Na sequência da grave seca que atingiu a região algarvia, há alguns meses, o governo determinou aos agricultores severas restrições de água, o que suscitou grande indignação. Os cortes, de até 70 %, acabaram por não ser levados a cabo.
Está em
causa a Resolução do Conselho
de Ministros n.º 80/2024, de 21 de junho, que, verificando que, “na região do
Algarve, desde maio de 2022, os níveis de armazenamento de água nas albufeiras
se situam abaixo dos 50 %”, aprova um quadro de medidas restritivas ao consumo
de água, quer na agricultura, quer no âmbito urbano e suspende o abastecimento de
água aos campos de golfe, enquanto prossegue o rol de empreendimentos (em
projeto e em curso) atinentes a esta matéria, inscritos no Plano de Recuperação
e Resiliência (PRR) e no Algarve 2030 – Estratégia de Desenvolvimento Regional,
da Comissão de
Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR-A).
Não obstante, nesta região frequentemente atingida
pela seca, os agricultores estão a abrir caminho para um consumo racional da
água, que têm de partilhar com milhões de turistas.
A este
respeito, Jorge Páscoa, enólogo da Quinta do Canhoto, uma vinha
especializada em enoturismo situada nas colinas de Albufeira, cidade costeira
que se tornou um dos principais pontos turísticos da Europa, confessa: “A
verdade é que já vivemos com restrições. Há quem diga que um dia iremos ficar
sem água. Mas já ficámos.”
Embora as
visitas à quinta e as provas de vinho tenham sucesso, a diminuição da
pluviosidade, nos últimos, anos limitou o volume da produção. Após a vindima,
em fins de agosto, uma cuba vazia reflete esta realidade. “A qualidade é boa, mas
a quantidade não”, lamenta o enólogo.
“A falta de
água levou-nos a investir em sistemas de rega inovadores”, explica Edgar
Vilarinho, coproprietário da adega da mesma Quinta do Canhoto, que conta com 11
hectares de vinhas, irrigadas, graças ao tradicional furo da família, e com um
amplo espaço dedicado à vinicultura, a provas e a eventos.
Estas
soluções incluem sensores que medem, em tempo real, os níveis de humidade a
diferentes profundidades sob as vinhas, com o objetivo de fazer a rega, só
quando necessário. No final da campanha, poupa-se água, melhora-se a qualidade
da fruta e, obviamente, do vinho.
A empresa
optou também por um sistema de irrigação subterrâneo, com rega direta das
raízes das videiras. Edgar Vilarinho considera que este sistema lhe permite
regar as vinhas uma vez por semana, em vez de oito vezes, como acontecia
anteriormente. “Para já, estamos muito satisfeitos com esta solução. Veremos o
que acontece a seguir”, afirma.
Trata-se de
uma tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos da América (EUA) e concebida
para reduzir a evaporação e a competição pela água com outras plantas. “A longo
prazo, podemos vir a poupar até 30 % da água, ao utilizá-la menos e melhor”,
assegura Jorge Páscoa.
Os
produtores de vinho são apoiados pela associação portuguesa Smart Farm Colab,
que luta pela democratização das soluções digitais nas explorações agrícolas. A
associação é financiada, de forma parcial, pelo governo português e pela União
Europeia (UE). “O nosso objetivo é trabalhar com os técnicos que estão no
terreno, todos os dias, para adaptar as necessidades à tecnologia da forma mais
eficaz possível. A tecnologia não toma decisões, mas ajuda a implementá-las”,
explicita Cátia Pinto, diretora executiva do Smart Farm CoLab.
“Não choveu
nada em agosto e quase não choveu em julho. Aqui, cada gota conta, porque não
nos podemos esquecer de que estamos a competir com outras indústrias, como o
turismo”, diz Cátia Pinto, enquanto apresenta dados da estação meteorológica
instalada nas vinhas.
O Algarve,
que tem algumas das mais belas e confortáveis praias de Portugal, é a principal
região turística do país. Em 2023, recebeu mais de cinco milhões de visitantes.
É também um famoso destino de golfe, com quase 40 campos. Além disso, é uma importante
região agrícola. Nos últimos anos, voltou-se para o cultivo de citrinos, como a
laranja, e do abacate, frutas especialmente exigentes em termos de recursos
hídricos.
“Estas
plantações obrigam-nos a encontrar soluções, como a criação de reservatórios e
a procura de água a maior profundidade, mas são, muitas vezes, uma caixa de
Pandora. Resolvemos um problema, mas criamos outros para o futuro”, explica
Luís Silva, proprietário da Quinta do Freixo, um ponto de referência no
ecoturismo do Algarve situado a 20 minutos de carro de Albufeira.
Após várias
décadas de agricultura biológica, Luís Silva defende agora uma “gestão
holística”, que aplica na sua propriedade, utilizando técnicas baseadas nos
serviços ecossistémicos complementares prestados pelas plantas e pelos animais.
Mil e
duzentas ovelhas pastam nas suas terras num sistema de rotação curta que imita
a vida selvagem. Os animais revolvem o solo e acrescentam-lhe matéria orgânica,
o que ajuda as plantas a crescer melhor e o solo a absorver a água de forma
mais eficaz. “No pico do verão, o solo pode atingir temperaturas de 60 graus (Celsius).
Nada sobrevive nessas condições, por isso é muito importante manter o solo
coberto. Se o solo estiver exposto, a água desliza por ele”, explica o
agricultor, enquanto raspa a terra, dura como pedra, em local onde os animais
ainda não passaram.
“Os animais
ajudam-nos a criar um solo que funciona como uma esponja”, refere Luís Silva,
que participou em vários projetos de investigação universitária ligados à
agricultura regenerativa.
