segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Aprovada a criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência

 

A Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos (OM) aprovou, a 23 de setembro, a proposta de criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, especialidade que o mesmo órgão deliberativo da OM tinha rejeitado, numa primeira votação, no final de 2022.

A proposta foi aprovada em reunião do órgão deliberativo interno da OM que tem a competência para decidir sobre criação ou sobre extinção de especialidades e para criar subespecialidades.

A Associação dos Administradores Hospitalares aplaude esta decisão da Ordem. Xavier Barreto, presidente da associação, diz que a criação desta especialidade vai melhorar serviços de urgência.

A criação desta especialidade fora “chumbada”, a 12 dezembro de 2022, pela Assembleia de Representantes da OM (51 votos contra, 21 a favor e três abstenções), com Miguel Guimarães, o então bastonário, a considerar o processo encerrado. Todavia, o processo foi reaberto por um grupo de trabalho criado no início deste ano.

O objetivo da OM é que seja possível iniciar a formação de médicos especialistas em Medicina de Urgência e Emergência já a partir de janeiro de 2025.

Com a luz verde da OM, dada na reunião de 23 de setembro, será criada uma comissão instaladora que se deslocará aos serviços de urgência para aferir quais os que têm condições para receber médicos internos. Na sequência desse trabalho, será transmitido ao Ministério da Saúde (MS) quais os serviços de urgência que poderão receber a formação da nova especialidade, no sentido de serem incluídos no mapa de vagas que é publicado em novembro.

A criação da nova especialidade consta do Plano de Emergência e Transformação da Saúde, do governo, com o ministério de Ana Paula Martins a pretender abrir, já no próximo ano, as primeiras vagas para formar especialistas em Medicina de Urgência e Emergência. “Dada a importância desta medida, estão já a ser realizados esforços no sentido de se aprovar a criação da especialidade Médica de Urgência [e Emergência] até ao final de 2024, para, em 2025, serem disponibilizadas as primeiras vagas para internato”, refere o plano aprovado pelo executivo, no final de maio.

Esta é uma das medidas que o MS tem como prioritárias no eixo “Cuidados Urgentes e Emergentes”, do Plano, com o objetivo de permitir a especialização médica numa área de impacto direto na qualidade dos cuidados de saúde prestados a doentes que correm risco de vida.

No documento, o governo salienta que esta especialidade é “firmemente reconhecida” e já existe em 31 países da Europa e em cerca de 83 países a nível mundial.

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Esta especialidade estava em debate desde 26 de maio de 2020, quando foi noticiado que cerca de duas dezenas de médicos criaram a Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência (SPMUE). Na Europa apenas cincos países, nos quais se encontra Portugal, não têm esta especialidade. Em Portugal não há a especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, o que existe é uma proposta já entregue, em 2019, à OM para que fosse criada e que nasceu no seio do Colégio de Emergência Médica da Ordem.

Em contrapartida, a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) – considerando que “o problema das urgências sobrelotadas, com muitos doentes agudos sem gravidade, tem muitos anos” e que “continuará a crescer, enquanto os Centros de Saúde não forem obrigados a dar-lhes resposta e [enquanto] os Hospitais virem nos doentes triados como verdes e azuis uma fonte de financiamento” – sustentava, em 19 de julho de 2022, que era um “enorme erro” a criação desta especialidade e que não reduziria, nas urgências, o número de médicos tarefeiros indiferenciados, de antes, nem o dos médicos tarefeiros especialistas, de agora.

Entretanto, a OM decidiu, logo em 2020, “promover um debate interno” para avaliar a criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, declarava à Lusa o bastonário de então, admitindo que a questão era complexa e que era preciso ouvir todas as especialidades.

Como foi já referido, a 12 de dezembro de 2022, o competente órgão deliberativo interno da OM rejeitou, por ampla maioria, a proposta de criação desta especialidade, sob o argumento de que era inoportuna a sua criação. Entretanto, mudou a cor da governação do país e a criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência tornou-se oportuna e quase urgente.

