Aung Suu Kyi, de 79 anos, está presa desde o
golpe militar de fevereiro de 2021, que pôs fim a 10 anos de transição
democrática em Myanmar (antiga Birmânia).
O Papa Francisco pediu a libertação de Aung San Suu
Kyi, a líder oposicionista de Myanmar e vencedora do Prémio Nobel da Paz, que
cumpre uma pena de 27 anos de prisão, e propôs que fosse acolhida no Vaticano. O
pedido foi abordado numa conversa com jesuítas na última viagem apostólica pela
Ásia, mais propriamente em Jacarta, capital da Indonésia (mas também em Timor-Leste),
e cuja transcrição foi publicada, a 24 de setembro, pela revista jesuíta “Civiltà
Catolica”.
“Hoje, em Myanmar, não podemos ficar calados: é
preciso fazer alguma coisa! O futuro do vosso país deve ser uma paz baseada no
respeito pela dignidade e pelos direitos de todos, no respeito por uma ordem
democrática que permita a todos contribuir para o bem comum. Pedi a libertação
da senhora Aung San Suu Kyi e recebi o seu filho em Roma”, disse.
Francisco
respondia à pergunta concreta de um padre jesuíta oriundo de Myanmar, onde o
Papa esteve em novembro de 2017. “Há três anos que vivemos uma situação
difícil. O que nos aconselha a fazer? Perdemos as nossas vidas, família, sonhos
e futuro. Como não perder a esperança?”, questionava o jovem presbítero.
“A situação em
Myanmar é difícil”, começou por reconhecer o Papa. “Sabe que os Rohingya são
queridos para mim.” E, em seguida, partilhou: “Fui a Myanmar e lá falei com a
Sra. Aung San Suu Kyi, que foi primeira-ministra e que agora está na prisão.
Depois, fui visitar o Bangladesh e lá conheci os Rohingya que haviam sido
expulsos. Não há uma resposta universal para a sua pergunta. Existem bons
jovens que lutam pelo seu país. Hoje, em Myanmar, não podemos ficar calados:
algo deve ser feito!”, defendeu Francisco. E, sobre Suu Kyi, acrescentou: “A
senhora é um símbolo” e “os símbolos políticos devem ser defendidos”.
Aung San Suu
Kyi, a líder deposta do movimento que ganhou as eleições democráticas de 2020,
em Myanmar, encontra-se na prisão, desde fevereiro de 2021,
onde começou a cumprir a pena de 26 anos (eram 33 anos, mas uma amnistia
reduziu a pena em seis anos), tendo sido, em 2022, condenada a mais sete anos.
Sobre a
ex-dirigente e Nobel da Paz, de 79 anos, pendiam condenações por vários crimes,
que vão de fraude eleitoral a má conduta sanitária, durante a pandemia de
covid-19, e que diversos grupos de defesa dos direitos humanos garantem ter
sido fabricadas por razões políticas.
O conflito civil, desencadeado pelo golpe de Estado de
2021, contra o Governo de Aung San Suu Kyi, intensificou-se, nos últimos meses,
na sequência de uma série de ataques de grupos de minorias étnicas em várias
regiões de Myanmar.
António Guterres,
secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em agosto de 2023, apelou
à sua libertação, depois de a junta militar da Myanmar ter anunciado uma amnistia
para mais de sete mil prisioneiros, por ocasião de um dos principais festivais
budistas. A amnistia anulou então cinco das 19 condenações contra Aung San Suu
Kyi, reduzindo em seis anos a pena total de 33 anos de prisão aplicada à
ativista que, segundo meios de comunicação locais, enfrenta vários problemas de
saúde.
Segundo a Al-Jazeera,
pelo menos, dois ativistas pró-democracia que haviam sido condenados à morte
“em tribunal fechado” foram executados recentemente. Outros 120 detidos e
condenados a “falsas penas de morte” estão em risco de ser executados em breve.
E a Associação de Assistência a Presos Políticos, que monitoriza a repressão, sustenta
que, em Myanmar, desde o golpe militar, há 20953 presos políticos e foram mortos,
até ao momento, pelo menos, 5694.
***
Aung San Suu Kyi é
uma ativista e política birmanesa, vencedora do Prémio Nobel da Paz, em
1991, e secretária-geral da Liga Nacional pela Democracia (LND). Suu Kyi é
a terceira dos filhos de Aung San,
considerado o pai da Birmânia moderna (atual Myanmar), mas assassinado
pouco antes da independência do país (proclamada a 4 de janeiro de 1948), face
à colonização britânica, quando Suu Kyi
tinha dois anos de idade.
