ignorar ou deturpar, preferindo caminhos à margem de Deus, cavará um futuro de sofrimento e morte. A Palavra de Deus deve ser proposta sagrada, que o Povo se esforçará por abraçar e cumprir fielmente.

Aliás, o cumprimento das leis e preceitos de Deus tornará Israel grande aos olhos de outros povos. Ao verem como Israel vive e caminha, as outras nações comentarão, com espanto: “Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!” E os deuteronomistas sustentam que tal admiração é justificada, pois é orgulho e honra, para Israel, ser o Povo eleito de Deus, o Povo (“qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?”; “qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como a lei que hoje vos apresento?”). Deus elegeu Israel como o povo predileto, que deve deixar-se guiar por Deus e viver na fidelidade aos mandamentos. É a melhor resposta do Povo à iniciativa de Deus.

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No Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23), Jesus alerta para os perigos do legalismo (absolutização farisaica da Lei), que vai contra o projeto de Deus, impedindo o crente de fazer verdadeira experiência de encontro com Deus. As leis ajudam a delimitar o caminho; mas não podem sobrepor-se ao amor e à misericórdia.

Enquanto andava pela Galileia a anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus era frequentemente questionado pelos fariseus e pelos doutores da Lei. Os fariseus eram determinantes no universo judaico. Procuravam, a cada passo – nomeadamente na liturgia sinagogal, contagiar o povo com o amor que sentiam pela Torah (a Lei). Apoiando-se nos escribas (ou doutores da Lei), ensinavam as regras (“halakot”) que deviam dirigir a vida dos israelitas. A santidade, não reservada aos sacerdotes, era algo que dizia respeito a todo o povo. Chegava-se à santidade, cumprindo todas as exigências da Lei. E, quando todo o povo cumprisse a Lei, o Messias traria a salvação a Israel, pelo que vigiavam atentamente para que o Povo não se afastasse das “tradições dos antigos”.

Essa tradição não se cingia às normas escritas da Torah, mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos Rabis sobre os mais diversos temas. Na época de Jesus, a tradição constava de 613 leis, quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Sinai, das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. O Povo tinha dificuldade em conhecê-los na totalidade e, ainda mais, em praticá-los. Por isso, os fariseus, encarregavam-se de delinear a via para tornar Israel Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. É à volta desta temática que gravita a polémica entre Jesus e os fariseus.

Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (na década de 60), o cumprimento da Lei judaica era questão quente. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser acompanhada com o cumprimento das leis judaicas. Porém, a imposição dos costumes judaicos levaria ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. O Concílio de Jerusalém (de cerca do ano 49) dera a primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o Evangelho e não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. Contudo, o problema continuou durante décadas, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos, que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja. E Marcos, ciente de que a questão ainda levanta problemas à convivência entre cristãos de origem judaico e cristãos vindos do paganismo, pretende responder a esta problemática, recorrendo à autoridade de Jesus.

Os povos antigos, em geral, e os judeus, em particular, sentiam grande desconforto ao terem de lidar com certas realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não controlavam. Criaram, pois, regras que interditavam o contacto com tais realidades (cadáveres, sangue, lepra, etc.) ou que regulamentavam a forma de lidar com elas, para as tornarem inofensivas. Quem infringia, mesmo involuntariamente, tais regras, punha-se em situação de marginalidade e de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade. A pessoa ficava impura. Para readquirir o estado de pureza e reintegrar a comunidade, tinha de fazer o rito de purificação estipulado na Lei.

Na época de Jesus, as regras da pureza tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Eram inúmeras coisas que tornavam o homem impuro. Daí a obsessão com os rituais de purificação, que deviam ser cumpridos a cada passo da vida diária. Um desses ritos era a lavagem das mãos antes das refeições. Na origem estará a universalização do preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos, antes de se aproximarem do altar para o culto. Na ótica dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era questão de higiene, mas de pureza ritual. A cada passo o crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma realidade impura. E, para evitar que a impureza (que lhe ficara agarrada às mãos) se introduzisse, com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das mãos antes das refeições.

Na Galileia, terra em contacto com o paganismo e onde as normas de pureza não eram tão rígidas como em Jerusalém, não se dava importância ao ritual de lavar as mãos antes das refeições, para evitar a ingestão da impureza. Porém, os fariseus vindos de Jerusalém, vendo como os discípulos comiam sem realizar esse gesto ritual, ficaram escandalizados e referiram o caso a Jesus. A acusação serviu para sondar Jesus e averiguar o seu respeito pela tradição dos antigos.

Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de grave deficiência quanto à forma de ver e de viver a religião. Respondendo aos interpelantes, Jesus diz isso. Partindo da Escritura, Jesus acusa-os de uma praxis que preserva a letra da Lei, mas não tem em conta o seu espírito. Repetem, sem critério, práticas externas e formalistas, mas não se preocupam com o acolhimento da vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”), nem com o bem das pessoas. A religião que praticam é religião vazia e estéril (“é vão o culto que Me prestam”), que não vem de Deus, mas foi inventada pelos homens (“as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos”). Segundo Jesus, quem se instala nesse tipo de vivência é hipócrita: interessa-lhe mais o parecer do que o ser, a materialidade do que a essência, a salvaguarda dos interesses do que o cumprimento da vontade de Deus. Os fariseus cumprem as regras, mas não amam; vestem a máscara da religião, mas não se preocupam com a vontade de Deus. A sua religião é uma mentira.