Assim, a OM anunciou, a 9 de julho passado, a aprovação de um regulamento que constitui a primeira etapa no processo de criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, que tinha sida reprovada no final de 2022. “Importa esclarecer que esta é uma primeira etapa para a criação da nova especialidade, num processo que se pretende transparente e participado, com os contributos de todos, durante o período da consulta pública”, salientou o bastonário Carlos Cortes, citado num comunicado da OM.

Segundo a Ordem, os representantes aprovaram, em julho, uma proposta de Regulamento Geral dos Colégios de Especialidades, das Secções de Subespecialidade e dos Colégios de Competências. Este novo regulamento, que foi para consulta pública durante o período mínimo de 30 dias úteis para contributos de várias entidades e médicos, incluía o processo de criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, iniciado por um grupo de trabalho criado em março de 2024.

O MS quer abrir, já no próximo ano, as primeiras vagas para formar especialistas em Medicina de Urgência, na sequência do estabelecido no Plano de Emergência e Transformação da Saúde.  

No comunicado, a OM adiantou que a Assembleia de Representantes aprovou também uma proposta de alteração ao Estatuto da Ordem dos Médicos, na sequência da lei publicada em janeiro deste ano, que alterou esse estatuto. “Com a aprovação desta proposta, a Assembleia de Representantes reforça a importância das matérias de competência de autorregulação da profissão e do papel técnico-científico da Ordem, ambas comprometidas pelo legislador em janeiro passado”, salientou a OM, ao avançar que a proposta será remetida à Assembleia da República (quer dizer: a OM não dá ponto sem nó e o governo tem de “pagar” a especialidade com uma lei).

Segundo a OM, nessa reunião, foi ainda aprovada a criação do Observatório do Ato Médico, um “instrumento fundamental que visa intensificar a vigilância sobre outros tipos de atividades e de profissões que praticam atos médicos para os quais não estão habilitadas”, bem como “permitir uma monitorização mais apertada dos atos médicos praticados por profissionais não competentes, oferecendo mais segurança aos doentes”.

“O Observatório do Ato Médico será fundamental para a defesa do exercício da Medicina e para a proteção dos doentes”, considerou Carlos Cortes, bastonário da OM.

Em declarações à SIC, Carlos Cortes dizia, em julho, que os “problemas dos serviços de urgência são complexos” e que será necessária uma “reforma profunda” do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que vai muito além da criação duma nova especialidade, a mesma que servirá para libertar especialidades como a Medicina Interna, a Cirurgia e a Pediatria. E ao Expresso, o bastonário frisou que este é “um passo importante que não tinha sido conseguido anteriormente”.

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Um dos corifeus da criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência é o médico Vítor Almeida, do Hospital de São Teotónio, em Viseu, que o MS escolhera para presidir ao Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), sucedendo a Luís Meira, que ocupava o cargo desde 2016 e que se demitiu em rutura com a tutela.

Vítor Almeida é médico, há mais de 20 anos, e tem como primeira especialidade Medicina Geral e Familiar, mas, desde o internato médico, começou a interessar-se pela Medicina de Emergência, o que o levou, depois, à formação noutra especialidade, a de Anestesia, que agora exerce em Viseu. Não chegou a tomar posse da presidência do INEM, por desacordo do MS, em relação às condições que o nomeado colocara.

Vejamos um pouco do seu perfil biográfico e profissional, não por ele, mas para se fazer luz sobre a pertinência ou não da nova especialidade médica. É um homem que gostaria de ver no hospital uma resposta condicente com o que encontra no terreno, e não só uma urgência, praticamente, baseada nas especialidades de Medicina Interna e de Cirurgia Geral. 