Suu Kyi foi
educada nas melhores escolas de Rangum – a antiga capital e a maior cidade
do país –, na Índia, onde a mãe, Khin Kyi, foi embaixadora, e na Universidade
de Oxford, onde conheceu Michael Aris, especialista em civilização tibetana,
com quem veio a casar. Após a graduação, entre 1969 e 1971, trabalhou na
ONU, em Nova Iorque. E, em janeiro de 1972, casou com Michael. O casal teve
dois filhos, Alexander (Londres, 1973) e Kim (Oxford, 1977).
Em 1988, Suu
Kyi regressa ao país, de início, para cuidar da mãe, que se encontrava doente.
Porém, envolveu-se no movimento pró-democracia que eclodia em Myanmar. Por ser
descendente de um herói da independência, a sua presença inflamava o movimento.
O regresso coincidiu com a eclosão da revolta popular contra os 26
anos de governo do general Ne Win, que resultaram num alto grau de repressão
política e de colapso da economia do país. A 23 de julho, Ne Win renunciou,
mas as manifestações populares de protesto continuaram. O movimento foi brutalmente
reprimido. Mais de cinco mil manifestantes foram mortos, a 8 de agosto de
1988, na Revolta 8888. A 18 de setembro, instalou-se uma junta militar no
governo do país. A 24 de setembro, formou-se um novo partido, a LND, fundado por
Aung San Suu Kyi, que se tornou a principal líder do movimento
pró-democratização. Nesse ano, morreram dez mil pessoas na luta contra o regime
militar. Entre outubro e dezembro, Suu Kyi percorreu o país,
manifestando-se contra a violência e preconizando a desobediência civil,
em grandes comícios. Em dezembro, morre a mãe, Daw Khin Kyi, aos
76 anos.
Em 1989, Suu
Kyi é presa, pela primeira vez, e ficou impedida de apresentar a candidatura às
eleições gerais do ano seguinte – as primeiras no país, desde 1962. Mesmo
assim, a LND, obtém esmagadora vitória nas eleições de 1990, conquistando 81%
das cadeiras em disputa. A junta militar recusou-se a reconhecer o resultado
das eleições.
Ainda em
1990, o Parlamento Europeu (PE) concedeu a Suu Kyi o Prémio Sakharov de
liberdade de pensamento. Em 1991 foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz.
A 10 de dezembro, os filhos, Alexander e Kim, receberam o prémio, em nome da mãe.
Suu Kyi permaneceu presa e recusou-se a deixar o país, conforme lhe propôs o
governo. O movimento pela sua libertação cresce por todo o Mundo. Em 1995, o
regime militar decide levantar a pena de prisão domiciliária que lhe
fora imposta, como sinal de abertura democrática dirigido à comunidade
internacional. Mas a liberdade dura pouco. Logo estará, novamente, em prisão
domiciliária.
No Natal de
1995, Michael Aris tem permissão para visitar a esposa. Será o último encontro
do casal. A 27 de março de 1999, morreu de cancro, em Londres, sem ter voltado
a Myanmar para ver a esposa. O governo sempre insistia em que ela fosse para
junto da família, na Inglaterra, mas ela sabia que, se concordasse em sair do
país, as autoridades birmanesas não a deixariam regressar. Assim, assume a
separação como sacrifício a fazer pelo país.
Durante a
eleição geral de 1990, a LND, partido liderado por Suu Kyi, obteve 59% dos
votos em todo o país, conquistando 81% (392 de 485) dos assentos no Parlamento –
o que deveria fazer dela a primeira-ministra. No entanto, pouco antes das
eleições, foi detida e colocada em prisão domiciliária, condição em que
viveu, durante quase 15 dos 21 anos que decorreram desde o regresso à Birmânia,
a 20 de julho de 1989, até à libertação, depois de forte pressão internacional,
em 13 de novembro de 2010.
Ao longo
desses anos, Suu Kyi foi uma das mais notórias presas políticas do Mundo. Em
2010, após ser libertada, boicotou as eleições daquele ano e exigiu mais
abertura política contra o governo dos militares. Em 2015, liderou o seu
partido na corrida às eleições legislativas, obtendo uma vitória esmagadora.
