quarta-feira, 25 de setembro de 2024

No Algarve, agricultores abrem para o consumo racional da água

Na sequência da grave seca que atingiu a região algarvia, há alguns meses, o governo determinou aos agricultores severas restrições de água, o que suscitou grande indignação. Os cortes, de até 70 %, acabaram por não ser levados a cabo.

Está em causa a Resolução do Conselho de Ministros n.º 80/2024, de 21 de junho, que, verificando que, “na região do Algarve, desde maio de 2022, os níveis de armazenamento de água nas albufeiras se situam abaixo dos 50 %”, aprova um quadro de medidas restritivas ao consumo de água, quer na agricultura, quer no âmbito urbano e suspende o abastecimento de água aos campos de golfe, enquanto prossegue o rol de empreendimentos (em projeto e em curso) atinentes a esta matéria, inscritos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e no Algarve 2030 – Estratégia de Desenvolvimento Regional, da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR-A).

Não obstante, nesta região frequentemente atingida pela seca, os agricultores estão a abrir caminho para um consumo racional da água, que têm de partilhar com milhões de turistas.

A este respeito, Jorge Páscoa, enólogo da Quinta do Canhoto, uma vinha especializada em enoturismo situada nas colinas de Albufeira, cidade costeira que se tornou um dos principais pontos turísticos da Europa, confessa: “A verdade é que já vivemos com restrições. Há quem diga que um dia iremos ficar sem água. Mas já ficámos.”

Embora as visitas à quinta e as provas de vinho tenham sucesso, a diminuição da pluviosidade, nos últimos, anos limitou o volume da produção. Após a vindima, em fins de agosto, uma cuba vazia reflete esta realidade. “A qualidade é boa, mas a quantidade não”, lamenta o enólogo.

“A falta de água levou-nos a investir em sistemas de rega inovadores”, explica Edgar Vilarinho, coproprietário da adega da mesma Quinta do Canhoto, que conta com 11 hectares de vinhas, irrigadas, graças ao tradicional furo da família, e com um amplo espaço dedicado à vinicultura, a provas e a eventos.

Estas soluções incluem sensores que medem, em tempo real, os níveis de humidade a diferentes profundidades sob as vinhas, com o objetivo de fazer a rega, só quando necessário. No final da campanha, poupa-se água, melhora-se a qualidade da fruta e, obviamente, do vinho.

A empresa optou também por um sistema de irrigação subterrâneo, com rega direta das raízes das videiras. Edgar Vilarinho considera que este sistema lhe permite regar as vinhas uma vez por semana, em vez de oito vezes, como acontecia anteriormente. “Para já, estamos muito satisfeitos com esta solução. Veremos o que acontece a seguir”, afirma. 

Trata-se de uma tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos da América (EUA) e concebida para reduzir a evaporação e a competição pela água com outras plantas. “A longo prazo, podemos vir a poupar até 30 % da água, ao utilizá-la menos e melhor”, assegura Jorge Páscoa.

Os produtores de vinho são apoiados pela associação portuguesa Smart Farm Colab, que luta pela democratização das soluções digitais nas explorações agrícolas. A associação é financiada, de forma parcial, pelo governo português e pela União Europeia (UE). “O nosso objetivo é trabalhar com os técnicos que estão no terreno, todos os dias, para adaptar as necessidades à tecnologia da forma mais eficaz possível. A tecnologia não toma decisões, mas ajuda a implementá-las”, explicita Cátia Pinto, diretora executiva do Smart Farm CoLab.

“Não choveu nada em agosto e quase não choveu em julho. Aqui, cada gota conta, porque não nos podemos esquecer de que estamos a competir com outras indústrias, como o turismo”, diz Cátia Pinto, enquanto apresenta dados da estação meteorológica instalada nas vinhas.

O Algarve, que tem algumas das mais belas e confortáveis praias de Portugal, é a principal região turística do país. Em 2023, recebeu mais de cinco milhões de visitantes. É também um famoso destino de golfe, com quase 40 campos. Além disso, é uma importante região agrícola. Nos últimos anos, voltou-se para o cultivo de citrinos, como a laranja, e do abacate, frutas especialmente exigentes em termos de recursos hídricos.

