segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Jesus cura pela sua proximidade do atribulado apesar da distância deste

 

A liturgia do 23.º domingo do Tempo Comum no Ano B fala-nos de um Deus comprometido com a vida e com a felicidade dos seus filhos, sempre presente em cada troço da via que a Humanidade percorre, orientando os seus filhos e filhas, apontando a direção que leva à Vida.

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Na primeira leitura (Is 35,4-7a), um profeta do tempo do Exílio na Babilónia garante aos exilados, sem esperança, que Deus os vai salvar e reconduzir à terra que deixaram para trás. Nas imagens dos cegos, cujos olhos veem, de novo, a luz, dos surdos, que voltam a ouvir, dos coxos, que saltarão como veados, e dos mudos a cantar com alegria, o profeta representa a Vida nova, abundante, transformadora, que Deus oferece ao seu Povo.

Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem o “pequeno apocalipse de Isaías” (distinto do “grande apocalipse de Isaías”, dos capítulos 24-27). Descrevem o castigo definitivo das nações inimigas de Israel, particularmente de Edom, povo nascido de Esaú, irmão de Jacob (cap. 34), e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os inimigos (cap. 35). Pelos motivos e pela temática, parecem conexos com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é o profeta designado por Deuteroisaías, que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). A razão por que os dois capítulos se apresentam separados do “ambiente natural” terá sido a atração pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33. O autor escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilónia (por volta do ano 550 a.C.), para consolar os exilados, desanimados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou.

Depois de apresentar o julgamento de Deus sobre as nações e o castigo de Edom, o autor descreve a alegria do Povo de Deus, porque chegou a hora da libertação. A própria terra (o Líbano glorioso, o belo monte Carmelo e a policromada planície do Saron) alegrar-se-á, vestir-se-á das melhores cores, encher-se-á de flores, para celebrar a iniciativa salvadora de Deus.

Após quase quarenta anos de cativeiro, o Povo, exilado na Babilónia, está paralisado, abatido e incapaz de sair da sua triste situação. Acha que Deus o esqueceu. Não tem perspetivas de futuro e não vê razões para a esperança. Todavia, o profeta, em nome de Deus, dirige-se aos exilados e anuncia-lhes a iminência da libertação. Esse anúncio provoca uma explosão de alegria: a Natureza e as pessoas exultam jubilosas, porque o Senhor Se apresta para salvar Judá do cativeiro e para abrir uma estrada no deserto, a fim de que o Povo retorne em triunfo a Jerusalém.

Deus não esqueceu o seu Povo e Judá deve recobrar ânimo e preparar-se para acolher o Senhor. Javé realizará a libertação, fará justiça e recompensará o Povo pelos sofrimentos suportados.

O resultado da iniciativa libertadora de Deus traduzir-se-á no despertar do Povo desanimado para uma vida nova. O encontro com o Deus libertador transformará o Povo, dar-lhe-á a liberdade, a alegria, a coragem para enfrentar o caminho e a Vida em abundância. Nas imagens dos cegos, dos surdos, dos coxos, dos mudos, que recuperam as suas faculdades, o profeta representa a Vida nova, abundante, transformadora, renovadora, que Deus oferece a Judá.

Paralelamente, o dom de Deus manifestar-se-á na própria Natureza. O deserto desolado e estéril, que os exilados atravessarão no regresso à sua terra, transformar-se-á em terra fértil, com água em abundância e onde o Povo não terá dificuldade em saciar a fome e a sede. A abundância de água no deserto é um motivo usado para mostrar a vontade de Deus em cumular o Povo de Vida abundante e plena. E a marcha do Povo da terra da escravidão para a da liberdade será o novo êxodo, onde se repetirão as maravilhas operadas pelo Deus libertador aquando do primeiro êxodo. Contudo, este êxodo será mais grandioso, quanto à manifestação e à ação de Deus. Será a peregrinação festiva, na alegria e na festa. Cabe a Judá e acolher, com confiança, os dons de Deus.

