quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Revisão da PAC no âmbito da reforma da política alimentar da UE

 

A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, foi instada a abrir novo capítulo na política alimentar da União Europeia (UE) e a rever o atual sistema da Política Agrícola Comum (PAC), na sequência das recomendações de um grupo de reflexão.

O grupo, que reúne representantes de 29 cooperativas de agricultores, empresas agroindustriais, várias ONG, sociedade civil, instituições financeiras e universidades, trabalhou, durante mais de sete meses, para produzir um relatório de mais de 100 páginas que apresenta uma visão para o futuro dos sistemas agroalimentares europeus.

O relatório final, que foi aprovado por consenso por todos os seus membros, foi apresentado, a 4 de setembro, à líder do executivo comunitário pelo presidente, o Professor alemão Peter Strohschneider. E, frisando a urgência da reforma dos sistemas alimentares e destacando a necessidade de uma ação imediata, sustenta que a cooperação e o diálogo em toda a cadeia de valor alimentar são essenciais para reformular a política alimentar da UE.

Anunciado por Ursula von der Leyen no discurso sobre o estado da União de 2023, o diálogo estratégico para o futuro da agricultura da UE foi concebido para obviar à crescente polarização no debate da política agrícola e alimentar. A presidente da Comissão comprometera-se a apresentar um roteiro nos primeiros 100 dias do próximo mandato. Agora, considerou: “A minha equipa e eu iremos, naturalmente, estudar cuidadosamente as recomendações do relatório, que serão depois integradas na visão para a agricultura e a alimentação.”

O relatório aborda a necessidade de reformar o programa de subsídios agrícolas da UE e a PAC. Sugere que se passe dos atuais pagamentos que não diminuem, sucessivamente, consoante a superfície explorada, para a abordagem eficaz de apoio ao rendimento, apoio público financeiro. A referência é aos contestados pagamentos diretos aos agricultores por hectare, que constituem cerca de 75% da PAC e que, sem um limite máximo, permitem que as grandes explorações beneficiem excessivamente dos subsídios europeus. “A opinião partilhada pelos membros do diálogo estratégico é muito clara: o dinheiro público não deve ser gasto com quem não precisa dele”, afirmou Peter Strohschneider, vincando que “a recomendação é que a PAC seja adequada ao seu objetivo” e pondo a tónica na dinamização das zonas rurais, bem como na recompensa das práticas agrícolas sustentáveis.

Uma das propostas ambiciosas é a criação do Fundo para uma Transição Justa no setor agroalimentar. Este apoio ao investimento, separado do orçamento da PAC, concederia empréstimos ou subvenções para apoiar os agricultores na transição para práticas sustentáveis.

O relatório aborda as práticas ambientais obrigatórias, associadas aos subsídios da UE, que faziam parte da arquitetura ecológica da PAC, mas que foram alteradas na sequência de protestos generalizados dos agricultores. Porém, sugere apenas “oferecer um pacote de medidas voluntárias aprovadas pela Comissão”, como a promoção de práticas ambientais, mas não obrigatórias.

O relatório, que defende mudança na abordagem da UE à política alimentar, surge numa altura em que a implementação da anterior estratégia “Do Prado ao Prato” está estagnada, no contexto de crescente descontentamento entre os agricultores de toda a Europa. “Já demos início a uma nova abordagem que passa por uma maior confiança nos agricultores e menos microgestão, mas melhores incentivos”, afirmou Ursula von der Leyen.

O documento sublinha a importância de reduzir a burocracia desnecessária e de garantir uma política inclusiva nos processos de tomada de decisão. Entre os seus dez princípios orientadores, reconhece a importância estratégica da produção alimentar e agrícola, no atual contexto geopolítico e como uma componente vital da segurança europeia. E, tendo em conta esta relevância estratégica, convida a Comissão a rever as estratégias de negociação comercial e os métodos de avaliação do impacto dos acordos comerciais.

O relatório apela a uma abordagem mais ampla da sustentabilidade, que englobe as preocupações ecológicas, a viabilidade económica dos agricultores e as suas responsabilidades sociais. Defende a plena aplicação da condicionalidade social no âmbito da PAC, ligando os fundos da UE ao cumprimento de normas laborais mínimas. E recomenda o desenvolvimento de um sistema de “nova avaliação comparativa da sustentabilidade”, para normalizar a avaliação das práticas sustentáveis, abordando a falta de uma metodologia unificada.