“Estas plantações obrigam-nos a encontrar soluções, como a criação de reservatórios e a procura de água a maior profundidade, mas são, muitas vezes, uma caixa de Pandora. Resolvemos um problema, mas criamos outros para o futuro”, explica Luís Silva, proprietário da Quinta do Freixo, um ponto de referência no ecoturismo do Algarve situado a 20 minutos de carro de Albufeira.

Após várias décadas de agricultura biológica, Luís Silva defende agora uma “gestão holística”, que aplica na sua propriedade, utilizando técnicas baseadas nos serviços ecossistémicos complementares prestados pelas plantas e pelos animais.

Mil e duzentas ovelhas pastam nas suas terras num sistema de rotação curta que imita a vida selvagem. Os animais revolvem o solo e acrescentam-lhe matéria orgânica, o que ajuda as plantas a crescer melhor e o solo a absorver a água de forma mais eficaz. “No pico do verão, o solo pode atingir temperaturas de 60 graus (Celsius). Nada sobrevive nessas condições, por isso é muito importante manter o solo coberto. Se o solo estiver exposto, a água desliza por ele”, explica o agricultor, enquanto raspa a terra, dura como pedra, em local onde os animais ainda não passaram.

“Os animais ajudam-nos a criar um solo que funciona como uma esponja”, refere Luís Silva, que participou em vários projetos de investigação universitária ligados à agricultura regenerativa.

A viabilidade económica da Quinta do Freixo assenta no turismo. Os visitantes podem desfrutar dos vales arborizados e dos reservatórios de água da propriedade, repletos de trilhos para caminhadas e ciclismo. E Luís Silva não se rege pela força económica dos mercados internacionais. A grande maioria das frutas e legumes que produz é vendida na loja da quinta e utilizada no restaurante da mesma, o que, na ótica do proprietário, gera uma boa margem de lucro.

“O capital natural também é uma componente importante para nós. Encaramos a regeneração do solo como lucro. Se não tivéssemos vida selvagem, ou [se tivéssemos] apenas uma plantação, o nosso potencial turístico não seria o mesmo”, afirma.

Segundo as estimativas, mais de 60 % dos solos europeus não são saudáveis e a sua degradação já levou a prejuízos de milhares de milhões de euros, devido à perda dos serviços essenciais que prestam, de acordo com a UE. A proposta de lei da UE relativa à monitorização do solo ajudará a identificar, em breve, as práticas adequadas, fornecendo dados precisos dos parâmetros do solo.

Ao mesmo tempo, o consumo urbano de água, no Algarve, subiu 4,6%, em janeiro, comparativamente com igual período de 2023, gasto equivalente a 20 hectómetros cúbicos, segundo dados da comissão de gestão de albufeiras, da Agência Portuguesa do ambiente (APA). E, como noutras regiões, as perdas de água da rede pública são constantes. Por isso, a APA recordou que, após a declaração da situação de alerta, devido à seca no Algarve, foram tomadas medidas de contingência, como reduções de 15% no volume de água consumido pelo setor urbano (incluindo uso domésticos e não doméstico), que inclui turismo, de 25% do volume de água consumido pelo setor agrícola e de 18% do volume de água consumido pelo golfe.

Em contraponto, como noticiou, a 15 de abril, a Lusa, o consumo de água, no Algarve, desceu 17,9%, em março, comparativamente com o mês homólogo de 2023, uma redução global superior aos 15% previstos nas medidas anunciadas pelo governo para o setor urbano, que inclui o turismo.

O segundo relatório de monitorização do Compromisso com a Eficiência Hídrica, para o setor do turismo, elaborado pela ADENE, indica que os empreendimentos turísticos da região do Algarve, que aderiram ao selo de eficiência hídrica Save Water, reduziram em 14% os consumos de água até 31 de julho. Por outro lado, encontram-se em implementação 2347 medidas de eficiência hídrica, mais 264 medidas do que as reportadas a 31 de maio, das quais quase metade é estruturante. As intervenções ao nível dos dispositivos e nos sistemas de rega, seguidas de melhorias no sistema de gestão e manutenção e nos equipamentos, continuam a ser as mais selecionadas.