Depois, Jesus dirige-Se à multidão e formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é que o torna impuro”. Este princípio, aparentemente enigmático e passível de várias interpretações, será explicado, mais à frente, aos discípulos: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro”.

O dito de Jesus fala de dois circuitos: o do estômago (aí entram os alimentos que se ingerem) e o do coração (daí saem os pensamentos, os sentimentos e as ações). Os alimentos que entram no estômago não são fonte de impureza; os pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que o são, pois afastam o homem de Deus e põem-no à margem da comunidade.

Na antropologia judaica, o coração é o interior do homem, onde está a sede dos sentimentos, dos desejos, dos pensamentos, dos projetos e das decisões. É nesse centro vital, donde tudo parte que, é preciso atuar. A verdadeira religião não passa pelo cumprimento de regras externas, ou pela repetição de rituais vazios, mas pela autêntica conversão do coração, pela assunção dos valores do Reino de Deus e pela sua concretização no quotidiano. Os rituais externos, por si, não transformam o coração do homem. Podem até distrair o crente do essencial, dando-lhe falsa segurança e falsa sensação de estar em regra com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, desejos, pensamentos, projetos e decisões se concretizem na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.

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Na segunda leitura (Tg 1,17-18.21-22.27) fala-se da boa dádiva, do dom perfeito de Deus: a palavra da verdade, a Palavra evangélica, que é dom de Deus que proporciona o nascimento para a Vida nova a todos os que se dispuserem a acolhê-la.

O autor da Carta autoapresenta-se como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”. A tradição liga-o ao Tiago irmão (parente) do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam como filho de Maria. Segundo Flávio Josefo, terá sido martirizado em Jerusalém, no ano 62. Porém, a atribuição do escrito a tal personagem levanta dificuldades. O mais certo é ser outro Tiago, que não Tiago, filho de Alfeu, ou Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, pois não se encaixam neste perfil. Em todo o caso, o autor escreve em excelente grego, recorrendo a recursos retóricos como a diatribe (muito usada pela filosofia helénica), a perguntas retóricas e a jogos de paradoxos e contrastes. Inspira-se na literatura sapiencial, para extrair lições de moral prática, mas radica nos ensinamentos do Evangelho. É um sábio judeo-cristão que repensa, de modo original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que encontraram no ensinamento de Jesus.

A carta foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora”. A expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no Mundo greco-romano, sobretudo em regiões próximas da Palestina, como a Síria ou o Egito, e à totalidade da comunidade de Jesus, dispersa pelo Mundo greco-romano. Exorta os crentes a que não percam os valores cristãos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo e a que vivam, com coerência e verdade, fé.

O trecho em causa pertence à primeira parte, onde o autor apresenta desenvolvimentos e sentenças sobre a autenticidade e coerência da fé e convida os cristãos a enfrentarem, com alegria, as provações, a escutarem e a porem em prática a Palavra de Deus, a viverem no amor e a conciliarem a fé com obras concretas em favor dos irmãos.

Os versículos selecionados referem-se à “boa dádiva”, ao “dom perfeito” vindo de Deus (“Pai das luzes”, porque foi Ele que criou o sol, a lua, as estrelas e é Ele que ilumina os caminhos dos homens): a “palavra da verdade”. Depois desta apresentação, o autor desenvolve, de forma descontínua, mas desafiante, a sua reflexão sobre a forma como os crentes devem ver e acolher essa Palavra geradora de uma Humanidade nova. Acima de tudo, o dom de Deus deve ser acolhido com docilidade. Os que acolhem a Palavra de coração disponível e obediente criam condições para que surja o Homem novo, o transformado, o da Vida plena; e os que prescindem das indicações de Deus e se fecham na autossuficiência recusam o ensejo de dar pleno sentido à existência: vivem na mediocridade, com a malícia, e acomodam-se à escuridão mortal.

A Palavra escutada e acolhida com docilidade deve levar à ação. Escutar a Palavra é assumir a senda da conversão, da mudança, do abandono da vida velha do egoísmo e do pecado; é, além disso, aceitar o desafio de Deus e comprometer-se na luta pela transformação do Mundo.

Por fim, o autor convida os membros da comunidade a viverem a fé na religião autêntica (em oposição à religião vazia, inoperante, morta, dos que falam muito, mas não praticam). A “religião pura e sem mancha”, que Deus quer, é a que se traduz em ações concretas, como “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações” e “conservar-se limpo do contágio do mundano”. Ligando isto com o tema central, a “Palavra da verdade”, podemos dizer que é a escuta da Palavra de Deus que nos leva a passar da religião ritual, legalista, externa, para a religião de efetivo compromisso com o desígnio de Deus e com o amor dos irmãos.

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Porém, há tanto farisaísmo no ambiente que nos rodeia!

2024.09.02 – Louro de Carvalho

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