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No Evangelho (Mc 7,31-37), Jesus, cumprindo a promessa de Deus, abre os ouvidos e solta a língua de um surdo-mudo. Com tal gesto, mostra que Deus não Se conforma, quando o homem se fecha no egoísmo e na autossuficiência, que trazem infelicidade. Jesus propõe aos “surdos-mudos” que abram o coração ao amor, partilha, à comunhão – o caminho para o Homem novo.

Na fase final da etapa da Galileia, multiplicam-se as reações contra Jesus, apesar do rasto de esperança que Ele deixa pelas aldeias e cidades. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” são a gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e a passar, por algum tempo, ao território pagão.

Marcos refere a viagem de Jesus pela Fenícia, que o leva a Tiro e a Sídon, cidades da faixa costeira oriental do Mediterrâneo. Aí teria curado a filha de uma mulher pagã de origem sirofenícia. No regresso dessa incursão, Jesus teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole. O nome Decápole designava a liga de dez cidades (Damasco, Filadélfia, Rafana, Bet-Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata), formada após a conquista da Palestina pelos Romanos (ano 63 a.C.), situada a oriente do Mar da Galileia e sob a administração do legado romano da Síria. Eram centros de cultura grega, tendo cada uma um certo grau de autonomia. Porém, os Judeus viam a Decápole como um território pagão, à margem dos caminhos da salvação.

É nesse ambiente geográfico e humano que Marcos situa a cura do surdo-mudo. Provavelmente, sugere que o anúncio do Evangelho aos pagãos – que, anos mais tarde, após o Concílio de Jerusalém, é aposta firme da comunidade cristã – estava nos planos e na prática de Jesus.

Algures no território pagão da Decápole, trouxeram a Jesus “um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele”. Na base do relato, estará o encontro de Jesus com o homem e os gestos (bem estranhos) que Jesus fez para o curar. Porém, Marcos, ao descrever o encontro, propõe-nos uma catequese sobre a missão que Jesus recebeu do Pai. E interessa-nos perceber como é que Marcos entendeu a ação curadora de Jesus em favor daquele homem e os gestos que a acompanharam.

No centro da cena está o surdo-mudo. Se a linguagem é o meio privilegiado de comunicar, de estabelecer relação, o surdo-mudo tem dificuldade em estabelecer laços, em dialogar, em viver em comunhão, em abrir-se à relação. E, num universo religioso que considera as enfermidades físicas como consequência do pecado, o surdo-mudo é um “impuro”, um pecador, um maldito. Além disso, vive em território pagão: é, portanto, um dos que, segundo a teologia judaica, não podem contar com a salvação de Deus.

Este surdo-mudo representa todos os que vivem fechados no seu Mundo, na sua autossuficiência, de ouvidos fechados às propostas de Deus e de coração fechado à relação com os outros homens. Representa os que a teologia oficial considerava pecadores e malditos, incapazes de estabelecer verdadeira relação com Deus, de escutar a Palavra de Deus e de viver conforme os desafios de Deus. E representa os pagãos que os Judeus desprezam, porque alheados das vias da salvação.

O surdo-mudo vem ao encontro de Jesus trazido por pessoas não identificadas. A iniciativa de se encontrar com Jesus não é dele (“trouxeram-Lhe um surdo que mal podia falar”), pois, fechado em si próprio, acomodado à vida sem relação, não sente necessidade de abrir o coração à comunhão com Deus e com os irmãos. É preciso que alguém o traga, que o apresente a Jesus. Marcos tenta dizer-nos que esse é o papel da comunidade cristã: os que já descobriram Jesus, que O escutaram, que se deixaram transformar pela sua Palavra, que O seguem, devem dar testemunho dessa experiência e desafiar outros irmãos para o encontro com Jesus.

Frente a frente com o homem, Jesus liberta-o da sua triste situação. O primeiro gesto de Jesus é tomar o homem à parte, afastando-o da multidão. Depois, mete-lhe os dedos nos ouvidos e faz saliva com a qual lhe toca a língua. São gestos que os curandeiros faziam em circunstâncias semelhantes para inspirar ao doente a certeza do seu poder curador. No entanto, Marcos relaciona estes gestos com os relatos de criação do livro do Génesis: o afastamento da multidão sugere (como em Gn 2,21) que o prodigioso criar de Deus é processo divino, que não tolera espetadores; o tocar os ouvidos do surdo lembra a modelação do homem, por Deus, a partir do barro da terra; o pôr saliva na língua do mudo lembra o sopro de vida de Deus, que transformou o barro inerte do primeiro homem num ser dotado de vida divina. Sendo assim, o episódio deve ser lido em chave de criação: a missão que Jesus recebeu do Pai é fazer nascer o Homem novo, cheio da energia vital de Jesus (saliva), aberto à comunhão com Deus e à relação com os outros homens.