***

Cada vez mais, a tecnologia digital ajuda a gerir os sistemas de água na Europa. Os apoios que oferece incluem a monitorização, em tempo real, da utilização e da qualidade da água, a deteção mais rápida de fugas e a irrigação inteligente. Além disso, a inteligência artificial (IA) pode ajudar a prever os padrões de precipitação. Cerca de 23% da água nas redes da UE perde-se, antes de chegar aos consumidores, mas as soluções digitais podem reduzir as fugas em 30% e diminuir os transbordos nos sistemas de esgotos.

Os potenciais benefícios das soluções digitais no setor foram estabelecidos por projetos financiados pela UE, no âmbito do cluster ICT4Water. A utilização da análise de dados, da computação em nuvem da Internet das coisas, da inteligência aumentada, da cadeia de blocos e o desenvolvimento de gémeos digitais no setor da água proporcionam novas capacidades de análise, de automatização, de correção em tempo real, de previsão e de minimização dos riscos para o ambiente natural. Além disso, as soluções digitais podem ser utilizadas para sensibilizar e envolver os cidadãos e os consumidores e influenciar o seu comportamento. Os sistemas domésticos de distribuição de água também podem beneficiar da digitalização. Entre outras coisas, a digitalização pode oferecer mais informações aos cidadãos sobre o consumo doméstico de água e sensibilizá-los para a utilização sustentável da água.

Porém, a tecnologia digital também pode ter impacto negativo  no recurso mais importante da vida, principalmente, através do aumento do consumo de água doce. Por exemplo, os centros de dados utilizam, diariamente, grandes quantidades de água de refrigeração, tal como as fábricas que produzem baterias para automóveis e semicondutores.

A procura digital espelha-se nos seguintes dados: em 2023, tinham acesso à Internet 5,3 mil milhões de pessoas; o setor das tecnologias de informação e comunicação (TIC) irá crescer significativamente, prevendo-se que 29,3 mil milhões de dispositivos estejam em linha até 2030; os centros de dados, que apoiam este crescimento, necessitam de quantidade substancial de água para arrefecimento, que varia entre 68 mil e 1,7 milhões de litros por dia.

Há, ainda, mais dados. No atinente à produção de baterias, sabe-se que a produção de uma bateria de automóvel requer cerca de 26 mil litros de água. E, quanto à produção de hidrogénio, diz-se que essa necessita de nove litros de água ultrapura por quilograma.

A utilização de tecnologias que consomem água para gerir melhor os sistemas hídricos apresenta, claramente, um dilema aos legisladores e aos líderes da indústria. Estão a ser desenvolvidos esforços para criar tecnologias inovadoras e eficientes, em termos de água, e práticas sustentáveis, para equilibrar os benefícios do progresso digital com a responsabilidade ambiental.

A adoção de tecnologias de arrefecimento eficientes, como o arrefecimento líquido, a utilização de água não potável ou recuperada e a otimização das infraestruturas reduzem o consumo de água. As estratégias incluem sistemas circulares de água, águas residuais municipais recuperadas, seleção de locais em áreas com abundância de água, recolha de águas pluviais e armazenamento inteligente de água. Todavia, há que ter em consideração que a extração de lítio para baterias ameaça os recursos hídricos e os ecossistemas. Por isso, a Lei das Matérias-Primas da UE tem como objetivo minimizar os impactos ambientais e explorar alternativas sustentáveis; e o novo regulamento da UE relativo às baterias visa promover a produção sustentável de baterias e abordar os impactos ambientais, incluindo a utilização da água.

Enfim, a tecnologia digital ajudar-nos-á a utilizar melhor a água, mas é também um consumidor sedento de recursos. O desafio, evidentemente, é encontrar o equilíbrio certo.

2024.09.25 – Louro de Carvalho

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