Além disso, o relatório, para continuar o trabalho do diálogo estratégico, propõe a criação de um organismo alargado de partes interessadas, o Conselho Europeu Agroalimentar (EBAF), que será responsável pelo desenvolvimento, aplicação, supervisão e aperfeiçoamento do quadro de avaliação comparativa, pela resolução de incoerências e pelo acompanhamento dos progressos.

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O processo de “diálogo estratégico” foi aberto pela Comissão, a 25 de janeiro deste ano, visando a reflexão sobre o futuro da agricultura, quando o setor multiplicava os protestos em vários estados-membros. Ursula von der Leyen reuniu-se, em Bruxelas, com representantes de cerca de 30 organizações de agricultores e da produção alimentar, reconhecendo a polarização.

O desafio é, segundo a presidente de Comissão, “competir a nível mundial e agir a nível local”, para responder às preferências dos consumidores, pois “a Europa tem os alimentos mais saudáveis e de melhor qualidade do Mundo”.  “Os nossos agricultores trabalham, diariamente, num mercado global muito competitivo e são, frequentemente a parte mais vulnerável da cadeia de valor. E, claro, merecem uma remuneração justa”, vincou.

As reuniões seguiriam até ao verão, para debate do tema dos rendimentos dos agricultores e a competitividade num modelo cada vez mais sustentável do ponto de vista ambiental.

Os profissionais estão preocupados com as normas ambientais do Pacto Ecológico Europeu (PEE) e com a concorrência dos mercados mundiais, sobretudo via acordos de livre comércio da UE.

“Os agricultores estão, atualmente, muito pressionados. E precisamos de mudar esta abordagem de cima para baixo para uma abordagem de baixo para cima, porque um tamanho único não serve para todos”, disse Lennart Nilsson, presidente da federação Cogeca, sentenciando: “Penso que é urgente que haja mais dinheiro, mais apoio básico e menos regras.”

A UE, que perdeu quatro milhões de explorações agrícolas, em 10 anos, precisa de um rumo a longo prazo. “Não vai trazer soluções amanhã ou depois de amanhã. Mas penso que a Comissão tem a perspetiva de criar um movimento para uma maior clareza sobre o que deverá ser a agricultura em 2050”, referiu Peter Meedendorp, presidente do Conselho Europeu dos Jovens Agricultores, esperando que as recomendações da Comissão ajudem a criar perspetivas para os jovens agricultores, para decidirem se querem continuar no setor ou se vão fazer algo diferente que pague mais com menos trabalho.

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Como previsto, a Comissão apresentou, a 21 de fevereiro, os objetivos de redução das emissões poluentes até 2040, para travar as alterações climáticas. E o setor agrícola, grande contribuinte para essa poluição, deverá ser envolvido no debate sobre estratégias para os atingir. No entanto, os atrasos nas promessas legislativas e os protestos dos agricultores põem em dúvida a estratégia “Do prado ao prato” que a Comissão visava implementar na sua política alimentar.

A Comissão revelou, em 2020, a estratégia alimentar “Do prado ao prato”, mas mais de metade não foi cumprida. É um elemento emblemático do PEE, centrado na produção ambientalmente sustentável, mas sobrepôs-se a reação dos agricultores. Porém, das suas 31 ações, 15 não foram concretizadas e a proposta sobre pesticidas foi retirada por Ursula von der Leyen.

Esta estratégia tinha como objetivo tornar a alimentação europeia mais sustentável, transformando a produção, a distribuição e o consumo. Porém, só os elementos conexos com a agricultura – a vertente agrícola – avançaram de forma inequívoca. Deveria ser apresentado um plano de ação,  antes do final do mandato da anterior Comissão, tendo passado das 27 propostas originais para 31. Embora um calendário publicado pela Comissão indique que quase todas as iniciativas estão concluídas, em muitos casos, o executivo da UE pouco mais fez do que trabalhar numa avaliação de impacto – documento analítico dos prós e dos contras de diferentes opções políticas. Isto fez supor que mais de dois terços da estratégia estariam inacabados antes da tomada de posse da nova Comissão, em novembro, estando a legislação a ser discutida pelos legisladores.