Para completar a criação do Homem novo, Jesus ergueu “os olhos ao Céu, suspirou e disse: “effathá”, que quer dizer “abre-te”. O gesto de levantar os olhos ao céu deve ser entendido como invocação de Deus: Jesus, ao criar um Homem novo, age em nome e por mandato de Deus; o que fez tem o aval do Pai e insere-se no desígnio salvador do Pai em prol dos homens. A palavra “effathá”, dita por Jesus, dirige-se mais ao coração do que aos ouvidos. Não é palavra mágica, com especiais virtudes curativas, mas o convite ao homem fechado no seu mundo pessoal a abrir o coração à Vida nova da relação com Deus e com os irmãos, para fazer da sua vida uma história de comunhão com Deus e de partilha com os irmãos. O processo de transformação do homem velho num Homem novo não é processo em que só Jesus age e onde o homem assume uma atitude de passividade, mas é processo que exige o compromisso ativo e livre do homem. Jesus lança desafios, oferece o seu Espírito que transforma e renova o coração, mas o homem tem de acolher a proposta, optar por Jesus e abrir o coração aos desafios de Deus.

A ação de Jesus e a sua palavra fazem com que o homem se disponha a sair da prisão em que estava encerrado: “Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente”. O episódio lembra-nos o anúncio de Isaías: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-nos. Então se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos. Então o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,4-6). Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens, para os libertar das cadeias do egoísmo, da autossuficiência, do preconceito religioso que impede a relação, o diálogo, a comunhão com Deus e com os irmãos. Em Jesus, as promessas de Deus concretizam-se plenamente.

No final do relato da cura do surdo-mudo, as testemunhas do acontecimento dizem a propósito de Jesus: “tudo o que Ele faz é admirável”. Isto parece eco de Gn 1,31 (“Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa”), mas pode ser a profissão de fé da comunidade agradecida que agradece a ação maravilhosa de Jesus, a feliz concretização da sua obra criadora e vivificadora.

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segunda leitura (Tg 2,1-5) dirige-se aos que acolheram Jesus e se comprometeram a segui-Lo no caminho do amor. Convida-os a não desvalorizar ou discriminar qualquer irmão e a acolher, com especial bondade, os pequenos, os pobres e os frágeis. Jesus não fez aceção de pessoas, mas a todos acolheu e a todos amou igualmente, mesmo os pobres, os últimos, os marginalizados, os pecadores, os doentes, os que ninguém queria e que a religião ostracizava. O Mundo novo que Jesus propôs (o “Reino de Deus”) é aquele onde todos têm lugar e onde todos são filhos amados de Deus. Quem aderiu a Cristo e procura segui-Lo tem de assumir os valores do Reino. Por isso, não pode, no trato com as pessoas, deixar-se levar pelo favoritismo e parcialidade ou assumir qualquer tratamento discriminatório.

Depois, a Carta apresenta exemplos concretos: a comunidade cristã não pode acolher e tratar, de forma diferente, o rico e o pobre, o que se apresenta bem vestido e o que se apresenta mal vestido, o que é conhecido e famoso e o que é humilde e passa despercebido. Todos são iguais e dignos de consideração e de respeito, ainda que desempenhem funções diferentes e prestem serviços diversos. Para os seguidores de Jesus, a aceção de pessoas por razões ligadas à riqueza, ao poder, à posição social, é um esquema perverso, incompatível com a fé.