Consta que, na área da Emergência “é um homem com muita experiência, já fez de tudo, desde ambulâncias, VMER [viatura médica de emergência e reanimação] ou emergência aérea, tanto no país como lá fora, pois teve várias missões humanitárias”. 

Quem o conhece diz que do seu currículo fazem parte mais de 20 de anos de luta pela criação da especialidade de Medicina de Urgência em Portugal, acabando por ser um dos fundadores da SPMUE e um dos subscritores do projeto de criação da especialidade que esteve em discussão, há cerca de dois anos, no Conselho Nacional da Ordem das Médicos, mas que foi rejeitado.

Na altura, Vítor Almeida não escondeu a sua desilusão com a decisão da OM, sustentando que o país tinha perdido a oportunidade de poder fazer história e de se juntar a outros em que a especialidade já existe. O debate sobre o tema só voltava à ribalta, quando se falava de equipas fixas nas urgências, mas a própria classe médica não chegava a consenso.

Os críticos da gestão de Luís de Meira, que chegaram a pedir a sua demissão, estavam expectantes e, confiados em pessoas próximas de Vítor Almeida, acreditavam que, com ele, “as relações laborais poderiam ficar pacificadas”, porque não lhe falta experiência em coordenação de equipas em Medicina de Emergência, desde as missões em Timor, em Sarajevo ou, mais recentemente, na Ucrânia. 

Vítor Almeida era o coordenador do Gabinete de Apoio Humanitário da Ordem dos Médicos e Miguel Guimarães, bastonário na altura, nomeou-o coordenador da equipa que rumou ao Leste da Europa para apoio Humanitário aos refugiados. Em 2023, voltou a destacar-se na comunicação social, a explicar a medicina de catástrofe, a propósito do terramoto em Marrocos e das cheias na Líbia. Também, em 2023, quando Luís Meira terminava o mandato, candidatou-se à presidência do INEM e teve o aval da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP), mas o governo renomeou o presidente que já estava em funções e que saiu, neste ano, por desentendimentos com a nova tutela.

O médico é natural de Lisboa, onde nasceu em 1966, tendo vivido, depois, durante muitos anos na Alemanha, onde se licenciou em Medicina, na Faculdade de Hannover. De regresso a Portugal, fez o internato no Hospital Universitário de Coimbra, obtendo o registo de exercício na Ordem dos Médicos portuguesa e na Ordem dos Médicos alemã. Completou o internato complementar de Medicina Geral e Familiar, no Centro de Saúde Norton de Matos, em Coimbra, e iniciou a atividade clínica no pré-hospitalar nos Bombeiros Voluntários de Arganil, passando pelo INEM,  Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) de Coimbra. Especialista em anestesiologia, Vítor Almeida fez o internato complementar no Hospital Universitário de Coimbra e no Hospital Hadassah, em Jerusalém. O seu percurso profissional como anestesiologista e emergência médica passou pelo Hospital Universitário de Coimbra, pelo Hospital São Teotónio de Viseu e pelo Hospital de Faro. Ingressou como Médico de Helicóptero do INEM, passando, depois, a coordenador do serviço noturno.

O bastonário disse ao Diário de Notícias que só tem “aspetos positivos” a dizer: “É um médico do SNS, o que é muito importante, pois assim conhece bem as dificuldades do sistema, e é um médico do INEM, muito conhecedor das suas questões, desde as mais organizativas às matérias mais técnicas.” E recorda que, na área da Medicina de Emergência e da Ajuda Humanitária, Vítor desenvolvia vários projetos com a OM, para que fosse possível “aumentar a capacidade de ajuda a países estrangeiros que dela necessitassem”, vincando que o médico anestesista tinha regressado, há pouco tempo, da Ucrânia, onde esteve, durante um mês, a dar formação médica.

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Talvez a nova especialidade não resolva os problemas da Urgência, mas ajudará. E uma reforma profunda do SNS é mesmo necessária, mas observando os requisitos constitucionais.

2024.09.23 – Louro de Carvalho

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