Se os elementos da estratégia fossem uma refeição, muitos ainda não estariam no prato de entrada. A Lei dos Sistemas Alimentares Sustentáveis, a espinha dorsal da estratégia, está ausente. Esteve no topo da lista de ações da Comissão, mas, após repetidos atrasos, foi adiada indefinidamente. As propostas da UE para reduzir para metade a utilização de pesticidas foram apresentadas em 2022, mas Ursula von der Leyen anunciou o arquivamento. E faltam as leis do bem-estar dos animais de criação, apoiadas por 1,4 milhões de assinaturas em petições recentes.

Um plano para introduzir rótulos de saúde na parte da frente das embalagens de alimentos também foi adiado indefinidamente, após o clamor de oposição liderado pela Itália, assim como outras iniciativas de rotulagem sobre sustentabilidade, indicação de origem e marcação de datas. Nada parece estar a ser feito em relação às promessas de estimular a procura de alimentos sustentáveis, através das escolas, dos contratos públicos e das promoções. Segundo um porta-voz da Comissão, foi cumprida a promessa de reformular os alimentos processados e de estabelecer níveis máximos para certos nutrientes, citando o Código de Conduta voluntário, acordado para os processadores de alimentos, operadores de serviços e retalhistas, que entrou em vigor em julho de 2021.

Todavia, o plano para 2020 descreveu tais promessas como duas iniciativas com calendários diferentes. As 30 páginas do texto final do Código não mostram qualquer menção a níveis máximos de nutrientes, enquanto o conceito de reformulação é citado só uma vez.

Outras sete iniciativas que a Comissão se comprometeu a adotar, em 2020, foram publicadas, mas não foram formalmente fechadas. É possível que o executivo comunitário tenha trabalhado neste domínio, embora os governos da UE e o Parlamento Europeu (PE) precisem de dar o aval final, antes de as iniciativas serem transpostas para a legislação. Apenas duas – as normas de comercialização de produtos para o pequeno-almoço e as regras de diligência devida das empresas – seriam aprovadas antes do final do mandato, embora esta última parecesse estar em dúvida, após hesitações da Alemanha e da Itália.

Também avançadas estão as regras sobre a certificação da remoção de carbono nas explorações agrícolas, onde se esperava acordo entre legisladores e governos antes de abril passado, mas não a tempo de estarem finalizadas antes das eleições. Mais atrasadas estão as leis das novas técnicas genómicas e do desperdício alimentar, em que os legisladores chegaram a acordo, mas os estados-membros não. Outras três propostas nem sequer chegaram a esse ponto.

A estratégia registou alguns êxitos. Oito iniciativas finalizadas dizem respeito à política agrícola, o que sugere a taxa de conclusão de 72,7% para a vertente “agricultura”. Nalguns casos, como as recomendações dirigidas a cada estado-membro sobre os planos estratégicos da PAC e sobre os dados de sustentabilidade das explorações agrícolas, complementam outras leis importantes.

A Comissão apresentou reformas das estatísticas sobre pesticidas e das regras de comercialização dos biopesticidas, embora estas devessem ser acompanhadas de uma reforma mais vasta, que parece abandonada. Noutros domínios, houve progressos importantes, como nos planos de emergência para o abastecimento alimentar, que abordam as preocupações de segurança conexas com a pandemia de covid-19. A Comissão adotou novas orientações antitrust, sobre os acordos de sustentabilidade agrícola, em dezembro último. E afirma-se bem-sucedida em domínios mais vagos da estratégia: a reforma da organização do mercado comum e o fórum anual de boas práticas sobre as cadeias de abastecimento cumpriram o compromisso de melhorar a transparência.

Os objetivos políticos da iniciativa permanecem válidos e as modalidades exatas, os prazos e os processos legislativos para os alcançar continuam a ser objeto de revisão constante. Quando os agricultores saíram à rua, Ursula von der Leyen prometeu abrir um diálogo estratégico sobre o futuro da agricultura, que  “não é um exercício de marketing”. E as iniciativas “Do prado ao prato” são, agora, parte integrante do quadro político no âmbito do qual o diálogo estratégico está a decorrer e o novo plano incorpora a abordagem geral do anterior.

PAC, alimentação e ecoeconomia têm de andar articuladas, em prol do bem-estar.

2024.09.04 – Louro de Carvalho

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