A
viabilidade económica da Quinta do Freixo assenta no turismo. Os visitantes
podem desfrutar dos vales arborizados e dos reservatórios de água da
propriedade, repletos de trilhos para caminhadas e ciclismo. E Luís Silva não
se rege pela força económica dos mercados internacionais. A grande maioria das frutas
e legumes que produz é vendida na loja da quinta e utilizada no restaurante da
mesma, o que, na ótica do proprietário, gera uma boa margem de lucro.
“O capital
natural também é uma componente importante para nós. Encaramos a regeneração do
solo como lucro. Se não tivéssemos vida selvagem, ou [se tivéssemos] apenas uma
plantação, o nosso potencial turístico não seria o mesmo”, afirma.
Segundo as
estimativas, mais de 60 % dos solos europeus não são saudáveis e a sua
degradação já levou a prejuízos de milhares de milhões de euros, devido à perda
dos serviços essenciais que prestam, de acordo com a UE. A proposta de lei da
UE relativa à monitorização do solo ajudará a identificar, em breve, as
práticas adequadas, fornecendo dados precisos dos parâmetros do solo.
Ao mesmo
tempo, o consumo urbano de água, no Algarve, subiu 4,6%, em janeiro,
comparativamente com igual período de 2023, gasto equivalente a 20 hectómetros
cúbicos, segundo dados da comissão de gestão de albufeiras, da Agência
Portuguesa do ambiente (APA). E, como noutras regiões, as perdas
de água da rede pública são constantes. Por isso, a APA recordou que, após a
declaração da situação de alerta, devido à seca no Algarve, foram tomadas medidas
de contingência, como reduções de 15% no volume de água consumido pelo setor
urbano (incluindo uso domésticos e não doméstico), que inclui turismo, de 25%
do volume de água consumido pelo setor agrícola e de 18% do volume de água
consumido pelo golfe.
Em contraponto, como noticiou, a 15 de abril, a Lusa, o consumo de água, no Algarve,
desceu 17,9%, em março, comparativamente com o mês homólogo de 2023, uma
redução global superior aos 15% previstos nas medidas anunciadas pelo governo
para o setor urbano, que inclui o turismo.
O segundo relatório de monitorização do Compromisso com a
Eficiência Hídrica, para o setor do turismo, elaborado pela ADENE, indica que
os empreendimentos turísticos da região do Algarve, que aderiram ao selo de
eficiência hídrica Save Water,
reduziram em 14% os consumos de água até 31 de julho. Por outro lado, encontram-se
em implementação 2347 medidas de eficiência hídrica, mais 264 medidas do que as
reportadas a 31 de maio, das quais quase metade é estruturante. As intervenções
ao nível dos dispositivos e nos sistemas de rega, seguidas de melhorias no
sistema de gestão e manutenção e nos equipamentos, continuam a ser as mais
selecionadas.
***
Cada vez mais, a tecnologia digital
ajuda a gerir os sistemas de água na Europa. Os apoios que oferece incluem a
monitorização, em tempo real, da utilização e da qualidade da água, a deteção
mais rápida de fugas e a irrigação inteligente. Além disso, a inteligência
artificial (IA) pode ajudar a prever os padrões de precipitação. Cerca de 23%
da água nas redes da UE perde-se, antes de chegar aos consumidores, mas as
soluções digitais podem reduzir as fugas em 30% e diminuir os transbordos nos
sistemas de esgotos.
Os potenciais benefícios das soluções
digitais no setor foram estabelecidos por projetos financiados pela
UE, no âmbito do cluster ICT4Water. A utilização da análise de
dados, da computação em nuvem da Internet
das coisas, da inteligência aumentada, da cadeia de blocos e o
desenvolvimento de gémeos digitais no setor da água proporcionam novas
capacidades de análise, de automatização, de correção em tempo real, de previsão
e de minimização dos riscos para o ambiente natural. Além disso, as soluções
digitais podem ser utilizadas para sensibilizar e envolver os cidadãos e os
consumidores e influenciar o seu comportamento. Os sistemas domésticos de
distribuição de água também podem beneficiar da digitalização. Entre outras
coisas, a digitalização pode oferecer mais informações aos cidadãos sobre o
consumo doméstico de água e sensibilizá-los para a utilização sustentável da
água.
Porém, a tecnologia digital também
pode ter impacto negativo no recurso mais importante da vida,
principalmente, através do aumento do consumo de água doce. Por exemplo, os
centros de dados utilizam, diariamente, grandes quantidades de água de
refrigeração, tal como as fábricas que produzem baterias para automóveis e
semicondutores.
A procura digital espelha-se
nos seguintes dados: em 2023, tinham acesso à Internet
5,3 mil milhões de pessoas; o setor das tecnologias de informação e comunicação
(TIC) irá crescer significativamente, prevendo-se que 29,3 mil milhões de
dispositivos estejam em linha até 2030; os centros de dados, que apoiam este
crescimento, necessitam de quantidade substancial de água para arrefecimento,
que varia entre 68 mil e 1,7 milhões de litros por dia.
Há, ainda, mais dados. No atinente à produção de baterias, sabe-se que a produção de uma bateria de automóvel
requer cerca de 26 mil litros de água. E, quanto à produção de hidrogénio,
diz-se que essa necessita de nove litros de água ultrapura por quilograma.
A utilização de tecnologias que
consomem água para gerir melhor os sistemas hídricos apresenta, claramente, um
dilema aos legisladores e aos líderes da indústria. Estão a ser desenvolvidos
esforços para criar tecnologias inovadoras e eficientes, em termos de água, e
práticas sustentáveis, para equilibrar os benefícios do progresso digital com a
responsabilidade ambiental.
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