O trecho em apreço termina (embora a reflexão da Carta de Tiago se prolongue por mais alguns versículos) com a pergunta que corta pela raiz qualquer razão para tratar com menos consideração os mais pequenos e frágeis: “Não escolheu Deus os pobres deste Mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?” No universo bíblico, mais do que uma categoria sociológica, os “pobres deste Mundo” são uma categoria religiosa. A expressão designa os humildes, os débeis, os pacíficos, os que se apresentam diante de Deus em atitude de simplicidade, despidos de qualquer atitude de orgulho, de autossuficiência, de preconceitos; são os que, com humildade e disponibilidade, aceitam os dons de Deus com alegria e gratidão. Perpassa por diversos textos bíblicos a sugestão de que os “pobres” têm lugar especial no coração de Deus, porque são os que mais necessitam de ser acolhidos, cuidados e salvos, e porque são os mais disponíveis para acolher o dom do Reino. Não é que o Reino de Deus seja opção de classe e que os ricos e poderosos não possam aceder ao Reino; mas os ricos, os poderosos, os instalados, muitas vezes, não estão disponíveis para acolher a novidade revolucionária e libertadora do Reino de Deus. São os pobres, na simplicidade, na humildade, no despojamento, na ânsia de libertação, que estão preparados para acolher o dom de Deus presente em Jesus.

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Não será inoportuno referir, em síntese, o teor da homilia da missa dominical do Papa Francisco com o povo papuano.

A primeira palavra do Senhor é: “Tomai ânimo, não temais!” É dita aos corações perturbados, para encorajar o povo a, nas dificuldades, olhar para o alto, para o horizonte de esperança e de futuro, pois Deus vem salvar-nos. No dia do Senhor, “abrir-se-ão os olhos do cego, os ouvidos do surdo ficarão a ouvir”. Esta profecia cumpre-se em Jesus.

Na narração de Marcos, o Papa sublinha a distância do surdo-mudo a proximidade de Jesus.

O surdo-mudo está numa periferia. A Decápole situa-se para lá do Jordão, longe do centro religioso. Porém, aquele surdo-mudo experimenta uma outra distância: longe de Deus e dos homens, não tem a possibilidade de comunicar. Como é surdo, não ouve os outros; e porque é mudo, não fala com os demais. Está separado do Mundo e isolado, é cativo da surdez e da mudez.

Porém, a condição de surdo-mudo entende-se noutro sentido. Ficamos afastados da comunhão e da amizade com Deus e os irmãos, quando o coração se fecha. A surdez interior e a mudez do coração dependem de tudo o que nos encerra em nós, impede a relação com Deus e nos fecha aos outros: o egoísmo, a indiferença, o medo de arriscar e de comprometer-se, o ressentimento, o ódio, etc. Tudo isto nos afasta de Deus, dos irmãos e de nós mesmos; e tira-nos a alegria de viver.

Face a esta distância, Deus responde com a proximidade de Jesus. No seu Filho, mostra que é o Deus próximo, compassivo, solícito com a nossa vida, vencedor das distâncias. E, no trecho do Evangelho, vemos Jesus a dirigir-se aos territórios periféricos, saindo da Judeia, para ir ao encontro dos pagãos. Com a sua proximidade, Jesus cura a mudez e a surdez do homem: quando nos sentimos distantes, ou escolhemos manter-nos à distância – de Deus, dos irmãos, dos que são diferentes de nós – fechamo-nos em nós mesmos e giramos apenas em torno do nosso eu, surdos à Palavra de Deus e ao grito do próximo e incapazes de falar com Deus e com o próximo.

Contudo, não é a terra distante que separa do Senhor ou dos outros homens. As pessoas e os povos estão unidos no Senhor. E o Senhor diz a cada um: “Abre-te!” É isto o mais importante: abrirmo-nos a Deus, abrirmo-nos aos irmãos, abrirmo-nos ao Evangelho e fazer dele a bússola da vida. Por isso, é preciso ter a coragem de nos abrirmos à alegria do Evangelho, ao encontro com Deus, ao amor dos irmãos. E o Papa evocou o Bem-aventurado João Mazzucconi, que, no meio de tanto desconforto, trouxe Cristo ao povo papuano, para que ninguém ficasse surdo ante a alegre Mensagem da salvação, e em todos a língua se soltasse em cântico ao amor de Deus.

2024.09.09 – Louro de Carvalho

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