Como não podia concorrer à presidência devido a uma cláusula constitucional
(Aung San era casada com um estrangeiro e tinha filhos estrangeiros), foi
criado para ela o cargo de Conselheiro de Estado (equivalente ao de
primeiro-ministro). Foi, então, Conselheira de Estado do país, de 2016 até
2021, quando foi deposta por um golpe militar.
Considerada,
durante muito tempo, um ícone pela liberdade, no período que foi apontada como
Conselheira de Estado, Aung San Suu foi criticada, dentro e fora de Myanmar,
pelas suas ações no governo do país. Segundo os detratores, não demonstrou
qualquer simpatia ou interesse em resolver a questão do genocídio Rohingya, em 2016, no estado de Raquine, e
recusou-se a aceitar ou a reconhecer que o exército de Myanmar perpetrou
qualquer massacre. Ao longo da sua governação, Myanmar intensificou a
perseguição aos jornalistas. A 1 de fevereiro de 2021, Aung San foi
derrubada da posição de Conselheira de Estado, após um golpe orquestrado
pelas forças armadas do país.
***
Nas referidas
conversas com os jesuítas, ao ser referida a Francisco a perseguição aos cristãos
no Paquistão, considerou que o caminho do cristão é sempre de “martírio”, isto
é, de testemunho. É preciso testemunhar com prudência e com coragem – dois
elementos que andam juntos, cabendo a cada um encontrar o seu caminho. Falando,
em concreto, do Paquistão, evocou a figura de Asia Bibi, que ficou na prisão durante
quase 10 anos. Conheceu a filha dela, que secretamente lho comunicou. Ela deu
testemunho corajoso durante muitos anos. Assim, o Pontífice exorta à corajosa
prudência, que traz riscos, ao passo que a prudência pusilânime tem um coração
pequeno.
Diz o Papa
que, sendo escolásticos, às vezes, os jesuítas participam em movimentos de
protesto. E ele acompanha as famílias das vítimas de violações dos direitos
humanos, no passado. Assim, exibiu uma carta escrita por Maria Katarina
Sumarsih, mãe de uma das vítimas da tragédia de Semanggi, em 1998, quando foram
mortos manifestantes civis. É uma das iniciadoras do Kamisan, inspirado nas
Mães da Plaza de Mayo, na Argentina, grupo que apela ao governo a que revele as
violações passadas dos direitos humanos e proporcione justiça às vítimas e às famílias.
Francisco
revela que a presidente do
movimento Plaza de Majo o veio ver Ficou emocionado e ajudou-o muito conversar
com ela. Ela deu-lhe “a paixão de dar voz a quem não tem”. “Esta é a nossa tarefa:
dar voz a quem não a tem”, concluiu. A situação da ditadura argentina era muito
difícil e estas mulheres, estas mães, lutavam por justiça.
E, de visita ao Bangladesh, o
Papa Francisco encontrou os Rohingya que haviam sido expulsos. Considera que que
não há uma resposta universal para as perguntas de quem trabalha com perseguidos,
com vítimas da repressão. Reconhece que há bons jovens a lutar pelas suas
pátrias. E sustenta que, em Myanmar, não se pode ficar calado, hoje; tem de se
fazer alguma coisa. O futuro do país deve ser a paz, baseada no respeito pela
dignidade e pelos direitos de todos, no respeito por uma ordem democrática que
permita a cada pessoa contribuir para o bem comum.
Por isso, Francisco apelou à
libertação de Aung San Suu Kyi, recebeu o seu filho em Roma e ofereceu o
Vaticano como lugar de refúgio para ela. “Neste momento, a senhora é um símbolo
e os símbolos políticos devem ser defendidos”, vincou.
Evocou o exemplo da freira
ajoelhada com as mãos levantadas na frente dos militares, cuja imagem deu a
volta ao Mundo. E prometeu rezar para que os padres jovens sejam corajosos
assim. A Igreja em Myanmar é corajosa.
Também o Papa revelou que, na sua
atenção aos reclusos, quando se tornou arcebispo de Buenos Aires, na
Quinta-feira Santa, não lavava os pés na catedral, mas na prisão. E lá aprendeu
a sempre dirigir uma oração, quando entra numa prisão: “Senhor, por que eles e
não eu?” Far-nos-á bem orar assim, quando encontrarmos pessoas que falharam,
que caíram: “Por que ele e não eu?
2024.09.24
– Louro de Carvalho
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